Para muitos da minha geração, os últimos anos não foram, o que se costuma dizer, auspiciosos.
Não falo, claro, das vidas pessoais e materiais de cada um, pois elas terão sido porventura diferentes e, em muitos casos, não necessariamente más, ou, pelo menos, pior do que eram antes.
Falo, sim, das esperanças que coletivamente tínhamos numa vida melhor para todos e a que muitos dedicaram, se não a vida toda, pelo menos a parte importante dela; a juventude.
Ao ler nos jornais a notícia da morte de Quino, o cartoonista autor da Mafalda – a miúda rebelde e sempre pronta a questionar as injustiças e a hipocrisia dos poderes – compreendi melhor por que, de há tempos, vinha sentindo o peso de tantas derrotas de forma cada vez mais insistente e opressiva.
É que não foi a morte de Quino que calou a Mafalda. Ela calara-se antes, pois o seu criador desacreditara já do mundo em que ela nasceu e onde devia ter crescido ansiosa por dar respostas autênticas às questões impertinentes que sempre fazia.
Na verdade, não houve, desde então, verdadeiras respostas.
Quando tomei conhecimento de tal notícia, tinha acabado de ler dois livros que descrevem, de forma pungente, a frustração da vida de muitos que, em diferentes lados, acreditaram genuinamente poder mudar a vida de todos, mesmo que com o sacrifício das muitas benesses e adornos com que, hoje, vamos enganando a falta de sentido que emprestamos à vida que levamos.
Um deles, o mais profundo e provocador, intitulado Como Polvo en el Vento, foi escrito por Leonardo Padura, o consagrado autor cubano, que não sendo um «dissidente» e vivendo e publicando no seu país, mantém um livre e agudo espírito crítico relativamente ao que se passou e passa na sua ilha, sobretudo com uma parte da geração – a dele – que, generosamente, tudo deu para que o mundo fosse, de facto, melhor.
O outro, cujo título é La hija del comunista, é da autoria por Aroa Moreno Durán, uma escritora espanhola, que, com esta obra, se inaugura na ficção.
Também ele narra o remorso, o desencanto e a dificuldade que a protagonista do romance, filha de um comunista espanhol refugiado na RDA, sofreu quando – por motivos amorosos – decidiu fugir desse país, que era já o seu, para o Ocidente e teve de adaptar-se aos valores e comportamentos sociais individualistas, pouco solidários e mesquinhos que descobriu prevalecerem na convivência diária entre as pessoas na outra Alemanha.
Os dois livros falam, porém, e sobretudo, da dor: da dor provocada pelo desfazer dos laços entre amigos e colegas que, crescidos e enraizados num mundo comum – agora está na moda dizer chão comum – forjaram em jovens uma mesma esperança.
Forma eles que, por motivos diferentes, mas sempre ligados a uma sobrevinda e nunca expectável falta de perspetivas coletivas e pessoais, se viram compelidos a mudar de país e de cultura.
Lendo tais livros, poderíamos focar-nos apenas nas contradições e bloqueios que se desenvolveram nas sociedades em que tais personagens viviam, mas, que desiludidas, já não conseguiam suportar e que, por isso, deixaram: alguns o farão, por certo.
Acontece que ambas as obras falam de muito mais do que isso, ou talvez nem tanto disso.
Elas falam sobre os laços de sã camaradagem que uniam aqueles que acreditaram num futuro diferente para todos e que se frustrou, sem que uma explicação verdadeira o justificasse.
Laços, esses, que se foram desatando à medida que uns e outros dos protagonistas iam embatendo numa realidade dura e que – independentemente das razões, inultrapassáveis algumas, que produziram tal enquistamento – levaram cada um deles a escolher caminhos próprios, que, realmente, não queriam trilhar e de que, de facto, não vieram a gostar.
Daí os retornos e os reencontros mesmo que redentoramente fugazes.
Ora, é precisamente aqui, neste ponto, que podemos refletir no que aconteceu também a muitos de nós, neste nosso país; especialmente àqueles que, genuinamente, se empenharam na transformação da nossa sociedade tacanha, autoritária, injusta e bloqueada.
É certo que – à exceção dos que tiveram de sair por serem perseguidos politicamente e da massa imensa de emigrantes pobres que abandonou o país nos anos 60/70 devido à fome, à miséria e à falta de quaisquer perspetivas de um futuro melhor para si e os seus – foi cá que os que ficaram, trabalharam e estudaram puderam contribuir para a revolução de abril, que tantos momentos de felicidade lhes trouxe a eles e à maioria dos portugueses.
E foi aqui que viram, também, desmoronar-se, gradualmente, muitas das suas expectativas e, sobretudo, tiveram de assistir, resignados, ou não tanto, à destruição persistente dos valores de solidariedade e amor ao bem comum que os movera a lutar quando jovens nos mais variados planos e situações para melhorar a vida de todos.
Uns, depois, lá se foram acomodando o melhor que puderam e, nalguns casos, repudiaram mesmo, convenientemente, tudo aquilo que defenderam e por que haviam lutado.
Outros foram sobrevivendo e envelhecendo desgostosos, cada um para seu lado, ou celebrando ritualmente em conjunto – cada vez menos deles – os tempos gloriosos em que acreditaram e procuraram mudar o mundo.
Aqui e ali, foram ainda fazendo ouvir a sua voz generosa e autorizada, mesmo que já fraca e sempre apoucada pelas vozes mediáticas dos súbditos e louvaminhas dos sempre donos disto tudo, que iam anunciando um mundo novo, com mais néon, carros, piscinas e viagens turísticas para todos.
Um mundo novo que, afinal, durou menos do que se pensava, sendo agora os filhos dos que ergueram a democracia – e mesmo os de muitos que a renegaram – que, com vontade ou sem ela, vão, empurrados, abandonando o país e criando outras famílias nas mais diversas partes do mundo.
E depois vieram as crises: as económicas e financeiras e a do vírus.
Não, não é espúrio comparar todas estas situações, pois todas elas resultam da mesma frustração de valores solidários que, desde finais dos nos 60, começaram, sistematicamente, a ser vilipendiados e desmantelados pelos defensores de um liberalismo radical, desapiedado e agressivo.
Não nos escandalizemos, pois, com o inenarrável debate entre Trump e Biden: ele é apenas o retrato real do mundo que nos criaram e que gera grande parte das frustrações e dores que afligem muitos de nós: lá, aqui e em outras partes do mundo.
Porém, o escândalo destemperado que alguns daqueles e doutros responsáveis políticos mundiais protagonizam quotidianamente sem decoro e em público, tem, ao menos, a virtualidade de tornar, de novo, tudo mais claro e compreensível aos olhos dos cidadãos.
Há, pois, uma hipótese real – mesmo que ténue – de se criar uma dinâmica nova de anseio pela justiça, inspirada nas preocupações e projetos solidários que ajudaram a criar a democracia solidária porque tantos ansiaram.
Não podemos, pois, deitar a perder tal hipótese de mudança democrática, por mais emblemática que ela possa parecer.
As mudanças emblemáticas também geram vontade de mudanças reais.
E, se uns não a agarram, outos, menos bem-intencionados, o farão.
Se agora perdermos outra vez – talvez não seja de vez – será, por certo, por muitos anos.