Nos 110 anos da implantação da República


Ir a reboque da realidade, parece ser um risco maior, mas que alguns estão dispostos a correr para preservar os poderes e benesses atuais, ainda que coloquem em causa muitos futuros.


A República faz anos, mas duvido que possa genuinamente estar de parabéns. É claro que, apesar do interregno fascista, os termos de comparação cívicos e de desenvolvimento como comunidade não terão comparação com a existência monárquica, mas a exigência determina a configuração de um olhar crítico sobre o ponto a que chegámos.

É claro que muitos dos princípios e valores de então persistem como garantias do funcionamento da República, mas as abordagens e as materializações atuais deixam muito a desejar, ao ponto de constituírem elementos de subversão do sentido com que foram criadas.

Temos direito ao voto, a eleger os representantes e a participar na vida das comunidades como cidadãos, mas a maioria alheia-se de um exercício cívico ativo, exigente e consequente. O que tanto custou a conquistar é desprezado como se escolher quem nos governa, escrutinar o exercício do poder e exigir transparência fossem coisa pouca. Não somos capazes de mais e melhor?

Temos liberdade de expressão, que não tivemos durante o Estado Novo, mas exercemo-la sem filtro de senso, sem olhar para o contributo de cada um para melhor e num constante devir de maledicência, bota-abaixo e insulto, como se pode ver pelas caixas de comentários dos órgãos de comunicação social em suporte digital ou nas redes sociais. Não somos capazes de mais e melhor?

Temos liberdade de imprensa, mas esse bem absoluto é distorcido pelos arbítrios, pelas promiscuidades com interesses e pela instrumentalização do direito a informar, num bailado de degradação, falta de rigor e volatilidade que tem conduzido a uma crescente redução de leitores, telespetadores e ouvintes perdidos para a escolha individualizada de conteúdos informativos e de entretenimento. Não somos capazes de mais e melhor?

Temos direitos sociais consagrados na Constituição que resultam dos impulsos originários da implantação da República em matérias como a educação, a saúde e proteção sociais que não são desenvolvidos numa lógica de valorização, sustentabilidade e promoção de transformações positivas individual e comunitariamente. Por exemplo, na educação persistimos num exercício de ensino do replicar em vez da promoção do pensar, da agilização dos conhecimentos em função das realidades e da geração de exigência no que fazemos. Para existir, basta reproduzir, estar disponível ou ter acesso a um direito. É uma lógica de mínimos que se projeta em tudo. Não somos capazes de mais e melhor?

A República faz anos, em pleno contexto pandémico, num quadro em que são muitos os sinais de distorção dos seus valores e da sua capacidade de atualização para uma vivência individual, comunitária e global muito mais complexa e exigente. A gravidade dos desfasamentos, das distorções e dos abusos só poderá ser superada por uma de duas vias: a consciência voluntária da realidade das entorses e a sua correção, mesmo que em divergência com interesses instalados, ou a emergência de expressões de rutura cívica, sem controlo de danos e com riscos para os pilares democráticos e dos Estados de Direito.

Os reajustamentos podem começar pela reposição do sentido original da ética republicana no desempenho de funções públicas: o escrupuloso cumprimento das obrigações legais inerentes ao cargo; a primazia absoluta do interesse público sobre os interesses particulares, em geral, e os interesses pessoais, em especial; a integridade e recusa de vantagens ou favores pessoais; a rejeição das relações familiares (nepotismo) ou de amizade (amiguismo) como critérios de decisão no governo da coisa pública.

Nos 110 anos da República, ir a reboque da realidade, parece ser um risco maior, mas que alguns estão dispostos a correr para preservar os poderes e benesses atuais, ainda que coloquem em causa muitos futuros. São expressões do “vale tudo” que se entranharam nos comportamentos individuais de alguns e no funcionamento das sociedades atuais.

Os valores centenários da República e a sua ética precisam de melhores executantes e de exercícios cívicos mais exigentes, que permitam conjugar o sentido dos princípios de há 110 anos com as realidades, das dinâmicas e os riscos atuais. Não o fazer é claudicar no essencial, algo que também poderá acontecer com o espírito e o funcionamento democrático se nada for feito para responder aos desafios atuais até 2024, ano em que se comemorarão os 50 anos da Revolução de Abril. Os sinais estão aí é agir e exigir.

NOTAS FINAIS

REPÚBLICA DOS ESQUECIDOS. A Região Autónoma dos Açores vai ter eleições dentro de 20 dias, a 25 de outubro. Não estar no radar dos media e das pessoas até pode ser normal, afinal parece que há sempre uma parte do país que só existe nas desgraças, mas não estar nas preocupações do exercício político da atual liderança do PS já é algo excêntrico e invulgar. A Autonomia Regional consagrada pelo Estado implica conhecimento da realidade, proximidade e interação sustentada, não o compreender é gerar espaço para sentimentos que não podem fazer sentido numa Democracia com mais de quatro décadas de existência. É fazer com que a circunstância do exercício do poder, por ação ou por omissão, belisque o essencial como comunidade de destinos.

REPÚBLICA DO BOTA-ABAIXO. Alguns gostam de invocar a grandeza da história do Sport Lisboa e Benfica, proclamar grandes princípios e sublimar o seu próprio perfil, para depois desqualificar a alternativa com um bota-abaixo que recorre a argumentos, diretos e indiretos, e a insinuações canalhas que nem os mais empedernidos adversários do Benfica utilizam. Como pode alguém anunciar-se portador de qualificação quando só desqualifica. Não fizeram no passado, não se apresentam no presente com sentido positivo, o futuro seria sempre formatado por essa forma de vida. Não fizeram, não fazem nem querem deixar fazer. Pelo futuro, apoio a candidatura de Luís Filipe Vieira.

REPÚBLICA DAS BANANAS. A categoria tanto se aplica aos inconsequentes exercícios de libertinagem de expressão nas redes sociais e nos espaços de comentário dos media online como à alegada dispensa do presidente do Tribunal de Contas pelo primeiro-ministro através de um telefonema. É a mesma falta de sentido cívico do exercício da liberdade de expressão ou do sentido de Estado que presidiu à dispensa de diretores distritais da segurança social por fax, concretizada por um governo do PSD/CDS, e que o PS tanto criticou.

Escreve à segunda-feira