Literalismo, evangelismo, originalismo


A palavra da lei não é igual para todos, muito menos nos EUA.


Como todas as obras humanas o texto escrito emancipa-se, ao ponto de o criador não se reconhecer na criação. Descontadas as relações familiares, enquanto as Parcas não separam criadores e criaturas, a opinião do criador é irrelevante face à autonomia da criação. Assim acontece com a criação artística, pelo menos nos casos em que a mesma chegou até nós, não tendo sido destruída por um criador arrependido. A opinião de Shakespeare no que tange à escolha do seu melhor soneto é irrelevante, bastamo-nos com a opinião sucessiva e contraditória da crítica e com a liberdade que cada leitor pode exercer na devoção a uma particular estrofe.

A interpretação do texto escrito pode ser auxiliada pelos elementos de intertextualidade, pelas circunstâncias históricas que rodearam a produção literária, pelas intenções anunciadas pelo autor ou imaginadas pelo intérprete. Publicada a obra, o texto fica aberto à liberdade interpretativa, são descobertos novos sentidos, adequados ao tempo, jamais imaginados pelo autor e, provavelmente, nunca por ele queridos. A interpretação do texto escrito é uma tarefa do leitor não é uma obrigação para com a vontade do escritor. A exegese não se confunde com uma sessão espírita em que se pergunta ao livro o que é que o escritor quis nele dizer.

A literatura religiosa não foge a esta realidade pelo que os apelos ao literalismo na interpretação de textos religiosos escondem um programa ideológico em direcção a uma enganadora auto-suficiência do imediatismo significativo do texto. Sendo o único sentido admissível o literal, todos poderiam apreendê-lo e deveriam ser afastadas todas as construções hermenêuticas que procurassem lidar com as contradições literais ou densificar as dimensões metafóricas, imagéticas, poéticas ou até as simples parábolas. A boa interpretação seria a literal, aquela que era feita pelas almas simples antes de a “cultura” interpretativa ter profanado o texto religioso. O programa literalista propõe um regresso às origens, necessariamente literais e conservadoras.

Os literalistas não se limitam aos textos religiosos, avançam afoitamente para a normatividade externa, imposta coactivamente pelo Estado. O literalismo normativo revisita o mito da idade de ouro, coincidente com o da criação do texto normativo. A boa interpretação do texto é a que foi querida pelo autor, a que corresponde ao sentido “original” do texto normativo. Procurando emprestar um cunho democrático à interpretação, os originalistas alargam a espiral hermenêutica ao “povo” que conviveu com o legislador de antanho e cujo entendimento sobre o significado da norma então aprovada deve perdurar até aos dias de hoje.

O originalismo floresceu nos EUA como resposta à interpretação do texto constitucional pelo Supreme Court, reconhecendo no sentido do texto novos direitos (construtivismo). Os originalistas invocam o argumento historicista, o conforto da ideologia conservadora e criticam o perigo da “revisão” informal da Constituição, à margem dos mecanismos do artigo V, da vontade popular e dos Estados.

A protecção da igualdade por via da lei só chegou em 1868 ao texto constitucional americano. E o entendimento original da igualdade passou pelo “equal but separate”. O Supreme Court foi capaz de fazer uma leitura actualista e constitucionalmente adequada do texto constitucional, nos antípodas do que os “Founding Fathers” desejaram e, ainda hoje, longe do sentir de uma percentagem não despicienda da população.

Que fazer com as decisões “progressistas” do Supreme Court, agora que nele se instala uma maioria de originalistas? To be continued.

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990