1. Apesar da linguagem, à esquerda e à direita, estar saturada de (reivindicações de) moral(idade), em realidade, em simultâneo, a sociedade embrutece. A demanda da autenticidade contra o suposto artificialismo das formas, conduz a uma rédea livre a toda a sorte de furores e agravos dirigidos a terceiros, abolindo-se um módico de respeito, objectivo (e objectivado em rituais), como endosso social. As boas maneiras não estão de moda (p.70).
2. Um ritual, a cortesia: “são as formas rituais que, como a cortesia, possibilitam não só um belo trato entre as pessoas, mas também um grácil e respeitoso relacionamento com as coisas”(p.13). É porque existe (está aí), desde há muito, em uma comunidade, uma forma de cumprimento/trato que se impõe (usos e costumes cominam obrigação) em determinadas ocasiões (mesmo que em tempos horizontalizados, reclamem, de algum modo, certo assentimento pessoal) que é possível o decorrer de uma vida social mais aclimatada. Nos rituais, desaparece o ego, des-psicologiza-se a pessoa (mesmo que haja assentimento, a convenção supera o “eu” – que a não criou e lhe presta obediência), esta une-se a uma forma que é (encarna) comunidade (que se faz e permanece). Se hoje temos (incessante) comunicação sem comunidade, os rituais seriam, ainda, uma contracção face ao idêntico – frente, pois, a um excesso de positividade -, afirmando-se, inversamente, como comunidade sem comunicação. Os rituais são o que permite a permanência, a duração, o perene; em vez de obstáculos, barreiras a suplantar, os rituais mereceriam o obséquio que se devota a elementos que contém a chave da preservação (“os rituais são actos simbólicos que transmitem e representam os valores e regimes que tornam coesa uma comunidade”, p.11). Em uma sociedade da transparência, na qual avulta um narcisismo voraz, a conformidade ritual surge condenada a um degredo que a vozearia e o espreguiçar boçais perseguem (a autenticidade – ser “ele mesmo” -, registe-se, desvaloriza a acção social).
3. Em Do desaparecimento dos rituais (Relógio d’Água, 2020), o filósofo alemão-sul coreano, Byung-Chul Han prossegue e desenvolve reflexões que podemos já encontrar, e antever, em seus ensaios precedentes: o humano deixado entregue a si mesmo, sem necessitar de outra chibata que não a promessa de um paraíso afluente caso se explore até ao tutano (o empresário de si próprio), não cessa de trabalhar, a ordem é produzir, e essa produção degrada a vida, não a levando suficientemente a sério para nela descortinar qualquer transcendência. O acumular, como ordem, relevará do medo da morte, e da procura de preservar, até ao limite, a vida nua. Gilles Lipovetsky já havia deixado escrito, em A era do vazio, que sem finalidades mais elevadas, a preservação da saúde (própria, por banda de cada indivíduo), sem mais, se transformara em grande desígnio – senão único; durante a pandemia em que nos movemos, alguns discursos, nem sempre devidamente calibrados/contextualizados/explicados, exortando a nenhum toque em alguém que, potencialmente, pudesse padecer – aparentemente contrariando os que, durante séculos, haviam tocado para acolher, para não deixar só, para amparar, quando mais ninguém se dispunha a amparar, os outros, mesmo que arriscando a própria vida, ou superando o entendimento desta declinado em vida nua, tendo tais exemplos ecoado, profundamente, pelos tempos (mas, afinal, estariam errados?, questionar-se-ia o leitor em nosso tempo, com certa amargura) -, porventura tenham levado longe de mais – um ponto explorado por Agamben – o foco numa auto-preservação de acordo com o espírito do tempo – sem o devido sublinhado, ou primado do evitar contagiar/fazer perder todos os demais.
Vida degradada, também, ao observar-se cada paragem como descanso – para continuar a produzir, para trabalhar bastante no instante imediato a seguir -, não lobrigando aquela enquanto contemplação, fruição, fim em si mesmo, gozo, dom (“o descanso sabático não se segue à criação. Mas antes é apenas o que faz que a criação seja completada. Sem ele, a criação está incompleta”, p.41). Vida dessacralizada quando não se leva o jogo suficientemente a sério, apenas existente, em nossas sociedades, em sentido fraco – uma vez mais a tomada de ar, o oxigénio que permite retomar o trabalho; não já, assim, a presença do jogo em sentido forte, como naquela comunidade indiana em que o rei, de 12 em 12 anos, a deixar ao jogo a sorte do seu mandato, com milhares de guerreiros a jogarem a sua própria vida e corpo numa aposta comunitária – o jogo, em sentido, forte, eliminaria a separação da morte da vida (mesmo que isso nos cause sobressaltos – e, já agora, diga-se, discordância – acerca da aniquilação voluntária e intensa da mesma defendida por alguns reconhecidos filósofos ou cineastas do século XX – Chul-Han convoca Bataille, Foucault ou Schroeter -, segundo os quais um suicídio depressivo, exausto, vazio, só ocorreria sob um regime neoliberal).
4. A recusa do artifício, da forma, a preferência da autenticidade (a qualquer custo) releva, ainda, para a análise da atual pouca frequência da poesia. Nos poemas, a linguagem joga e, por isso, quase os não lemos: “os poemas são cerimónias mágicas da linguagem. O princípio poético devolve à linguagem o seu gozo, ao romper radicalmente com a economia da produção de sentido. O poético não produz. A poesia é, portanto, uma «insurreição da linguagem contra as suas próprias leis», que servem a produção de sentido. Nos poemas, aprecia-se a própria linguagem” (p.63). O repelir da ambiguidade, da nuance, a suspeita sobre a subtileza manifesta-se, de igual modo, na pouca receptividade à piada – diríamos, sobretudo, na pouca hospitalidade de que goza, em nossos dias, a ironia que, neste tempo, quase sempre aparece explicada, aí imediatamente negando a sua natureza de dizer o contrário do que afirma, não vá o interlocutor ofender-se -, lá onde o efeito do significante prima sobre o do significado. E, em qualquer caso, o princípio do trabalho opõe-se ao princípio do prazer, o que em tempos híper-moralistas – no que converge Chul-Han com Henry-Lévy – significará levar à letra a divisa conhecida, entre nós, no início dos bancos da escola: “muito riso, pouco siso” (não há dúvida de que a híper-moralização vai a par com a ausência de qualquer consideração de complexidade presente no nosso devir, ou seja, a completa infantilização das mentes e de uma substancial parte da nossa vida colectiva).
5. Estamos obcecados, como também argumentou Josep Maria Esquirol, com informação, a última hora que nos pisca dos mais variados ecrãs e/ou gadgets (de que nos servimos), embrenhados no trânsito de novidades – obsoletas em meia hora. De uma informação para a outra, de uma vivência para a seguinte, de uma sensação para a imediatamente sucessora, sem nunca finalizarmos nada (ao fim e ao cabo, a definição do homem light para Enrique Rojas). As séries (televisivas), enquanto objecto cultural proeminente neste instante que atravessamos, serão, potencialmente, tributárias, na sua popularidade, do dar vazão a esse movimento bulímico (o visionamento em catadupa e imparável de séries sem fim). Mesmo o campo do ensino (scholé com liame a ócio), e, nele, contando com o nível superior (“na Idade Média, a universidade era tudo menos um centro de formação profissional (…) a universidade convertida em empresa com os seus clientes não necessita de rituais”, p.46), nas sociedades que engendrámos, (tal) nunca está concluído (a “aprendizagem ao longo da vida não permite concluir os estudos” (p.33), sempre em busca de um plus que torne a performance (produtiva) mais eficaz, e intervale, ao mesmo tempo que contribua, para a destruição criativa seguinte): “o constante update em todas as dimensões da vida não permite nenhuma finalização” (p.16). Das puras informações não emana nenhuma magia (nem nenhuma sabedoria). Vivemos numa cultura do significado que entende o significante, a forma, como algo exterior. Uma cultura, pois, hostil ao jogo e à forma.
6. O desaparecimento dos símbolos está em profunda conexão com a atomização da sociedade. No diagnóstico do languidescer daqueles, há como que uma chamada de atenção ao empoderamento comunitário – em realidade, uma reconstrução, a da comunidade, tão necessária a um ser social como o Homem, mas tão longe de se ver, sequer, iniciar, cremos – que estes continham/contém/conterão – note-se que foi já proposta a disciplina de “estudo dos rituais”, tendo em vista o ensino das repetições culturais como técnica cultural (p.17) – e, nessa medida, a vivacidade intensificada do vínculo – “um dos problemas mais graves do nosso tempo é o declínio da interconexão através dos símbolos comuns” (p.15). No dissecar e critica de uma era neoliberal, patente neste como em outros seus livros, Byung Chul-Han descarta a ideia de capitalismo enquanto religião, pelo menos se interpretada, esta, na acepção de religare, criar vínculo – “de modo algum” [assim é] (p.46), assevera. É que “é intrínseco aos dispositivos neoliberais, tais como a autenticidade, a inovação e a criatividade, coagirem-nos permanentemente ao novo” (p.18). Os rituais, por sua vez, vivem da repetição. Mais: um mercado global, sem fronteiras, implica uma desterritorialização – e o ser humano é um ser locativo, mesmo que não se faça uma ingénua defesa de um cerramento fundamentalista – e é esta, acompanhada de uma camada de homogeneização cultural – sendo que a cultura é, igualmente, uma forma de cerramento/finalização/concretização, ainda que desejavelmente inclusiva e não excludente – que demanda uma comunicação incessante: “É precisamente quando desaparece a proximidade primordial que se comunica em excesso” (p.36) (…) A pressão actual para comunicar leva a que não possamos fechar os olhos ou a boca. Profana a vida” (p.42).
A política baseada no Twitter é de afecto, sendo que as emoções/afectos, segundo Chul-Han, remetem para a pessoa/indivíduo (“os afectos e as emoções passageiras dominam os estados do indivíduo isolado”, p.20), enquanto os sentimentos se transladam para a comunidade – no rito funerário, por exemplo, há um sentimento objectivo, um sentimento comunitário (e o desaparecimento dos rituais faz com que se estejam a gerar cada vez menos sentimentos comunitários). A política é razão e mediação. A razão, que necessita de muito tempo, cede lugar aos afectos de curto prazo.
A autenticidade, a recusa da forma prescinde tanto do duelo nobre na guerra – mecanismos/plataformas que evitavam mais violência no decorrer do conflito bélico – em função de dispositivos de uma pretensa guerra anódina, incolor e inodora (conduzida à distância), quanto da sedução, apartando o eros do mundo, ficando o pornográfico como regra (o sexo em registo maquinal).
7. Os rituais “configuram transições essenciais da vida (…) Os ritos de transição (…) estruturam a vida como se fossem estações” e, desta forma, afirmaram-se como âncoras fundamentais ao humano. Perdemos o sentido da festa (“o trabalho pertence à esfera do profano; a festa congrega e une (…) Na festa enquanto jogo, a vida representa-se a si própria” (p.44). Não aspira a nenhum objectivo e nisso consiste a sua intensidade).
Ritual por antonomásia, a missa: “com a ajuda da missa, os sacerdotes aprendem a manejar serenamente as coisas; elevam suavemente o cálice e a hóstia, limpam pausadamente os vasos, viram as páginas do livro; e o resultado da bela relação com as coisas é a alegria que enche o coração” (p.14). Ora, a “atenção profunda como técnica cultural constrói-se justamente com recurso a práticas rituais e religiosas” (p.17). Relegere: fixar a atenção. Toda a práxis religiosa é um exercício de atenção. O templo é um local de profunda atenção. Sendo que, desde logo, como afirmou Malbranche, “a atenção é a oração natural da alma”. Como se veio de dizer, a repetição é a característica essencial dos rituais; mas uma repetição que gera grande intensidade e, em virtude da mesma, nunca uma repetição banal. Para Kierkegaard, “o que cansa é o novo, nunca o antigo”; o antigo é o “pão quotidiano que sacia e é bendito”(p.18). Os rituais geram um saber e uma memória corpórea (p.20) e, aliás, mais radicalmente, como disse Gadamer, “o re-conhecer captura o permanente no fugaz” (p.11). A religião cristã é narrativa – Páscoa, Pentecostes, Natal – e, nela, se funda o sentido e a orientação (p.48). A Igreja é lugar de congregação.
Ao lermos Byung Chul-Han sobre o desaparecimento dos rituais, do Homem como ser locativo, a aldeia como lugar de cerramento – que quer dizer, também, (de humana) finalização [compreendida, não só, mas também, como teleologia]/concretização/realização -, não deixámos de evocar Charles Taylor sobre o modo como, atualmente, se encara o sentido da vida – que, para muitos, deixou de ser claro, como sucedera, durante séculos, em regime de Cristandade (obediência aos preceitos da Igreja em busca da salvação), e, face às mudanças, relflecte posições que vão desde quem considera que a vida não tem sentido, até reacções que podem ir da tentativa de dar sentido ao sem sentido, como procurou Camus, até à autodestruição ou paralisação – e, sobretudo, e de novo, impõem-se-nos a lição de Lipovetsky: se antigamente, a direcção/orientação (axiológica vital/comunitária) era clara mesmo que à custa da liberdade (pensemos na problemática da rejeição do divórcio), hoje, em liberdade, não há nenhuma direcção, sendo a desorientação a marcar o tempo (“nunca o stress foi tanto”, registará o filósofo francês, nem nunca se consumiram tantos medicamentos para acalmar um sentimento de perda de sentido – neste caso, muito mais Prozac e menos Platão).
No balanço, à luz, aqui, de uma mundividência cristã, da mais recente elaboração de Byung Chul-Han, duas ou três notas adicionais: i) se o cristianismo pode legar-nos toda a valorização, maturada na sua história, da contemplação, da importância do ócio e, inclusive, da liturgia como “brincar diante de Deus”, comparada ao jogo da criança que nele, apenas, é (sem objectivos nem porquês, como a rosa), como Guardini indicou, e este entendimento frente às concepções, talvez hegemónicas, exclusivamente viris e produtivistas (e como tais valores/elementos merecem ser re-conhecidos!), por outro prisma, a absoluta recusa do trabalho, como elemento determinante para o humano, em função do exemplo grego antigo – Chul-Han louvando-se em Lafargue – parece, aí, esquecer os escravos e demais excluídos da cidadania (ateniense), os últimos a quem, no decurso da história, a memória do tekton nazareno serviu de inspiração, motivação, conforto ou revalorização (em especial, dos que se dedicaram, ao longo dos tempos, aos trabalhos manuais – sendo que estes, mesmo em vindo a rarear o trabalho (a “sociedade de trabalhadores sem trabalho”, a que aludia Hannah Arendt), como alguns prevêem em função da permanente aceleração tecnológica, parece sempre terem lugar); ii) a objectivação da forma social encarnada na exterioridade do rito não tem por que obnubilar, pelo menos em absoluto, a dimensão moral (em contexto democrático, o assentimento ao ritual, que me precede, de cortesia, a que adiro, manifesta um respeito, de que participo, agora voluntariamente, e nunca exclusivamente como nódulo de uma corrente, pelo outro); iii) o humano será sempre um fim e nunca um meio para qualquer ordem de natureza política ou outra (no que seria forma de paganismo) e a vida, que, efectivamente, merece ser qualificada (em especial atenção aos mais frágeis), aparece como valor primordial (nunca descartável).
P.S: para o André Ramos Alves, caro amigo, ilustre causídico vianense e cultor/defensor das formas e das boas maneiras.