A pandemia, a descentralização e as desculpas de mau pagador


Não é a descentralização que perde força por via da pandemia. É a pandemia que ganha força na ausência da descentralização.


Em 1998, Portugal referendou a regionalização. E os portugueses manifestaram-se clara e maioritariamente contra: 61% não quiseram fatiar o país em novas regiões administrativas. Uma das razões pelas quais a regionalização foi rejeitada prendia-se com o pressuposto, tão válido nessa altura como hoje, de que era possível transferir mais poderes, autonomia e responsabilidade do Estado central para os municípios e freguesias sem que isso implicasse subdividir o país em regiões. A descentralização, o municipalismo, era a resposta.

Passaram 22 anos sobre esse debate. Portugal continua a ser um dos países mais centralistas da Europa e, também por isso, dos mais assimétricos em termos de rendimento. A desigualdade económica é, porventura, a maior e mais persistente clivagem na sociedade portuguesa. Chega a ser confrangedor que não façamos o que está ao nosso alcance para a debelar.

Com mais de duas décadas volvidas sobre o referendo, a regionalização continua a não ser a resposta certa para a chaga das assimetrias. Lamento, porém, que tantas tenham sido as promessas, tão altas as expetativas e tão curtas as concretizações em matéria de descentralização. A nossa resposta à pandemia poderia ter sido diferente, mais capaz, se esta reforma tivesse dado passos mais firmes.

Depois de tantos Governos a terem prometido, mas nenhum concretizado, acreditei que desta vez seria diferente e que a descentralização ia mesmo ver a luz do dia. Pelos sinais que vou tendo e pelo muito trabalho que continua por fazer, parece-me uma evidência que as forças centralistas estão, como sempre estiveram, a fazer descarrilar a reforma prometida. A culpa é passada para a circunstância pandémica. Isso explica uma parte da história. Mas não explica a história toda.

Em primeiro lugar, a pandemia não explica que a administração do Estado continue a ser profundamente antimunicipalista. Há um exército de agentes burocráticos para quem a descentralização significa perda efetiva de recursos humanos e financeiros. O mesmo é dizer: perda de poder. Este “Estado profundo” tudo fará para que “a grande reforma do Estado na legislatura”, como muito bem apontou António Costa, nunca passe do papel.

Em segundo lugar, a pandemia também não explica a inação. A Comissão de Acompanhamento da Descentralização – que reúne membros do Governo, Associação Nacional de Municípios e Freguesias e grupos parlamentares – reuniu uma única vez num ano. Coordenada pelo secretário de Estado Carlos Miguel, um insuspeito municipalista, apelo a que a comissão tenha maior vigor e maior ritmo. As autarquias precisam disso, as pessoas precisam disso. Por uma simples razão que para todos será de fácil compreensão: a reforma da descentralização não é uma abstração político-jurídica. Tem tradução concreta no dia-a-dia das pessoas: cria eficiências no processo de decisão, aproxima os cidadãos dos centros de decisão, reforça a democracia e melhora a gestão dos recursos. Processos descentralizadores permitem fazer mais, fazer melhor e gastar menos. O relatório da comissão, ao apontar para a solução da regionalização e ao abrir outra vez a caixa de Pandora referendária, está a deixar-se cair suavemente no conforto do imobilismo.

O que me leva, por inerência, à terceira explicação que fica por dar. Há duas formas de matar os processos descentralizadores: por um lado, acelerando a reforma e tratando tudo por igual; por outro lado, desfraldando a bandeira da regionalização. Das duas, uma: ou a comissão só eufemisticamente pode ter sido criada para a “descentralização”, ou está a servir de cavalo de Troia para a regionalização.

Como autarca e como cidadão, sinto-me defraudado com os resultados que alcançámos até aqui.

Os astros políticos estavam alinhados.

À frente da nação, um Presidente da República entusiasta e apoiante do processo descentralizador.

A chefiar o Executivo, um primeiro-ministro com provas dadas no poder local.

A liderar o maior partido da oposição, um parceiro comprometido com um acordo escrito.

As duas maiores áreas metropolitanas do país, sintonizadas.

E, porém, a descentralização continua por fazer. Educação, saúde, património, cultura, habitação, mobilidade, ambiente e ordenamento do território: quase tudo o que foi prometido continua por fazer.

A descentralização é boa porque responsabiliza os poderes públicos. Porque dá mais liberdade e qualidade de serviço público aos cidadãos. Porque é um princípio básico de racionalidade económica no reforço do Estado social. Há assim tanta gente a quem isto seja indiferente?

Passámos os últimos 20 anos a debater a descentralização. O país foi perdendo competitividade, prosperidade e até igualdade. Chegou a pandemia. E quando, para a enfrentar, os cidadãos poderiam confiar em vários níveis de governo com agilidade e força executiva, eis que o poder continua inteiramente concentrado em Lisboa, com isso debilitado a capacidade de intervenção do Estado.

Não vale a pena disfarçar a nossa incapacidade estrutural com desculpas de mau pagador. Não é a descentralização que perde força por via da pandemia. É a pandemia que ganha força na ausência da descentralização.

 

Presidente da Câmara Municipal de Cascais

Escreve à quarta-feira