A liberdade, um assunto complicado…


É facto que não carece de demonstração que o sistema de curricula obrigatórios é uma forma de endoutrinação e de construção de conformismo social, adaptado aos consensos existentes e aceites maioritariamente.


É uma coisa óbvia que sem liberdade não pode haver democracia. A democracia não se resume a votar de tantos em tantos anos e só existe verdadeiramente quando a liberdade de fazer escolhas, afirmar opiniões e fazer oposição àquilo que viola a nossa consciência está garantida. Sem isso, trata-se de uma democracia meramente formal.

É verdade que as democracias modernas repousam num sistema cada vez mais alargado de consensos sociais e de adquiridos civilizacionais que chegam a permitir em situações extremas, como a recente pandemia, limitar drasticamente liberdades fundamentais, como a liberdade de movimento, sem que o corpo social sinta que a democracia está em causa, mas essas são situações excecionais em que o adágio salus publica, suprema lex (a salvação comum é a lei suprema) se nos impõe.

Fora disso, as limitações à liberdade são intoleráveis.

Um dos aspetos mais notáveis de um sistema democrático é o da liberdade de escolha, designadamente em matéria de educação. É facto que não carece de demonstração que o sistema de curricula obrigatórios é uma forma de endoutrinação e de construção de conformismo social, adaptado aos consensos existentes e aceites maioritariamente. No entanto, há situações em que esses curricula obrigatórios ferem a consciência dos pais, e a questão é a de saber se têm o direito de eximir os seus filhos de ensinos que firam a essência daquilo em que acreditam.

Em confronto estão duas ordens de valores: por um lado, a necessária coercividade do ensino obrigatório que, ao criar um corpo comum de conhecimentos transmitidos, cria um campo de igualdade para todos os alunos; por outro lado, o respeito pela consciência e direito de escolha dos pais em relação àquilo que é ensinado, ou inculcado pelo sistema escolar, aos seus filhos.

Em 2002, uma senhora italiana de origem finlandesa que tinha dois filhos no sistema escolar italiano decidiu opor-se à exibição de crucifixos nas escolas. Depois de queixas e reclamações, foi para tribunal, perdeu sucessivamente e acabou por apelar ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH). Este tribunal deu-lhe razão, impondo ao Estado italiano que ordenasse a remoção de todos os crucifixos de todas as escolas, com o argumento de que a presença de crucifixos nas salas de aula era uma violação da liberdade dos pais de educar os seus filhos segundo as suas crenças e da liberdade de religião dos alunos. O acórdão do TEDH foi unânime, sendo juiz o português Ireneu Cabral Barreto, que também o votou.

O Estado italiano recorreu deste acórdão e a Grande Câmara do Tribunal, em acórdão irrecorrível de 18 de Março de 2011, deu razão ao Governo italiano, porque não ficou provado que, mantendo os crucifixos nas paredes das salas de aula das escolas públicas, não seja assegurado o gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

Mais precisamente, o TEDH disse: “Nada prova a possível influência que a exibição de um símbolo religioso nas paredes das salas de aula poderia ter sobre os alunos. Portanto, é razoável supor que não tem efeito sobre os jovens cujas crenças estão em formação”.

Bem pelo contrário, o ensino ministrado por professores de uma escola de partes do curriculum obrigatório imposto pelo Estado português, com o “selo de garantia” científica dado pelo Estado, tem todas as condições para ser razoável supor que tem efeito sobre os jovens cujas crenças estão em formação. Aliás, o objetivo é precisamente esse: inculcar nesses jovens, de forma indelével, um conjunto de conhecimentos e crenças que passam a influenciar forçosamente a sua forma de pensar e de aferir o mundo que os rodeia, para o resto da vida.

É obviamente por isso que o ensino ministrado nas escolas tem de corresponder a um consenso social alargado, e não às crenças e ideologias de uma minoria, por mais vocal ou influente que seja.

Foi por essa razão que o ensino de religião e moral passou a ser opcional há longos anos, ou até inexistente. O resultado são várias gerações de alunos que desconhecem inteiramente o legado greco-judaico-cristão, que é o fundamento da civilização ocidental em que vivemos, mas quem quiser pode pôr os seus filhos a frequentar as aulas dessas matérias, dentro ou fora do sistema escolar – ou seja, a exercer a sua liberdade e autonomia, da mesma forma que aqueles que recusam esse conjunto de valores e de ideias podem, fazendo uma escolha igualmente legítima, subtrair os seus filhos a essas influências.

Da mesma forma, foi criada uma disciplina opcional de Cidadania e Desenvolvimento, com um curriculum estimável, que procura inculcar nos alunos (a partir da adolescência) alguns princípios básicos de uma sã convivência social.

Acontece que a atual maioria política, de esquerda ou extrema-esquerda, decidiu “enriquecer” os temas em questão nessa disciplina com um volante de ideias sobre ideologia de género e uma preocupante deriva para temas marginais do Bloco de esquerda, que são apresentados como a única ciência sobre a matéria. Para não falhar nada, decidiram ainda que o seu conjunto de valores e crenças passasse a ser de ensino obrigatório.

Ora, isso muda tudo: o ensino obrigatório de um conjunto de valores de extrema-esquerda, cujo objetivo é o de pôr em causa e destruir o conjunto de valores consensuais na sociedade portuguesa, constitui uma verdadeira guerra ideológica e uma tentativa extremamente agressiva de engenharia social, com o fito de estabelecer como novo consenso social o exato contrário daquilo em que a esmagadora maioria das pessoas acreditam, como se fosse uma verdade revelada e insofismável.

Houve pais que reagiram e, depois de terem tentado eximir os seus filhos a este ensino agressivo das crenças de uma minoria, os proibiram de frequentar as aulas em questão. O sistema escolar reagiu com uma violência inusitada, ao ponto de querer obrigar duas crianças, aliás excelentes alunos, a regredir dois anos na sua formação escolar, como castigo pelo rebate de consciência dos pais. O método é, como sói, puramente estalinista.

Um conjunto de pessoas decidiu subscrever um manifesto de apoio a esses pais (“Em defesa das liberdades de educação”). A reação do sistema foi mais uma vez feroz: o secretário de Estado da Educação, um tal João Costa, acusou os subscritores de serem uns “terraplanistas” (acreditarem que a Terra não é redonda…) ou uns criacionistas (leitura literal da Bíblia que postula que o homem foi criado por Deus há seis mil anos, e a mulher a partir de uma costela do homem…), detratores da cidadania, que pretenderiam opcional…

Um bando de comentadores de esquerda, ou de extrema-esquerda, acusaram os subscritores de serem gente ligada à “direita radical” ou à extrema-direita. Os mais moderados (se é que os há) aventaram que os pais têm sempre a possibilidade e até a obrigação de corrigir em casa o que é dito aos filhos na escola, e que o que os pais em questão estavam a fazer era demitir-se dessa “obrigação”; alguns idiotas úteis, mas influentes, até achavam a causa valiosa, mas encolheram-se ao ver a lista dos subscritores, gente que não prezaria a democracia, como Adriano Moreira, José Ribeiro e Castro, D. Manuel Clemente, Manuel Braga da Cruz, Sérgio Sousa Pinto e tantos outros, entre os quais eu próprio.

Perante este absurdo conjunto de argumentos e insultos, resta a quem preza a liberdade bater-se por que ela possa ser exercida, com coragem e determinação, travando uma verdadeira batalha civilizacional em que os adeptos confessos de Estaline, Trotski, Enver Hoxha, os Khmers Vermelhos, Fidel Castro ou Nicolás Maduro não possam ganhar e a liberdade vença.

 

Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça, subscritor do “Manifesto por Uma Democracia de Qualidade”