Regina Guimarães. Um percurso guiado entre cadernos vivos como florestas

Regina Guimarães. Um percurso guiado entre cadernos vivos como florestas


Para os tantos que tomam a poesia como a naftalina da beleza, lá vai surgindo raramente uma voz como a de Regina Guimarães que, do lado da sofreguidão, em vez de fazer da escrita um consolo, elabora nela todo um programa de insubmissão.


Quando foi anunciada “Antes de mais e depois de tudo”, a primeira antologia dos poemas de Regina Guimarães, caiu nas redes um vídeo com menos de um minuto em que uma série de cadernos eram postos uns sobre os outros, numa pilha onde o preto e o branco eram dominantes até esta ser encimada por esta edição preparada por Rui Manuel Amaral, e que saiu há semanas na colecção de poesia da editora Exclamação. O garridismo solar da antologia marca um contraste que, agora, parece ter sido ansiado ao longo de décadas. Pelas contas do antologiador, são cerca de 40 os livros de poesia que a autora foi publicando, e esta selecção, que não chega às cem páginas, deixa de fora milhares de poemas para cada um dos que ali comparecem. O antologiador fala numa “obra colossal”, de uma “serva do verso”, alguém para quem a poesia é “tão necessária como o pão e a água”. Vinca ainda o “fenómeno biológico” que a liga à escrita, como se entre a pele e o papel se estendesse esse campo de metamorfose e recriação, o qual nos dá uma perspectiva da poesia como câmara para ecos intensificados da vida.

Nascida no Porto, em 1957, o primeiro livro de Regina Guimarães é do ano da revolução (1974) – “Ritos de Eterna Posse”. As edições foram-se sucedendo em pequenas tiragens, num regime que roça a clandestinidade, e o facto é que a marginalidade ostensiva no modo como esta obra tem circulado reflecte a sua crítica ao ambiente de concurso e de alarde que resulta dos padrões e imperativos comerciais que hoje nos são impostos, e que obrigam a ter em conta como todos os processos artísticos, nos nossos dias, são primeiramente definidos na adaptação que fazem ao mercado, seja redundando em objectos de consumo, ou, em alternativa, agudizando o confronto entre naturezas antagónicas, sobressaindo, melhor ou pior, o carácter anti-institucional e inconformista das obras que resistem à esterilização. Entre tantas intervenções feitas a este propósito, recorde-se o ensaio “Desobedecer às Indústrias Culturais” (ed. Deriva), publicado pela autora em 2017. 

Além de dramaturga e letrista, realizadora e crítica de cinema, falta acrescentar que Regina Guimarães foi docente na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e na ESMAE, e não vamos mais longe aqui no esforço de mapear a multiplicidade das linhas com que foi cosendo a sua intervenção tão contundente e esteticamente desafiante, mas importa, para falar da poesia, reconhecer esse ímpeto quase infixável, o de uma liberdade indomesticável que se esquiva a tudo o que sejam fórmulas que ameacem petrificá-la, mesmo que pague com isso o preço de uma certa invisibilidade. Aqueles cadernos parecem atulhados de notas, estratégias e senhas, valiosos segredos de guerra, ou são como demarcações de cheias e outros desastres ou acontecimentos mais fortuitos. Diz-nos o antologiador que muita coisa permanece inédita, e que há “quantidades astronómicas de poemas”, e como traço comum há essa forma de prodigalidade quase desesperada em que “as palavras irrompem de todo o lado e correm em todas as direcções, cheias de urgência”. E isto é evidente nessas pobres sebentas que saíram com o selo da Helástre, uma casa de produção fora do sistema e uma editora pirata, “nascida do encontro amoroso de duas pessoas e dois mundos”, Regina e o parceiro, Serge Abramovici (Saguenail), que vivem e trabalham juntos desde 1976.

O que não falta por aí são exemplos de escribas brincando laboriosamente com letras na borda do prato, que servem a lírica com toicinho, a alma com vinha d’alho, e que insistem que a sua estética só se percebe como panado de um regime ético. Mas raros são os casos, entre essa praga caindo dos bastidores, dos que dão provas de um fôlego que não se escafede nem ressente se não for constantemente notado, e o que Regina Guimarães vem conseguindo é recuperar uma ideia de pobreza operosa, firme, liberta desse estigma reacionário que sobre ela se montou, colando-a à miséria. E assim, sem complexos, não é preciso destacar um verso aqui e outro ali para sentir o vigor desta respiração, o de alguém que digere incessantemente a vida, e que começa por “comer a língua” (é o título de um dos seus livros), dizendo-nos que “quem deixa o seu livro aberto/ onde alguém fechado o fez/ cria filas de florestas/ com sombras poços e vozes/ entre deserto e deserto”. Com isto, sem disfarçar que, naquilo que conta, continuamos órfãos e pobres, e que a nossa tradição cultural não se emancipou nas últimas décadas, mas se foi deixando humilhar, copiando tendências que via de fora, com isto, Regina Guimarães está mais próxima desse rasgão na mitologia cultural, desse acto de transgressão em que graça e violência se conjugam e fazem do poeta esse ser que parece sacudido e puxado por uma inspiração autêntico e que não é visto a fazer arranjos de flores. Esta é uma obra que convoca outro tipo de leitor, um que “não morde/ o isco das intenções”, “não lava as mãos/ antes e depois de ler”, que nem “calcula onde põe os pés/ quando muda bruscamente de página”, e também “não faz cerimónias/ quando abandona o livro a meio”. Este leitor “não perdoa/ nem morre da cura”. Esta voz que não se some no papel, que tem uma espessura de fala capaz de povoar um quarto, uma sala, diz-nos que “na boca não cabe a língua/ e a voz não cabe no corpo”. E dá relevo a figuras como “a negra trovadora”, que “tangia as suas trovas/ num pau de sabão macaco” e que “entre duas crises de lirismo/ cuspia olhos de peixe/ e mascava em seco/ até o mar lhe vir à boca”. Noutro momento, fala-nos dessas cheias que se trazem, de um fio de água que dá por si fonte, jorrando: “Dizer/ talvez/ coisas humildemente fundamentais/ e tão esperadas/ ou inesperadas/ como ver sair do mar/ um ginete sem cavaleiro./ Dissipar nuvens e concentrar murmúrios./ Falar do tamanho descomunal dos anjos/ entre gotas de chuva também desmesuradas. (…) Relembrar que temos pleno usufruto/ do tiro que nos sai pela culatra/ E sobretudo/ afirmar que o jogo de cintura/ é coisa que fêmea ensina a macho/ – houvera o céu de tingir a terra/ e o Outono desta carne desbotada.”

Na cuidadosa selecção feita por Rui Manuel Amaral, que insiste no posfácio que este livro não é para ler de uma assentada, nenhuma vénia é feita ao cinismo. Antes se diria que esse bacilo infeccioso é escorraçado, mesmo se fica margem para rancores; o que se sente também é uma possibilidade de recomeçar tudo de novo, e isto num momento em que damos por nós rodeados de “uma juventude tornada infeliz, neurótica, afásica, obtusa e presunçosa mercê de algumas liras a mais que o bem-estar lhe tinha inesperadamente enfiado nas algibeiras” (Pier Paolo Pasolini), e de súbito lançada num drama rebuscado, em que às adversidades económicas vem juntar-se um futuro mais que incerto, penoso, com a pandemia a servir como sinal premonitório, uma espécie de ominoso prefácio, talvez mesmo uma profecia excessivamente lúcida, dando-nos a provar a entrada nesse regime da história aberrante que se nos força, com a sua curva descendente e dolorosa, impondo-nos cada vez mais restrições. Abolida a miragem de um futuro onde nunca entraremos, começa a desenhar-se uma “outra história”, no fundo, aquela cujos desenvolvimentos são uma sucessão inevitável de catástrofes, como castigos de uma culpa que está para lá de toda a redenção; um assalto às nossas comodidades, que começará por ser acolhido como uma afronta, e gerará certamente graves tensões sociais, agitação política, uma espécie de febre, abrindo margem a desesperadas e delirantes opções, como já se vê acontecer em alguns países. Isto até ao momento em que da penúria, quando a assumirmos como irreversível, possa erguer-se algo de novo, uma consciência livre desse bem-estar estrangulador, das frívolas necessidades criadas pela sociedade de consumo. E lembre-se como foi esta forma de poder que, de acordo com Pasolini, se mostrou “o mais centralizador e, por isso, mais socialmente fascista que a História já registou”. E para se sair disto, para não resvalarmos para uma condição de absoluta miséria mental, o que há a fazer é resgatar uma cultura própria. Assim, e depois da austeridade como procedimento governativo, agora estamos perante este regime sancionatório dos comportamentos sociais que tenderá a agravar-se, e que em breve começará a produzir ecos desgostantes na intimidade de todos nós. Mas não se pode ir a lugar algum sem que à crise que nos cerca corresponda uma crise da cultura, levando a “uma avaliação da própria maneira de viver, um esbater da certeza dos valores de cada, que pode chegar à abjuração”. E, neste ponto, queria perder um pouco mais de tempo com essa juventude que hoje nos atazana, em vez de regenerar ciclos, e, para isso, socorro-me de Roberto Arlt, que numa edição que teve também a sábia mão de Rui Manuel Amaral, partilha a sua irritação com “esses fedelhos… esses velhos fedelhos, que na escola eram conhecidos como ‘lambe-botas’”, questionando-se “porque motivo nascem miúdos que desde os cinco anos demonstram uma pavorosa seriedade de velhos?” Arlt pinta-lhes o retrato, e dá conta de como fomos ficando ilhados, entre os tantos que se rendem, e estes reforços inúteis de “miúdos que parecem estar embutidos na negrura de um traje curial, miúdos que têm qualquer coisa de cave de carvoaria combinada com a afectuosidade de um verdugo em decadência”. É logo o texto com que abre antologia das “Águas-fortes Portenhas”, em que a crónica jornalística formula um assalto em bando à literatura, pondo as ruas a descoberto. E percebe-se no argentino, mais que a perplexidade, uma certa inquietação diante dessa “vida tristonha que os miúdos acumulam como um veneno fora do prazo”, notando com “passam entre as coisas mais belas da criação com um ar enjoado”, estes miúdos pavorosos e tétricos que se tornam cúmplices desses outros, bem mais velhos, que usurparam os pontos de observação, que ocuparam as mesas com as melhores vistas, e escrevem no intervalo das sessões de enfardamento, mal digeridos, atarefando-se a esconder tudo. E naquele típico interesse pelo passado, naquela tentativa absurda de se transporem para ele, fazem dele uma utilização demagógica, desmerecendo o presente, dando a imagem de um panorama artístico e poético que se encontra absolutamente indefeso. Sei que estou a divagar, mas importa traçar a oposição face a estas personalidades que, por um receio de serem esquecidas, de ninguém se lembrar delas, vivem as suas vidas de protocolo gerindo um bloqueio permanente, e renegando a hipótese aos jovens de obterem os seus ecos a tempo, levando muitos a essa conversão a uma forma de cretinismo individualista que os transforma em pirralhos enfadados, sem ânimo nem tesão de qualquer espécie.

Arlt sublinha ainda que “esses fedelhos têm sempre os cadernos perfeitamente encapados e os livros sem as páginas dobradas”. E logo depois sai-se com esta curiosa nota: “Podia afirmar, sem exagero, que se quisermos conhecer o futuro de um miúdo basta folhear o seu caderno, e só isso é suficiente para profetizar-lhe o destino.” E com isto podemos voltar aos cadernos de Regina Guimarães, redigidos nesse regresso constante a uma escola da vertigem, deitando contornos que vibram desse rigor mal-amanhado, desse regime esbaforido de versos que não chegam a secar, cuspindo na tinta, comendo a língua, para se manterem despertos ao seguirem no encalço das suas inquietações: “Os cães ladram de quinta para quinta./ Medem o tempo que os aparta da voz antiga/ seu único assunto de conversa.// Entre as colinas, o vento dispersou os pontos de encontro./ Apenas transporta sons alheios,/ rascunhos de som/ flores entaladas nas folhas deste livro./ Apenas transporta a força passiva da conversão/ e o pó brilhante das celas.”

A poeta faz-nos ver como andam “mancas as palavras”, como “ditas deixam de ser úteis, escritas deixam de ser verdade”. O poema prossegue: “Porque a morte não se partilha/ embora muitos a vistam/ como roupa amarrotada:/ às direitas a palavra irreverente/ às avessas é palavra piedade.” Em grande medida, os poemas, mesmo aqueles que se safam melhor, parecem comprometidos, isto porque nós, como leitores, não parecemos capazes de nos reger pela força de gravidade que as palavras produziram noutros tempos. Não é que estejam gastas – na verdade, a maioria caiu até em desuso –, simplesmente, quem hoje as lê parece fazê-lo num estado de dormência, como se lesse hieróglifos numa superfície em constante erosão. Como diz a poeta, “escreves logo perdes/ o refúgio dos teus pensamentos. (…) Nem danças na corda bamba/ nem cospes na sopa fria/ nem na fonte, nem na ferida,/ dizendo que é paixão arrefecida.”

Esta é uma poesia com muita, tanta, subtileza, logo seguida de violência, desfeita pelo pormenor, numa desordem uivante, que mete os fantasmas da lógica nesta redoma incerta – o poema –, um campo de tiro e de treino, o qual, inesperadamente se revolta e torna traiçoeiro, capaz de abanões, de um ataque cerrado a esse ambiente leviano cultivado pelos provisores de banalidades sofridas. Se aqui há margem para a diversão e a profusão, para um componente lúdica, com imagens, sons e metáforas num revoluteio prazeroso para os sentidos, se domina as variações da delicadeza, é capaz de golpes duros em pontos nevrálgicos, e esta é uma escrita que, por isso, solta esporos: “com a estranheza de quem virou o vestido do avesso/ para que a cor do tempo não desbotasse/ para que o tempo não se esgotasse numa só cor,/ recordo então/ os instantes em que imaginava/ que as minhas rugas te seriam mapa/ e o cansaço da carne envelhecida/ avalanche.”