Encontra-se em consulta pública o projeto de “Estratégia Nacional de Combate à Corrupção 2020-2024” elaborado por Grupo de Trabalho designado pelo Governo para o efeito. Sabendo-se que o documento foi elaborado entre os meses de março e julho do presente ano (5 meses), dificilmente se poderia exigir que esta Estratégia, cujo horizonte temporal corresponde ao período do resto da legislatura, abordasse de forma profunda e estrutural todas as vertentes e variantes relacionadas com a corrupção e o seu combate, num país onde a perceção de corrupção é inversamente proporcional aos dados oficiais.
Desde logo, quanto àquilo que se entende na sociedade por corrupção, esteja ou não criminalizado o comportamento, seja ou não determinada prática, efetivamente, corrupção, confundindo-se demasiadas vezes comportamentos ética e moralmente censuráveis sem, contudo, consubstanciarem qualquer prática de crime.
Saliente-se, no entanto, que para o tempo de elaboração do documento, este Grupo de Trabalho coordenado por Maria João Antunes conseguiu, ainda que de forma bastante tímida, gizar um roteiro de ação, que terá, obviamente, de ser concretizado através de iniciativas específicas de atuação, quer sejam elas iniciativas legislativas ou de definição de novas formas de atuação na Administração Pública.
Em resumo, e tendo em conta a diversidade de organismos que contribuíram para a Estratégia apresentada, o documento é o resultado possível de compromisso entre as várias visões sobre o assunto e apresenta um conjunto de prioridades que dificilmente não encontrarão concordância de todos.
No entanto o documento não é isento de crítica. Desde logo pela falta de cronograma com a calendarização para implementação e execução das medidas que propõe, ainda que muitas delas sejam de tal forma genéricas que careçam de melhor concretização. Tendo a estratégia um horizonte temporal (2024), as medidas propostas deveriam ter um calendário de implementação.
Em segundo lugar, seria relevante, como já se afirmou publicamente, que o Governo fizesse acompanhar a Estratégia dos instrumentos pelos quais se propõe implementar a Estratégia. Serão iniciativas legislativas? Mecanismos de “soft law”? Quais e como? Estas serão, talvez as questões, que minimizam o alcance de um verdadeiro Plano de Ação de Combate à Corrupção.
Apesar do debate público já em curso se concentrar (fruto do mediatismo) em questões como a colaboração do denunciante/arguido e dos megaprocessos judiciais (que nunca foram uma inevitabilidade), o Estado talvez se deva concentrar nos pequenos fenómenos que são, na realidade, o caldo onde se cozinha a perceção já referida anteriormente.
O aumento da transparência deverá ser efetivamente a grande prioridade. Só a transparência permite a sindicância e sabendo de antemão a complexidade do ordenamento jurídico-administrativo nacional que torna o Estado numa amálgama de entes jurídicos, com legitimidades, autonomias, atribuições, competências e estatutos bem diferentes, medidas haverá que poderão ser tomadas e que a todos seja aplicável.
Assim, sem grandes detalhes, vejo muitas medidas necessárias e de rápida implementação como, e entre outras: (i) obrigatoriedade de publicação no portal da Contratação de toda a documentação relacionada com os contratos públicos celebrados (decisão de contratar; empresas convidadas; propostas; relatórios de júris, etc.) independentemente do tipo de adjudicação e não aquilo que as entidades públicas sujeitas ao regime decidem publicitar (umas publicam apenas a decisão de adjudicação, outras publicam os contratos celebrados e outras há que nada publicam durante anos), com competente e efetivo modelo sancionatório para quem não cumpra; (ii) Código de Conduta uniforme para todas as entidades públicas e órgãos de soberania, através de lei própria em vez de códigos de conduta “ad-hoc” para cada entidade, à semelhança do que existe já noutros países; (iii) Tipificação dos cargos na Administração Pública de cargos que devam/sejam efetivamente de nomeação política em vez de se ficcionar procedimentos concursais; (iv) obrigatoriedade de registo digital acessível e público de todos os procedimentos administrativos qualquer que seja a entidade; (v) sanções efetivas para os membros de órgãos de entidades públicas que não divulguem as subvenções públicas, nos termos do Regime legal de Publicitação de Subvenções e Benefícios Públicos, concedidos por Entidades do Setor Público (Lei n.º 64/2013, de 27 de agosto) e, por fim (vi) a obrigatoriedade de sanção acessória de impedimento do exercício de funções públicas por quem seja condenado com trânsito em julgado por crimes relacionados com o exercício dessas mesmas funções, cabendo ao juiz apenas a definição da medida temporal dessa mesma sanção.
Como se vê, esta Estratégia, pode e deve ser concretizada em muitas medidas, muitas delas sem dimensão dita estrutural pois, não poucas vezes, são as pequenas (grandes) medidas que estruturalmente transformam as sociedades. Haja vontade.
Pedro Vaz