The Social Dilemma. Depois dos estupefacientes, chegou a era das drogas virtuais

The Social Dilemma. Depois dos estupefacientes, chegou a era das drogas virtuais


Um documentário que denuncia a manipulação a que estamos sujeitos ao usar as redes sociais, recorrendo aos testemunhos de alguns dos programadores que as desenvolveram, chegou à primeira posição dos conteúdos mais vistos da Netflix em Portugal.


E se fosse concebível uma bomba que ao invés de cair sobre a realidade atingisse a percepção que temos desta? Uma bomba informática, que avariasse a própria noção de tempo, devastando as nossas funções cronológicas. E se a tecnologia conseguisse produzir uma droga capaz de estudar e evoluir ligada aos nervos do agarrado, manipulando-o ao ponto de lhe dizer o que ver e aquilo em que pensar? Mais leves mas constantes, estas drogas atingem os nervos, actuando como parasitas alucinatórios, condicionando o comportamento do viciado, até dominarem o seu olhar sobre o mundo e a sua noção da realidade. 

O filósofo francês Paul Virilio, desaparecido há dois anos, profetizou o desmoronamento do mundo produzido pela aceleração digital, explicando como a aceleração da realidade nos impede de ver a realidade. À medida que o tempo humano é esmagado, vincava ele, já não vemos nada. Para este pensador e activista social, o século XXI seria marcado por uma revolução do tempo, pelas transformações do cibercapitalismo, que introduz um tempo infinitamente breve, velocíssimo, o tempo das máquinas, dos computadores que regulam as transacções bolsistas, os nanossegundos, as torrentes imparáveis de dados, uma função histórica que se torna indecifrável para nós, e que nos expulsa, tornando-nos dependentes dos algoritmos, da multiplicação de instrumentos da inteligência artificial.  E o risco deste tempo, que “já não tem nada a ver com o tempo da responsabilidade e da razão”, diz-nos Virilio, é que os meios técnicos iriam permitir um novo tipo de totalitarismo, o de “uma opressão sem tirano”.

Esse tempo parece ter chegado. E à medida que nos damos conta da catástrofe informática que começa a empurrar o mundo para o caos, sentimo-nos também nós transferidos do campo geográfico para o ciberespaço, esse que funciona como uma espécie de sexto continente, uma “colónia virtual” onde vivemos “uma vida de substituição”. Neste mundo sem fronteiras da comunicação de massas e das redes sociais, de acordo com Virilio, “vivemos o dilema do prisioneiro, presos nas teias do imediatismo e do mediatismo”, com a aceleração do tempo a impedir-nos de ver a diferença entre o verdadeiro e o falso, o que produz uma erosão do próprio sentido de si, da soberania do invíduo. A sensação de vertigem e as tonturas, a enorme incerteza e confusão que caracterizam o momento actual, em que nos sentimos arrastados “na corrente desordem de sentimentos imprecisos, de indisciplinados pelotões de emoção” (Eliot) é um efeito, segundo o pensador francês, da “desconstrução da cultura geral devido à alucinação, à loucura de informação”.

E um sinal da consciência que temos deste fenómeno é a enorme repercussão que está a ter o documentário “The Social Dilemma”, de Jeff Orlowski, o qual se estreou na semana passada na Netflix e que está na primeira posição dos conteúdos mais vistos do gigante do streaming em Portugal, tendo alcançado a terceira posição nos EUA e a sexta em todo o mundo. O filme arranca com uma epígrafe de Sófocles que logo estabelece o tom do que se irá seguir: “Nada de vasto entra na vida dos mortais sem carregar uma maldição”. E o grande trunfo deste filme é apresentado desde logo, ao apresentar-nos a um grupo de figuras que estão entre os principais arquitectos deste admirável novo mundo das redes sociais. Os especialistas que assumem um certo embaraço e falam em nome de um dever de expor as ferramentas que ajudaram a criar, incluem Justin Rosenstein, o criador do botão ‘like’ do Facebook, Tim Kendall, antigo responsável de monetização do Facebook, Guillaume Chaslot, que criou a infra-estrutura de recomendação de vídeos do YouTube, o lendário cientista informático Jaron Lanier e Tristan Harris, um antigo funcionário da Google, que tinha como função especular sobre as questões de ética implicadas na acção da empresa.

Harris assume um papel central no documentário e, em grande medida, este reflecte o trabalho que ele tem vindo a desenvolver desde que fundou o Center for Humane Technology, participando numa série de conferências e plataformas online onde tem denunciado a forma como a internet 2.0 explora uma série de vulnerabilidades psicológicas no seu modelo de negócio. Orlowski conhecia Harris dos tempos em que foram estudantes na Universidade de Stanford e, depois deste ter deixado a Google, foram mantendo contacto numa altura em que Harris veio a afirmar-se como “a coisa mais próxima a uma consciência vinda de Silicon Valley”. Aparte a máxima que nos diz que quando o produto parece ser gratuito, isso significa que o produto somos nós, além das implicações que retira da forma como as grandes empresas tecnológicas estão a colecionar uma quantidade estarrecedora de dados e a criar modelos de previsão sobre os nossos comportamentos, Harris alerta para o facto de nos termos preocupado sempre em pensar quando é que a tecnologia seria capaz de superar as nossas habilidades, os nossos pontos fortes, quando na verdade devíamos ter-nos focado nos aspectos em que a tecnologia em vez de se dirigir ao nosso potencial se foca nas nossas fraquezas e vícios.

É este o aspecto decisivo na forma como este documentário constrói a sua narrativa como se o apresentasse num tribunal, perante um painel de jurados, intercalando o rol de testemunhas, que trazem a lição estudada, como se estivessem a apresentar uma start-up a investidores, recorrendo a aforismos cortantes e a vigorosas analogias. Assim, Harris fala dos telemóveis e dos gadgets que nos mantêm ligados à “Matrix” como “chupetas digitais”, recorrendo a uma série de estímulos, de impulsos de dopamina, através dessa tecnologia que está constantemente a ser recalibrada, a estudar as variações no nosso foco de atenção, e que se mostra capaz de sincronizar emoções em larga escala e produzir respostas à volta do globo. Como refere Harris, “nunca antes na história esteve nas mãos de 50 pessoas (designers, no caso) tomarem decisões que terão impacto nas vidas de dois mil milhões de pessoas. Por sua vez, Anna Lembke, especialista em comportamentos de vício ou dependência da Universidade de Stanford, explica a forma como estas empresas aperfeiçoam as suas plataformas conduzindo testes constantes, em tempo real e com amostras brutais, que lhes permitem explorar a forma como a evolução nos programou ao longo de milénios para forjarmos conecções interpessoais. É neste ponto que, mesmo sem ir muito longe numa análise mais conceptual, o documentário se cruza com as noções que Paul Virilio avançou há décadas, ao afirmar que a migração para o regime virtual não só implicava uma acelereação do tempo, a transferência para um tempo instantâneo e que produzia uma inércia ou “imobilidade fulgurante”, como que isto punha em causa a perceção do mundo sensível e a empatia entre os seres humanos.

De resto, a própria Netflix tem sido um dos principais agentes deste processo, com os seus algoritmos a operacionalizarem este modelo de dependência dos fluxos digitais, os quais nos reduzem a uma existência amorfa no sofá, sujeitos à “inumanidade do desenvolvimento info-capitalista e do seu regime diluviano”, como nos diz o filósofo francês Frédéric Neyrat. “O facto de não nos levantarmos do sofá e de o ecrã nos transformar em cyborgs domésticos deve-se ao movimento inaparente da electricidade e da informação”, escreve este pensador no mais recente número da revista “Electra”, que tem um dossier dedicado ao tema da Velocidade, e que conta com esta análise crítica do presente em que Neyrat identifica um “dilema cinético”. Ele nota ainda que “a inércia do homo facebookus é o olho de um Malström – um olho que não é ‘lúcido’, mas imerso em fluxos digitais, em digital clouds que o impedem de ver tanto a terra como o céu”. Ora, Neyrat lembra como recentemente a Netflix instalou uma função nos telemóveis que permite ver mais depressa certos filmes sem que o tom das vozes seja afectado: “a função speed settings não é um simples fast forwarding, operando uma verdadeira transformação do filme, uma outra organização do visível e do audível”.

Voltando ao documentário, a tese central que este defende é que a manipulação dos comportamentos humanos alcançou nos nossos dias um refinamento maquiavélico tal que se pode falar já daquela forma de totalitarismo prevista por Virilio. O passo seguinte é perceber de que modo este poder de sincronização à escala global, este regime de um “comunismo de afectos” pode ser utilizado por estas empresas ameaça uma “desmaterialização do mundo”. Pois se a velocidade das transações excede o tempo da política, tornando o estado-nação uma figura cada vez mais decorativa, vemos como estas entidades todo-poderosas detêm a hegemonia na forma como reprogramam a ideia que fazemos do mundo, e nos têm ligados a um complexo sistema que, através de subtilíssimos e constantes orientações, as quais são personalizadas para cada utilizador, funcionam como slot-machines nos casinos, dominando a nossa vontade através de uma forma de hipnotismo, e satisfazendo, assim, as necessidades dos verdadeiros clientes: os anunciantes e os propagandistas.

Assim, é difícil contradizer Roger McNamee, um dos primeiros investidores do Facebook, quando este afirma que o Kremlin não precisou de manipular aquela rede social para fins nefastos, mas que se limitou a usá-la na sua vasta estratégia para desestabilizar as democracias liberais, o Ocidente, num programa que se estende a uma série de campanhas de desinformação, financiando movimentos de extrema-direita, os quais actuam como filiais, com dirigentes fantoches e oportunistas que não hesitam em explorar todo o tipo de teorias da conspiração, aproveitando-se da credulidade de um público cada vez mais permeável a perpsectivas irracionais e sem qualquer sustentação científica. É aqui que começamos a encarar as redes sociais como uma infestação de térmitas a alimentar-se das fundações das nossas sociedades, as quais se baseiam numa experiência da realidade comum, e que somos levados a considerar noções como a de “radicalização algorítmica”. E Orlowski consegue entretecer estas noções de uma forma compassada, intercalando as entrevistas com uma dramatização ficcional em que vemos uma típica família de classe média dos subúrbios a sofrer os efeitos da desagregação causada pela vida paralela que cada um dos seus membros vivem na “colónia virtual”. Mas é na forma como o documentário se sustenta em factos, apoiando-se em estatísticas que demonstram um aumento exponencial dos casos de depressão entre crianças e adolescentes, associando estes algoritmos à propagação das teorias mais imbecis e boa parte delas perigosas, é nesses aspectos que “The Social Dilemma” prova ser um contributo decisivo para um debate que nos interessa a todos. E surge num momento chave, a poucas semanas das presidenciais nos EUA, e numa altura em que milhões de pessoas se vêem obrigadas a trabalhar a partir de casa devido à pandemia, forçadas a usar os meios digitais, o que levou a um desequilíbrio ainda mais profundo em termos económicos, com as grandes empresas tecnológicas a serem, até ao momento, os grandes beneficiários desta catástrofe.