A comparação é uma actividade humana. Quando nos dedicamos a comparar humanos sabemos que o perigo espreita. A escolha dos termos de comparação pode condicionar sobremaneira o resultado do exercício. Algumas almas mais cautas invocam o princípio da igualdade para proibir as comparações, pelo menos aquelas que sejam baseadas em características suspeitas. Outras, iluminadas, procuram pôr termo a qualquer comparação nos processos avaliativos, começando pelos escolares ou, pelo menos, a sua comunicação urbi et orbi com afixação pública de pautas, um tratamento cruel e degradante inspirado pela Santa Inquisição. No plano das boas maneiras, os ingleses há muito que descobriram os perigos do exercício: comparisons are odious.
Sendo a natureza humana propensa ao erro, o pecado da comparação tem uma dimensão diacrónica. Nada como comparar os feitos dos vivos com os das figuras históricas. Um processo eleitoral não é mais do que uma comparação possuída por um procedimento. Entre nós, o voto confere uma legitimidade democrática ao exercício da comparação. O mais votado resulta, por comparação, o melhor. Enquanto não se realizam as eleições decorre um processo comparativo entre os candidatos. E esse processo não se limita aos eleitores, auxiliados por marqueteiros, jornalistas, artistas pimba, comentadores ou coladores de cartazes. A comparação surge na intimidade de cada candidato, nos interstícios do superego, em cada manhã em frente ao espelho, nos minutos em que cada um se escanhoa ou cada uma se maquilha.
As eleições presidenciais de 2021 serão, como tudo por estes dias, “atípicas”. Em Portugal, a reeleição de um Presidente da República é uma fatalidade histórica. Discute-se não o “se”, mas o por quanto. E aqui começa a comparação. Mário Soares conseguiu ser reeleito com mais de 70% dos votos. Para o actual inquilino do Palácio de Belém, essa é a fasquia dos afectos a serem convertidos em votos. A fazer fé na mais recente sondagem, publicada esta semana, a coisa não está fácil, ficando a mais de 10% da meta soarista. E podemos confiadamente temer as respostas dos lusitanos às sondagens, não querendo confessar a traição do afecto face às novidades que surgem na praça eleitoral.
O fantasma de Mário Soares é ainda mais assombroso no que respeita à sua primeira eleição como Presidente da República, em 1986, a única vez em que foi precisa uma segunda volta. A luta pelo segundo lugar na contenda presidencial é animada pelo sonho de forçar uma segunda volta em que se federem os votos de várias candidaturas. A história fê-lo acontecer – a duras penas –, com os candidatos Maria de Lourdes Pintasilgo, Salgado Zenha e Ângelo Veloso a fazerem convergir as respectivas bases de apoio a favor de Soares. À esquerda, o candidato moderado teria possibilidade de federar o voto. Por essa razão, Ana Gomes surgiu esta semana, na sua primeira entrevista televisiva, com uma pose moderada, procurando dar nota da razoabilidade do respectivo programa, deixando a despesa dos extremismos aos restantes candidatos que desafiam o incumbente. O exercício tem três dificuldades. A primeira é a da coerência em relação a uma persona política que foi construída em torno da grita “aqui d’el-rei!”. A segunda resulta da comparação da brandura da candidata com a brandura do incumbente. A terceira resultará da natural dinâmica da campanha e dos debates centrados no “tiro ao Marcelo” desenvolvido pelos restantes candidatos.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990