Sobre o Rendimento Básico Incondicional

Sobre o Rendimento Básico Incondicional


Pouco depois de ter sido anunciado que a Alemanha testará uma forma de Rendimento Básico Incondicional, com 90 seus cidadãos, durante três anos, e depois de diversas formas de Rendimento Básico terem sido ensaiadas, a nível internacional, dos EUA ao Brasil, em consequência da pandemia covídica, conhecer, em profundidade, aquele instrumento tornou-se indispensável. 


Em “Rendimento Básico Incondicional. Uma defesa da Liberdade” (Edições 70, 2019), o leitor tem à disposição uma obra muito informada, sofisticada, que traça a genealogia do conceito/proposta política (na pluralidade das formulações que sobre ele têm sido produzidas ao longo dos tempos) e que, fazendo o levantamento/defendendo as principais vantagens aquele associadas, não ignora constrangimentos que se erguem a uma plataforma como esta, elogiando, nomeadamente – e um elogio tão importante quanto, no nosso tempo, a divergência política costuma dar lugar a anátema moral sobre o outro, aqui cedendo passagem a um momento de “nobreza de espírito” (Rob Riemen), em que posições diversas das tomas pelos autores são alvo de elegantes encómios – o outro livro marcante, em Portugal, sobre esta matéria, assinado, anos antes, por Martim Avillez Figueiredo, “Será que os surfistas devem ser subsidiados?” (Aletheia, 2013). As duas referências bibliográficas portuguesas fundamentais para um debate robusto e elevado.

1.É curioso notar como os autores de "Rendimento Básico Incondicional. Uma defesa da Liberdade" (Roberto Merrill, Sara Bizarro, Gonçalo Marcelo, Jorge Pinto, Edições 70, 2019), ao recensearem todos os projetos e formas de defesa do RBI ao longo dos tempos chamam a atenção para o nome da personagem portuguesa de Utopia, de Thomas More (séc.XV-XVI), que, traduzida, significaria "Nonsenso": no diálogo no qual se detecta uma embrionária e simples defesa do que poderia chamar-se "Rendimento Mínimo", este faz ver aos seus interlocutores que a melhor forma de diminuir o crime não passa, como se estava a verificar, por penas cada vez mais pesadas e cruéis (que não haviam dissuadido os criminosos), mas antes dar-lhes o quinhão bastante para os levar a não prosseguir tais percursos. Nonsenso seria o nome apropriado – e irónico – no sentido de uma personagem que transporta uma visão do mundo, e um conjunto de propostas, que não são bem vistas naquela sociedade/tempo.

2.No caso de Thomas Paine (séc.XIX), séculos passados, a defesa de uma certa forma de RBI encontra respaldo em uma compensação pela perda da herança natural em função da adopção do sistema de propriedade fundiária. Thomas Jefferson (sec.XVIII-XIX), representante da Virgínia, dava 20 hectares de terra a quem estivesse disposto a trabalhar a terra; Condorcet (séc.XVIII) queria um seguro social para combater a pobreza e a desigualdade. Socialistas utópicos como Charles Fourier (séc.XVIII-XIX), lídimos representantes do liberalismo como John Stuart Mill (séc.XIX), destacados filósofos como Bertrand Russell (séc.XIX-XX) subscreveram o RBI, o mesmo que fizeram empreendedores tecnológicos de ponta no século em que nos encontramos (Mark Zuckerberg, Elon Musk, Jeremy Howard, Robin Chase).

3.Se Milton Friedman, pela direita, propôs um modelo de RBI sob a forma de imposto negativo sobre o rendimento, bem como a substituição da Segurança Social por esta plataforma, outros prémios Nobel da Economia, além deste, como James Meade ou James Tobin, no espectro político oposto ao de Friedman, igualmente o sustentam.
Figuras morais marcantes do século XX, como Martin Luther King, consideraram o RBI indispensável. Roosevelt entendia que sem os meios mínimos de existência, sem segurança económica, não existe liberdade individual. Nixon esteva, também ao lado desta medida, consensual entre académicos, da área da Economia, nos EUA, tão conceituados como Paul Samuelson ou John Kenneth Galbraith em finais dos anos 60.
Diversamente, o grande filósofo (político) John Rawls mostrou-se explicitamente contra um RBI, embora fosse a favor de uma pré-distribuição e de uma democracia de proprietários, e autores como Van Parijs argumentem pela não incompatibilidade entre os dois princípios de justiça de "Uma Teoria da Justiça" e a defesa de um RBI (p.100, nota de rodapé 25).

4.Experiências em torno de modelos de RBI têm sido colocadas em prática em países tão diversos como o Quénia, o Canadá, a Índia, a Holanda ou a Finlândia.
Em Portugal, apenas em 2017 surge uma maior atenção ao mecanismo do RBI – sendo que o tema foi introduzido, em 2013, na nossa esfera pública, por Martim Avillez Figueiredo, com o livro "Será que os surfistas devem ser subsidiados?"; uma investigação e tomada de posição feita, assinalam os autores, "com muito talento, rigor e honestidade intelectual" -, com a constituição de uma Associação para a discussão e promoção deste mesmo instrumento político e social. Desde então, a questão, em Portugal, ganhou muito maior visibilidade. Esta não deixou, no entanto, e ainda, de lhe ser conferida por um referendo na Suíça, sobre o tema, no qual, embora informalmente, foi indicado como valor do RBI, para aquele país, 2300 euros.

5.Phillipe Van Parijs, um dos grandes impulsionadores da ideia do RBI, através do seu livro "Real Freedom for All" e da criação, desde 1987, de uma "Rede Europeia de Rendimento Básico" (entretanto, transmutada em Rede Mundial) dá aulas, entre outras, na Universidade Católica de Lovaina. O argumento que Parijs esgrime em favor do RBI, em função do valor "Liberdade" – cada pessoa poder dedicar-se à atividade para que se acha vocacionado, independentemente do mercado a retribuir (ou não), ficava garantida com o RBI – tem um contra-argumento em defesa do mesmo valor: com o RBI, as pessoas ficam mais dependentes deste "subsídio", com menor capacidade de iniciativa; logo, são menos livres. Na versão portuguesa do RBI, conforme proposto por Merrill et al., neste livro, este teria o valor do limiar da pobreza, e prestações que não alcançam aquele registo mínimo seriam redundantes e eliminadas do sistema, tais como o abono de família ou o RSI.

No Alasca, o dinheiro distribuído aos cidadãos (cerca de 157 euros mês) é fruto da exploração petrolífera – recursos naturais comuns -, em Macau (onde os jogos de casino constituem 40% do PIB) é fruto dos rendimentos dos casinos (cerca de 1000 euros ano para residentes e um pouco mais de metade para não residentes). Embora, neste modelo de RBI os valores a distribuir tendam a ser baixos, eles têm permitido, nomeadamente no caso do Alasca, manter uma taxa de pobreza relativamente baixa em relação ao resto dos EUA.

6.Para financiar o RBI, hipóteses colocadas são: taxação de recursos naturais comuns, imposto especial sobre património mobiliário e imobiliário, reformulação do IRS, segurança social (eliminação de certos subsídios), aumento do IMI, taxação de transacções financeiras, impostos sobre a emissão de carbono, taxação de lucros resultantes de tecnologias que substituem trabalho. Em Portugal, seriam considerados "recursos comuns" a energia solar ou eólica, as praias, o mar, a cortiça (o turismo poderia participar significativamente nesse RBI; neste caso, a emergência pandémica poderá vir a colocar importantes questões a um futuro turismo de massas como até aqui o conhecíamos, com repercussões no financiamento desta medida, algo, pois, que permanece em aberto). Um rendimento participativo seria um subsídio não sujeito à verificação da situação financeira dos beneficiários, pago a todas as pessoas que participem ativamente numa atividade, quer ela seja remunerada ou não. As pessoas que cuidam de jovens ou de idosos, realizam trabalhos voluntários reconhecidos teriam direito a este rendimento.

7.Segundo os autores deste ensaio, António Guterres, num discurso de 25 de Setembro de 2018 teria admitido, implicitamente, face à questão da automação e mudança radical do mercado de trabalho que a aplicação de formas de RBI podem ser necessárias (p.181).

A introdução de um RBI acima do limiar da pobreza representaria cerca de 30% do PIB português e tentar aplicá-lo com recurso exclusivo ao OE seria impossível. O RBI poderia vir da UE, sob a forma de eurodividendo. 200 euros em média por país, com variação automática. Ficaria como amortecedor em períodos de crise, seria um estabilizador automático – embora, dir-se-ia aqui, 200 euros não permitiriam a liberdade real a que se refere Van Parijs, na medida em que, uma prestação com tal quantitativo, não permitiria a quem quer que fosse dedicar-se a uma actividade não considerada apta a justificar um rendimento (o surf a que alude o título de Avillez Figueiredo, por exemplo).

8.Uma outra curiosidade: na Namíbia, o Bispo que mais esteve a favor de um RBI acabou por ser alcandorado a "Ministro para a redução da pobreza". A experiência-piloto na Finlândia, quanto aos resultados parciais conhecidos, cifrou-se num não desincentivo à busca de emprego pelos beneficiários do RBI, bem como a diminuição dos níveis de stress, aumento da confiança nos outros, sentimento de maior protecção; menos depressões. Na Holanda nenhum partido apresenta a defesa do RBI no seu programa, mas experiências têm sido levadas a cabo a nível autárquico.
Em Portugal, sustentam os propositores do RBI, experiências-piloto a levar a cabo teriam também de passar por um crivo autárquico e com uma amostra significativa, e devidamente adequada ao tipo de Estado Social que temos. A adopção poderia ser gradual.

P.S.: Sendo os autores defensores e fazendo, pois, a apologia do RBI, ainda assim não escamoteiam argumentos – não, naturalmente, na mesma quantidade – esgrimidos contra tal instrumento.De uma forma esquemática, talvez pudéssemos sintetizar, da seguinte forma:

Argumentos a favor do RBI:
– ele seria uma prova concreta da pertença de todos os cidadãos a uma comunidade política;
– sendo dirigido a todos, a ricos e pobres, acaba com a estigmatização associada ao recebimento de uma dada prestação social;
– permite uma liberdade real, porque sem uma rede mínima de segurança económica, a pessoa não pode considerar-se possuidora de liberdade individual (apenas uma liberdade formal);
– com o RBI, a pessoa poderá recusar empregos que considera pouco recomendáveis e/ou recusar salários baixos (dado que conta sempre com aquela protecção);
-com o aumento da progressividade fiscal é possível modelar o sistema para recuperar o incremento, por via desta prestação, do rendimento dos mais ricos;
-elimina uma boa parte de carga burocrática, em função da simplicidade que promove – como é universal não é necessário definir critérios para futuros beneficiários da mesma, nem, tão pouco, fiscalizadores sobre esta (a ideia, note-se, é que quem recebesse o RBI não ficasse com menor prestação do que aquela que vinha tendo por via de outros "subsídios" anteriormente atribuídos a um cidadão);
– o RBI é uma forma preventiva de justiça social;
-a protecção social mantém-se (na forma de defesa de RBI convocada por estes autores), mas não é tão extensa como até agora;
– este Rendimento potencia a igualdade de oportunidades (sendo que os seus defensores recusam um pretenso carácter assistencialista do mesmo);
– atribuir o RBI poderia ser – no argumento de More – uma melhor forma de evitar futuros crimes, praticados pela falta de recursos económicos;
– expansão da Liberdade, na medida em que cada um tem mais ocasiões, assim, para se dedicar à(s) sua(a) actividade(s) favorita(s), a um trabalho que não seja realizado apenas por puro pragmatismo, por uma questão de subsistência, mas porque aquele eleva; possibilidade de trabalhar menos horas (a tempo parcial), porque existe o RBI e dedicar-se a pessoa à família, aos amigos, à ciência, às artes, à literatura, ao desporto com mais disponibilidade;
-necessidade de, em uma sociedade de consumo, haver consumidores;
– na medida em que o RBI não cessa assim que alguém encontra um emprego, este funciona como um estímulo à procura do mesmo;
– o RBI permite entrega (mais facilitada), da pessoa, ao voluntariado, à cidadania, ao interesse pelos outros e, nessa medida, promove uma sociedade potencialmente mais solidária;
-Van Parijs [no seu livro Liberdade Real para todos, 1995] pretende que se acautelem decisões das pessoas contra si próprias: o RBI não tem necessariamente que ser dado em moeda, mas pode ser uma porção de terras, ferramentas, bens ou serviços; nesse sentido, confirma a existência, na sua abordagem, de um "paternalismo" suave quando refere que as pessoas devem ser protegidas contra si, dado que em situação normal escolheriam um seguro de saúde para se protegerem [como articular, ou concretizar isto, com o liberalismo do Estado, eis um desafio];
– não há nenhuma exploração por parte daqueles que recebem o RBI, face aos que trabalham, porque a Terra é propriedade comum de todos, e todos têm direito ao seu quinhão, pelo que o sistema de propriedade de Terras sem indemnização aos que delas não usufruem é um erro e um direito por cumprir que poderia ser resgatado pelo RBI [Thomas Paine];
-os que beneficiam do RBI deixam mais empregos disponíveis para os restantes membros da sociedade, o que em sociedades sem pleno emprego é um grande benefício (uma vez mais, não há, pois, exploração);
– sobre a reciprocidade, ela pode ser económica, mas também pode ser política – há que fazer uma leitura mais profunda quanto à reciprocidade – pelo que devemos atentar, e o RBI permite-nos fazê-lo, no trabalho doméstico, voluntário e na cooperação com participação política; o facto de se permitir o recebimento de um RBI e eventualmente não cooperar de modo produtivista, pode, ainda, beneficiar o ambiente. O RBI permite minimamente planear o futuro – pela certeza de um rendimento permanente incondicional;
– o que é fundamental para uma vida saudável para o indivíduo e a família. Em todo o mundo há pessoas que estão em condições de receber apoios sociais e não o fazem por vergonha, caindo em situações de maior dificuldade por essa questão: com o RBI, esse problema não se colocaria.
– Quanto ao RBI para ricos: para quê?, pergunta-se (ainda para mais, se a seguir se vai retirar o dinheiro via impostos?). Resposta: funciona como cinto de segurança; até os bons condutores podem ter acidentes. Até os ricos podem cair um dia numa situação de necessidade desse conforto. Se assim não é, devolvem o dinheiro via impostos.
– O RBI mostra-se como uma importante ferramenta, ainda, se pensarmos em termos históricos e verificarmos como grandes descobertas só ocorreram porque quem as realizou não precisava de ter um trabalho remunerado (o caso de Darwin e a sua viagem no HMS Beagle). Além de Darwin, também Descartes, Adam Smith e Galileu vinham de famílias privilegiadas, o que lhes permitiu viver uma vida dedicada à ciência e ao pensamento sem preocupação de obter um rendimento.
-Em Portugal, dados os salários serem muito baixos, as pessoas com salário mínimo, muitas vezes têm que ter um segundo emprego; com o RBI, tal não seria necessário;
– Um RBI (europeu) evitaria a necessidade de "cérebros" saírem do país e problemas no país de acolhimento. A eliminação de offshores daria receita mais do que suficiente para a existência de RBI. O RBI fomenta ética da propriedade comum de bens. E pode favorecer a aposta no localismo – produtos locais – evitando importação de bens de geografias longínquas, algo que tem significativo impacto ambiental.
– A objecção do RBI ser uma espécie de subsídio às empresas e pressionar os salários para baixo é considerável, mas poderiam adoptar-se medidas como o salário mínimo ser indexado ao volume de negócios e ao tamanho das empresas; com a ausência de ameaça de perda do rendimento pela perda do trabalho, o RBI contribui até para a elevação dos salários.

Argumentos contra o RBI:

– expansão da Liberdade: o RBI estimula a dependência, corta os incentivos à iniciativa, aprisiona a pessoa em vez de a libertar;
-fomenta a preguiça, com trabalhos necessários para que a sociedade funcione (bem), a não terem procura, em virtude de esta prestação retirar pessoas do mercado de trabalho;
-mesmo que fosse uma medida desejável, ela seria impossível de financiar, dado o custo muito elevado, ou o seu financiamento retiraria recursos à economia que gerariam efeitos contrários muito mais perversos;
-a existência de uma prestação sem qualquer reciprocidade por parte do cidadão, viola este valor fundamental – o da reciprocidade – para a própria coexistência comunitária;
– ao correr o risco de se trocar uma sólida e densa rede de protecção social por um RBI, a pessoa troca um Estado Social – pelo menos com a actual robustez – por uma prestação que não lhe vai permitir o acesso aos mesmos serviços de que até agora dispunha sem essa prestação;
-o aumento de impostos para financiar a medida viola o princípio de não utilizar os outros como um meio (Nozick);
-os sistemas sociais devem ser equitativos e não faz sentido atribuir a mesma prestação social a pobres e ricos (falta de equidade);
-há aqui uma exploração dos que não trabalham àqueles que o fazem; afastando mais pessoas do mercado de trabalho, com a criação de um RBI, está-se igualmente a afastar cidadãos das lutas sociais (para tornar o sistema económico-social mais justo);
-as escolhas, com o subsídio, por parte dos mais desfavorecidos, não são devidamente acauteladas – estes podem gastar mal, contra si próprios, o dinheiro do RBI;
-as donas de casa, com o RBI, perdem incentivos para lutar pelas oportunidades do mercado de trabalho [crítica feminista ao RBI]. O RBI pode pressionar os salários para baixo (se os trabalhadores já têm aquele rendimento, já a empresa pensa não ter que pagar tanto).
-O RBI pode ser uma forma de substituir a reivindicação do direito ao trabalho (já tenho este rendimento, não preciso de me manifestar a pedir empregos).
-O trabalho, que pode ficar em causa com a criação de um RBI, é um factor de reconhecimento social e de combate à solidão. Colocar cidadãos de um país a serem contribuintes líquidos de um RBI europeu contribuiria para cimentar o preconceito e o ressentimento entre europeus.
-fora do mercado de trabalho, por via do Rendimento Básico Incondicional, o cidadão afrouxará, afastar-se-á mesmo (das necessárias) lutas sociais.