Jiadismo. As conversas da célula de Massamá

Jiadismo. As conversas da célula de Massamá


“Foste para a zona da matança e estás a pensar em bebés?”, perguntou Rómulo Costa ao seu irmão Edgar, que combatia pelo Daesh. Agora, Rómulo é o principal arguido do julgamento da célula de Massamá.


Rómulo Rodrigues da Costa, que ganhou a alcunha de “Binas” nas ruas de Massamá, pelo jeito que tinha para arranjar bicicletas, era um enigma para Nero Saraiva, o mais perigoso terrorista português. Em julho de 2013, Nero, a quem chamavam “o imperador”, já combatia há mais de um ano na Síria, entre as tropas do Estado Islâmico. “O Binas então vem ou não vem?”, interrogou Saraiva, por telemóvel, ao irmão mais novo de Rómulo, Celso Costa. Menos de um mês depois, Celso partiria de Lisboa para o campo de batalha, usando o passaporte de Binas para iludir as autoridades e entrar na Turquia. “Ainda não pá, o homem ainda não”, respondeu Celso a Saraiva, que estranhou. “Esse também… está coiso, está possuído com o Xabá”.

O retrato de Rómulo Costa, na pespetiva da Polícia Judiciária (PJ), que vigiou atentamente todos seus passos, enquadra-se no de um homem comprometido com o extremismo islâmico. Cauteloso, ficou para trás, em Londres, enquanto os irmãos mais novos, Celso e Edgar, combatiam na Síria. Mas mesmo à distância via-se como parte de uma missão. Um “teste em direção ao infinito”, como descreve num dos materiais de propaganda jihadista caseiros encontrados nas buscas à casa onde vivia com os pais, o ano passado.

Já o advogado de Rómulo, Lopes Guerreiro, assegura ao i que os materiais de propaganda de que fala a PJ são meras músicas de rap. E garante que faltam provas contra o seu cliente. “O que existe são conclusões, inferências, especulações. Sobre outros elementos há provas, mas não dizem respeito ao Rómulo, dizem respeito aos irmãos”. Tudo o que há são “conversas de irmãos”, “comentários infelizes” de há anos atrás, descontextualizadas, defende. Contudo, é difícil imaginar em que contexto alguém apelaria ao irmão que se concentrasse na “matança”, quando este combatia na Síria pelo Daesh, ou que se risse do homicídio de um polícia britânico.

Hoje, Rómulo Costa encontra-se sozinho. Aos 41 anos está em prisão preventiva na cadeia de Monsanto, como o principal arguido no julgamento da célula de Massamá, que deverá começar esta terça-feira, uma vez que os restantes sete arguidos desapareceram nos desertos da Síria e do Iraque, foram dados como mortos ou desaparecidos. À exceção de Nero Saraiva, que assistiu ao nascimento e à morte do califado, acabando ferido e capturado por forças curdas no último reduto dos jihadistas, em Baghouz, e de Cassimo Turé, que está sob medida de termo de identidade e residência (falaremos dele mais à frente).

Passaporte do "Binas"

Em junho de 2013, no aeroporto de Istambul, Celso Costa despediu-se da mulher, Reema Iqbal, e do seu filho Ibraheem ibn Isa Al Andalus, que tinha menos de um ano. Reema seguiu caminho, ao lado da sua irmã Zara Iqbal e do seu sobrinho bebé, através da fronteira entre a Turquia e a Síria, ao encontro de Nero Saraiva, que as alojou no califado.

Já Celso descobriu que estava proibido de entrar na Turquia, por ter excedido o prazo do seu visto da última vez que lá estivera, em 2012. Esquecera-se de o renovar – e as autoridades britânicas suspeitavam que fosse um dos raptores do jornalista britânico John Cantlie e o seu colega holandês Jeroen Oerlemens, em conjunto com o seu cunhado, Ahsan Iqbal e com um velho amigo de Massamá, Sadjo Turé, casado com Zara Iqbal.

A situação piorou quando Ahsan, um britânico de origem paquistanesa, que estava escondido na casa de Celso e Edgar Costa em Massamá, arrancou para a Tanzânia para arranjar documentos falsos, por recear estar impedido de entrar na Turquia também. O que não lhe faltavam eram contactos: estivera na Tanzânia no ano anterior, a frequentar campos de treino ligados ao Al-Shabab, um grupo terrorista somali, juntamente com Nero Saraiva, Sadjo Turé, Celso e Edgar Costa.

Contudo, Ahsan, apesar das credenciais, acabou detido na fronteira com o Malawi, em julho. A célula de Massamá estava em pânico com a detenção de Ahsan, sabendo que havia material incriminatório no seu portátil, que fora apreendido. Celso, farto de ouvir Nero queixar-se do comportamento quezilento de Reema, desesperado por partir para a Síria, consciente do risco de falsificar um passaporte, lembrou-se que dispunha de algo que Ahsan não tinha: o
Binas. Ligou à embaixada da Turquia em Lisboa e confirmou que Rómulo não estava impedido de viajar. Agora, era só arranjar maneira de levar o passaporte do irmão de Londres para Lisboa.

É aqui que entra Fábio Poças, o mais miúdo da célula de Massamá. Aos 19 anos, em 2011, fora para o Reino Unido com o sonho de ser jogador de futebol. No bairro de Leyton, que tem das maiores comunidades muçulmanas da capital britânica, reencontrou-se com os seus amigos de Massamá, Celso e Edgar, já convertidos a uma versão extremista do islão, que se encarregaram de o recrutar. Fábio, que meses depois foi ele próprio para a Síria, serviu de correio para levar o passaporte de Binas até Celso, numa viagem paga por Sadjo Turé, segundo a PJ.

“Vê lá se te dão um tabefe… tiram-te o móvel e o vermelho”, avisou Celso a Fábio, quando este lhe disse que chegara a Mem Martins. O terrorista temia que Fábio fosse assaltado e perdesse o “vermelho”, como chamavam aos passaportes, a caminho de um ringue nos arredores do Centro Comercial de Massamá, onde Celso jogava à bola. “Cuidado é com os porcos”, respondeu Fábio, enquanto as autoridades escutavam.

"Matança"

Menos de uma semana depois, Celso cortou o cabelo para ficar mais parecido com Rómulo e finalmente conseguiu reunir-se com a família e com o seu bom amigo Nero, usando o passaporte do irmão para entrar na Bulgária e na Turquia.

Há poucas dúvidas de que Rómulo estivesse a par da ocupação dos irmãos na Síria. Aliás, ao telemóvel, até parece exigir maior compromisso com a causa jihadista ao seu irmão Edgar, quando este se mostrou interessado numa rapariga.

“Você tá a ficar maluco ou quê?”, disse Binas, ao telemóvel com Edgar, em setembro de 2013. “Foste para a zona da matança e estás a pensar em bebés meu amigo, é pensar mas é acabar com aqueles porcos”. Edgar não se deixou ficar. Na altura já era um combatente experiente, que até fora instrutor dos amigos quando estiveram na Tânzania. Rómulo, em conversa com o pai, descreveu-o como o mais inteligente dos irmãos.

Discreto, com um presença nula nas redes sociais, Edgar não tinha o jeito gingão do seu irmão mais novo, Celso, que anos depois protagonizou um vídeo de propaganda do Daesh, mostrando o à-vontade que ganhara nos seus tempos de artista de hip hop. “Podem fugir”, declarou Celso no vídeo, sorridente, carismático e com uma metralhadora na mão. “Mas não se podem esconder”.

Edgar, à conversa com Binas, puxou dos galões e começou a descrever uma grande matança de inimigos, capitaneada por Celso, mais conhecido por Stone, e por Nero, também conhecido por “gordo”. “Deram uma picada aí a uns, a quinhentola de dreads e os gajos eram só quarenta”, gabou-se Edgar, notando que tomaram uma área do tamanho de Massamá.

A conversa fluiu para uma discussão de táticas, do uso de metralhadoras pesadas e ligeiras, do alcance dos morteiros. Até que, mais à frente, falam do infortúnio de Ahsan Iqbal, que ainda hoje continua preso na Tanzânia, por terrorismo.

Rómulo mostra-se emotivo. ”Foi o teste dele pá… e tem a recompensa do gajo”, consolou-o Edgar. Talvez se referisse ao paraíso, a recompensa que, na sua cabeça, aguardava aos jihadistas. “Pá aí cada um tem o seu teste, o meu teste agora é tirar o gajo dali”, respondeu o irmão mais velho.

Falaram de enviar um suborno às autoridades da Tanzânia, de intermediários para o pagamento, de riscos. “Não quero ser perguntado então dread … porque é que não ajudaste o teu dread?”, lamentou Binas

Personagem periférico

Turé estava furioso com o seu irmão mais velho, Cassimo Turé, que se mostrava pouco capaz ou pouco conhecedor dos métodos operacionais de uma rede terrorista. Corria novembro de 2013 e Sadjo pedira-lhe que comprasse uma passagem entre Lisboa e Istambul para Ahmed Rahman Ahmed, um somali que Sadjo acabara de recrutar em Londres.

Ao telemóvel com Sadjo, Cassimo não se lembrava que agência de viagens é que a célula de Massamá costumava usar, enganou-se e falou de Istambul em vez de usar o nome de código. Não sabia que o melhor era comprar um voo com escala, para dificultar a deteção pelas autoridades, ou que era preciso ter bilhete de ida e volta para entrar na Turquia. “Tens que mostrar que vais sair, percebes?”, explicou-lhe o irmão mais novo.

Tudo indica que Cassimo era uma figura periférica na célula de Massamá. Ainda assim, foi ele que recebeu Ahmed no aeroporto e o levou para a casa de hóspedes Casal do Olival, onde já se abrigara Reema e Zara Iqbal. Além disso, terá recebido dinheiro vindo do esquema de fraude do irmão.

Dinheiro

Em 2012, quando a célula de Massamá regressou da Síria para a Europa, deixando para trás Nero Saraiva, voltaram com o propósito de recrutar novos jihadistas e arranjar financiamento, avalia a PJ. Nesse esforços liderava Sadjo Turé, que montou um lucrativo esquema de fraude aos apoios sociais britânicos. O truque era criar identidades falsas, anotar os dados num pequeno caderno de linhas, a que chamavam “o livro” e esperar que caíssem subsídios ou bolsas de estudo.

O dinheiro não dava para tudo. Em agosto de 2013, Edgar ainda tentou ligar a Sadjo, pedindo “100 mil” para comprar uma “malagueta grande” para os “pardais”, referindo-se a artilharia antiaérea, pensam as autoridades – a sugestão de Sadjo foi dar uma “picada” nos porcos. Ou seja, um rapto.