A estratégia nacional de combate à corrupção 2020-2024: o debate necessário


Alguns dos aspetos nela contemplados podem vir a ter – se levados a sério – reflexos óbvios e relevantes na cultura judicial, administrativa e empresarial do país.


O tema da corrupção será, sem dúvida, um dos que mais irá ocupar o debate político nos próximos tempos durante os vários ciclos eleitorais que se seguirão.

Há razões sérias para isso.

Outras há, de natureza puramente oportunista e populista, que do debate sobre este fenómeno apenas querem, infelizmente, extrair trunfos para atacar a Democracia.

Por tal motivo, uma discussão séria e informada sobre a corrupção é, hoje, verdadeiramente necessária.

A recém-divulgada Estratégia Nacional de Combate à Corrupção 2020-2024, constitui, como o nome indica, um plano de reformas que se pretendem integradas e coerentes e que poderão revolucionar áreas e planos distintos, da justiça, da administração pública e do sector público e privado da economia.

Muitas das referidas reformas terão de ser traduzidas, depois, em diplomas concretos, e serão estes que deverão, por sua vez, merecer uma detalhada análise por parte do legislador, dos especialistas e da sociedade.  

Não é aqui possível analisar toda a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção.

Há, contudo, pontos específicos que devem merecer, de antemão, a atenção dos leitores e que por isso devem ser salientados.

Desde logo, porque alguns dos aspetos nela contemplados configuraram importantes novidades que têm, ou podem vir a ter – se levados a sério – reflexos óbvios e relevantes na cultura judicial, administrativa e empresarial do país.

Atentemos, por ora, em duas delas: a vincada prioridade dada às medidas de prevenção da corrupção e a proposta de compilação, unificação e uniformização de normas processuais e punitivas da corrupção e crimes conexos.

São estes, com efeito, os campos que considero deverem ser eleitos para uma compreensão inicial e abrangente da Estratégia, mesmo que não sejam eles os que, porventura, venham a concitar a atenção e o debate mediático.

Importa, quanto à primeira, salientar, desde logo, o peso dado a medidas de prevenção e contenção concretas dos riscos de corrupção em importantes áreas da atividade política, administrativa e económica.

É em tais medidas que, segundo o documento, devem assentar, com efeito, as bases culturais e organizativas do Estado, da sociedade e da economia que poderão suscitar e desenvolver uma maior indisponibilidade social e uma mais eficaz vigilância face ao fenómeno da corrupção e será sobre elas, portanto, que importará chamar a atenção do debate público.

A outra prioridade incide sobre o plano do que chamarei, para simplificar, o processo de codificação da muito variada, repartida e pouco estruturada legislação processual e punitiva dos fenómenos corruptivos e afins.

Esta opção inovadora tem uma importância capital e poderá ser capaz de, por si só, alterar a perceção que a sociedade tem do funcionamento da justiça neste plano da criminalidade.

Só ela poderá dar hoje coerência a um sistema disperso, de difícil compreensão e articulação e que, por isso, é, ainda, de alguma forma, causador de desigualdades gritantes na concretização da política punitiva do Estado.  

Sem mais, essa medida poderá acelerar enormemente, também, a dinâmica da justiça penal que investiga e julga esta espécie de casos.

Ora, a celeridade da investigação e do julgamento dos que praticam tais atos constitui o maior antídoto contra o clima de permissividade que parece ter envolvido este tipo de criminalidade durante muito tempo.

Nesse sentido, a celeridade da justiça funciona também como parte da estratégia de prevenção.

Se essa medida chegar, assim, a bom porto, não só se clarificam – simplificando-os – os procedimentos penais e as garantias processuais a eles associados, como se criam bases para uma melhor definição dos parâmetros das penas a estabelecer pela jurisprudência, dando-se, deste modo, uma resposta positiva ao anseio social de igualdade no tratamento de tais casos.

Acresce que tal medida transpõe para o plano do direito a conceção já existente na sociedade sobre a verdadeira importância de certos crimes – mesmo dos têm contornos muito particulares – que perturbam o normal funcionamento do Estado e da economia e, nestes dias de crise prolongada, escandalizam hoje o comum dos cidadãos muito mais gravemente do que outros classicamente tipificados no Código Penal.

Trata-se de crimes de corrupção e afins, praticados em circuitos muito especiais da nossa vida económica e social, mas que, apesar disso, absorvem hoje, na realidade, a maioria dos noticiários e concitam a atenção do público e a sua revolta. 

Temos, portanto, nesta análise breve, a evidência de duas direções estratégicas que, por si só, poderão ajudar a modificar radicalmente o panorama da resposta do Estado ao fenómeno da corrupção.

Claro está que existem, também, algumas orientações polémicas e detalhes importantes das reformas propostas que importa analisar em profundidade e, sobretudo, com cautela.

Por exemplo, será deveras relevante examinar os modelos de iniciativa e cooperação empresarial apontados na Estratégia na deteção e punição de atividades próprias de caráter corruptivo.

Sobre tal matéria, importaria que o legislador meditasse, pelo menos, nos casos perigosos e nos ensinamentos relatados e contidos em algumas obras recentes: uma de Antoine Garapon e Pierre Servan- Schreiber, Deals of Justice – Le marché américain de l’obéissance mondialisée, a outra de Tom Mueller, Crisis of Conscience – Whistleblowing in Age of Fraud.

Pela autêntica revolução conceptual e cultural que introduzem no nosso direito – algumas possivelmente com implicações constitucionais -, certas destas medidas não podem e não devem ser aprovadas de ânimo leve.

Por isso – por não se tratar de puras opções técnicas -, só um alargado consenso, fundado num amplo e aprofundado debate prévio sobre os seus limites e consequências, lhes poderá vir a conferir a autoridade moral que a busca da eficácia que as justificam necessita.

Não percamos, portanto, esta oportunidade para realizar um debate elevado e democraticamente esclarecedor, que seja técnico, mas também cultural. 

 


A estratégia nacional de combate à corrupção 2020-2024: o debate necessário


Alguns dos aspetos nela contemplados podem vir a ter - se levados a sério - reflexos óbvios e relevantes na cultura judicial, administrativa e empresarial do país.


O tema da corrupção será, sem dúvida, um dos que mais irá ocupar o debate político nos próximos tempos durante os vários ciclos eleitorais que se seguirão.

Há razões sérias para isso.

Outras há, de natureza puramente oportunista e populista, que do debate sobre este fenómeno apenas querem, infelizmente, extrair trunfos para atacar a Democracia.

Por tal motivo, uma discussão séria e informada sobre a corrupção é, hoje, verdadeiramente necessária.

A recém-divulgada Estratégia Nacional de Combate à Corrupção 2020-2024, constitui, como o nome indica, um plano de reformas que se pretendem integradas e coerentes e que poderão revolucionar áreas e planos distintos, da justiça, da administração pública e do sector público e privado da economia.

Muitas das referidas reformas terão de ser traduzidas, depois, em diplomas concretos, e serão estes que deverão, por sua vez, merecer uma detalhada análise por parte do legislador, dos especialistas e da sociedade.  

Não é aqui possível analisar toda a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção.

Há, contudo, pontos específicos que devem merecer, de antemão, a atenção dos leitores e que por isso devem ser salientados.

Desde logo, porque alguns dos aspetos nela contemplados configuraram importantes novidades que têm, ou podem vir a ter – se levados a sério – reflexos óbvios e relevantes na cultura judicial, administrativa e empresarial do país.

Atentemos, por ora, em duas delas: a vincada prioridade dada às medidas de prevenção da corrupção e a proposta de compilação, unificação e uniformização de normas processuais e punitivas da corrupção e crimes conexos.

São estes, com efeito, os campos que considero deverem ser eleitos para uma compreensão inicial e abrangente da Estratégia, mesmo que não sejam eles os que, porventura, venham a concitar a atenção e o debate mediático.

Importa, quanto à primeira, salientar, desde logo, o peso dado a medidas de prevenção e contenção concretas dos riscos de corrupção em importantes áreas da atividade política, administrativa e económica.

É em tais medidas que, segundo o documento, devem assentar, com efeito, as bases culturais e organizativas do Estado, da sociedade e da economia que poderão suscitar e desenvolver uma maior indisponibilidade social e uma mais eficaz vigilância face ao fenómeno da corrupção e será sobre elas, portanto, que importará chamar a atenção do debate público.

A outra prioridade incide sobre o plano do que chamarei, para simplificar, o processo de codificação da muito variada, repartida e pouco estruturada legislação processual e punitiva dos fenómenos corruptivos e afins.

Esta opção inovadora tem uma importância capital e poderá ser capaz de, por si só, alterar a perceção que a sociedade tem do funcionamento da justiça neste plano da criminalidade.

Só ela poderá dar hoje coerência a um sistema disperso, de difícil compreensão e articulação e que, por isso, é, ainda, de alguma forma, causador de desigualdades gritantes na concretização da política punitiva do Estado.  

Sem mais, essa medida poderá acelerar enormemente, também, a dinâmica da justiça penal que investiga e julga esta espécie de casos.

Ora, a celeridade da investigação e do julgamento dos que praticam tais atos constitui o maior antídoto contra o clima de permissividade que parece ter envolvido este tipo de criminalidade durante muito tempo.

Nesse sentido, a celeridade da justiça funciona também como parte da estratégia de prevenção.

Se essa medida chegar, assim, a bom porto, não só se clarificam – simplificando-os – os procedimentos penais e as garantias processuais a eles associados, como se criam bases para uma melhor definição dos parâmetros das penas a estabelecer pela jurisprudência, dando-se, deste modo, uma resposta positiva ao anseio social de igualdade no tratamento de tais casos.

Acresce que tal medida transpõe para o plano do direito a conceção já existente na sociedade sobre a verdadeira importância de certos crimes – mesmo dos têm contornos muito particulares – que perturbam o normal funcionamento do Estado e da economia e, nestes dias de crise prolongada, escandalizam hoje o comum dos cidadãos muito mais gravemente do que outros classicamente tipificados no Código Penal.

Trata-se de crimes de corrupção e afins, praticados em circuitos muito especiais da nossa vida económica e social, mas que, apesar disso, absorvem hoje, na realidade, a maioria dos noticiários e concitam a atenção do público e a sua revolta. 

Temos, portanto, nesta análise breve, a evidência de duas direções estratégicas que, por si só, poderão ajudar a modificar radicalmente o panorama da resposta do Estado ao fenómeno da corrupção.

Claro está que existem, também, algumas orientações polémicas e detalhes importantes das reformas propostas que importa analisar em profundidade e, sobretudo, com cautela.

Por exemplo, será deveras relevante examinar os modelos de iniciativa e cooperação empresarial apontados na Estratégia na deteção e punição de atividades próprias de caráter corruptivo.

Sobre tal matéria, importaria que o legislador meditasse, pelo menos, nos casos perigosos e nos ensinamentos relatados e contidos em algumas obras recentes: uma de Antoine Garapon e Pierre Servan- Schreiber, Deals of Justice – Le marché américain de l’obéissance mondialisée, a outra de Tom Mueller, Crisis of Conscience – Whistleblowing in Age of Fraud.

Pela autêntica revolução conceptual e cultural que introduzem no nosso direito – algumas possivelmente com implicações constitucionais -, certas destas medidas não podem e não devem ser aprovadas de ânimo leve.

Por isso – por não se tratar de puras opções técnicas -, só um alargado consenso, fundado num amplo e aprofundado debate prévio sobre os seus limites e consequências, lhes poderá vir a conferir a autoridade moral que a busca da eficácia que as justificam necessita.

Não percamos, portanto, esta oportunidade para realizar um debate elevado e democraticamente esclarecedor, que seja técnico, mas também cultural.