A pandemia de covid-19, que os últimos dados demonstram estar a agravar-se em todo o mundo, colocou a advocacia portuguesa perante uma nova realidade muito perniciosa para a advocacia. Na verdade, a pretexto do combate à pandemia, e às vezes até mesmo sem esse pretexto, foram postas em causa várias garantias dos advogados que nenhuma pandemia pode restringir.
Em primeiro lugar salienta-se que, nos termos do art.o 79.o, n.o 2 do estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), os advogados, quando no exercício da sua profissão, têm preferência para ser atendidos por quaisquer trabalhadores a quem devam dirigir-se e têm o direito de ingresso nas secretarias, designadamente nas judiciais. Essa preferência no atendimento não está, no entanto, a ser assegurada, estando a ser exigidas marcações prévias para atendimento nos serviços públicos, as quais só com muita dificuldade são concretizadas pelos funcionários, sendo marcadas para datas muito distantes. E nalguns casos como, por exemplo, no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, tem-se até impedido os advogados de acompanharem os seus clientes no atendimento nesses serviços.
O acesso aos tribunais e o direito de ingresso nas secretarias judiciais, mesmo para um acto tão simples como a consulta de um processo, está igualmente a ser muito dificultado, o que torna cada vez mais complexo o exercício do patrocínio judiciário. Na verdade, o advogado não pode exercer adequadamente a defesa do seu constituinte se não tiver a possibilidade de consultar o processo que o envolve, sendo inaceitável que essa consulta não esteja a ser assegurada pelos serviços dos tribunais, ao contrário do que a lei expressamente determina.
Da mesma forma, não é aceitável que vários tribunais tenham procurado limitar a assistência de advogados nas audiências de julgamento, procurando reduzir o seu número, e impedido advogados estagiários de estar presentes nessas audiências, a pretexto das limitações de espaço nas salas. Na verdade, o art.o 72.o, n.o 1 do EOA estabelece que “os magistrados, agentes de autoridade e trabalhadores em funções públicas devem assegurar aos advogados, aquando do exercício da sua profissão, tratamento compatível com a dignidade da advocacia e condições adequadas para o cabal desempenho do mandato”. Para esse efeito, o n.o 2, do EOA estabelece que “nas audiências de julgamento, os advogados dispõem de bancada própria e podem falar sentados”. Se o Estado, nos últimos tempos, adoptou uma política errada de instalar os tribunais em edifícios totalmente inadequados à sua função, que se revelam um factor de risco acrescido em tempos de pandemia, tem agora de corrigir esse erro e assegurar a obtenção de edifícios com as condições necessárias para que os julgamentos se realizem em condições de segurança, sem limitar a presença dos advogados e dos advogados estagiários nas audiências de julgamento.
O art.o 66.o, n.o 3 do EOA determina que “o mandato judicial, a representação e assistência por advogado são sempre admissíveis e não podem ser impedidos perante qualquer jurisdição, autoridade ou entidade pública ou privada, nomeadamente para defesa de direitos, patrocínio de relações jurídicas controvertidas, composição de interesses ou em processos de mera averiguação, ainda que administrativa, oficiosa ou de qualquer outra natureza”. É, por isso, claro que as garantias dos advogados têm de ser asseguradas, independentemente da pandemia, até porque, como se provou pelos sucessivos casos de habeas corpus decretados pelos tribunais contra as prisões arbitrárias determinadas pelas autoridades, são os advogados o último reduto da defesa dos cidadãos contra lesões dos seus direitos fundamentais por parte do Estado.
O art.o 71.o do EOA determina que “os advogados têm direito de requerer a intervenção da Ordem dos Advogados para defesa dos seus direitos ou dos legítimos interesses da classe, nos termos previstos no presente Estatuto”. A Ordem dos Advogados tem estado atenta a essas situações e não deixará de reagir perante as sucessivas violações da lei por parte dos serviços do Estado em relação às garantias de exercício da advocacia.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990