Estão bem documentadas no campo da edição uma série de belos desastres e derrotas admiráveis, catálogos que se erguem como discretíssimas utopias e que ficam por aí, espalhados, como sinais com direcções para lugares que, ainda que só existam na imaginação de uns poucos, ao longo das épocas não deixam de produzir uma estranha força de gravidade que faz rolar algumas maçãs e cabeças deste para o outro mundo. Mas se a história da edição é ela própria uma épica da derrota, cumulando esperanças absurdas, excelentíssimos projectos apoiados em cálculos delirantes, sempre dependeu de figuras com algum desdém pelas coisas terrenas e com disponibilidade para prodigalizar os seus bens. Nos últimos anos, a coisa tem andado um pouco deprimida. Tem faltado a matéria prima essencial a um campo que, se não está entregue à fantasia, resvala para um drama enfadonho e insosso. Faltavam editores desses disponíveis para ousadias que façam estremecer a aborrecida sensatez dos demais. Eis que, no pior ano que os deuses podiam congeminar, surgem rumores de que viria aí um desses raros personagens com vontade de enterrar uns cobres neste chão cada vez mais estéril. A Bazarov, de tão temerária na sua entrada em cena, parece uma editora kamikaze. Vai publicar 12 livros nos próximos três meses, e tem já outros 24 em fila para o próximo ano. A maioria autores vivos ou contemporâneos, traduzidos de várias línguas. Tudo propostas ostensivamente literárias, dessas que ameaçam a claridade das fronteiras entre géneros, levando a ficção e o ensaio a extremos que causam até tonturas aos leitores. Quem está por trás do projecto é um rapaz de Arrifana, nascido em 1985, e que depois de ter dado por si entre esse desolador número dos que foram convidados a emigrar, deu-se bem em Londres, casou por lá, e está a tentar regressar agora, tendo na mira um meio que, hoje, o deprime. A paixão pelos livros começou nos tempos de infância. Tendo sido pai há dois anos, diz que é para o filho que está a fazer o catálogo da Bazarov, mas também fica claro nesta entrevista que tem contas a ajustar com o país que fez da sua uma geração dilapidada, e percebe-se que está apostado em medir-se com tempos menos ordinários, para que, depois da crise económica, e agora que se ergue a onda de destruição da pandemia, não nos afundemos no desespero ou na nostalgia, afirmando que o futuro já não é como era.
A tua primeira experiência no meio editorial foi enquanto funcionário da Porto Editora. Como correu?
Sim, foi há bastantes anos e numa função algo paralela, na assessoria de imprensa. Foi uma experiência relativamente curta, e posso dizer que terei sido, num misto de embaraço e orgulho, o pior funcionário de sempre da Porto Editora.
Mas que percurso te levou a deixar o país e a sustentares-te com investimentos em várias empresas em Londres?
Fiz a formação académica na Faculdade de Letras do Porto, e isto com a perspectiva de que o que queria mesmo era escrever. Quando concluí o curso, e depois de um processo de selecção moroso e complicado, consegui o emprego na Porto Editora. Estive no gabinete de assessoria e comunicação pouco mais de um ano, e nunca foi algo que me motivasse. Entretanto, saio e ando uns tempos a fazer outras coisas até decidir ir para Londres, onde segui um percurso profissional que não se liga minimamente à literatura…
O que é que te levou para Londres?
Não tinha como me sustentar em Portugal. Senti que tinha de fazer alguma coisa, ir lá para fora porque aqui não parecia haver nada para mim. Foi o que fiz, e as coisas vêm-me correndo bem.
Quando chegas a Londres, o que é que tens lá à tua espera?
Um trabalho de customer service (atendimento ao cliente), que lutei para conseguir. No final do primeiro mês, consegui alugar um pequeno quarto. Tenho algumas histórias desses tempos de aflição que me obrigaram a passar os dias à espreita de oportunidades, para tentar fazer pela vida, de uma forma que aqui não me estava a ser possível. Estou muito grato a Londres. Foi lá que conheci a minha mulher e que nasceu o meu filho.
A tua mulher é inglesa?
Não, é russa.
E que oportunidade é que agarraste em Londres e te deu a possibilidade de mudares a tua vida?
Toda a gente quer saber isso… Explico-te facilmente. Mas antes quero dizer-te que eu não me tornei milionário. Sou apenas um pouco tolo e gosto de livros. Se há sítio onde as coisas acontecem é em Londres. Se trabalhas ali, e se provas a tua capacidade, e que tens gosto pelo que fazes, consegues crescer, e quando cresces conheces pessoas que te convidam para outros projectos e negócios. As coisas acontecem muito mais rapidamente do que aqui em Portugal. Tive mais sorte nuns investimentos do que noutros, mas o balanço tem sido positivo. Não sei se vai continuar assim. Mas trabalho muito, e não é fácil. Sobretudo pelas saudades. O meu filho passa agora mais tempo em Portugal e eu mais lá.
A Bazarov não entra aqui como mais um investimento com vista a ser uma fonte de lucro…
De modo nenhum. É muito mais um capricho do que um projecto profissional. Na verdade, é fruto do meu descontentamento com as leituras que vou fazendo em português. Tenho lido cada vez mais edições estrangeiras, e porque considero que a língua portuguesa ainda é a mais bela, houve uma série de obras que quis ver traduzidas em português, e isso nunca aconteceu. Assim, a Bazarov surge como um catálogo de ausências que me pesam.
Para quem acompanha a vida editorial, ver desdobrar-se um catálogo que arranca com 12 obras em tradução, dividido entre ficção literária e ensaio de autores vivos ou recentemente desaparecidos, títulos que são sobretudo sucessos de crítica, isto parece um projecto de tal modo ambicioso que é mais como um moinho para ventos que não há…
É realmente um projecto que chega sem ter chão ou base de sustentação. No plano financeiro que foi traçado, eram tantos os números desencorajadores que tudo parecia pedir que não fossem dados os passos que estamos a dar. Isto nasce do amor pelos livros, mas depois de ter sido pai houve em mim uma urgência de querer fazer alguma coisa pelas minhas preferências e convicções, como um catálogo que eu possa um dia mostrar ao meu filho. É algo como um instrumento que me permitirá legar-lhe em testamento (em sentido simbólico) aquelas obras que me marcaram, essas coisas que li e que me moldaram. Em vez de escrever um livro, prefiro assumir esse orgulho pelos livros que li e que gostaria de lhe deixar.
Vês alguma hipótese de a editora ser viável do ponto de vista financeiro?
É um projecto idealista, por isso, não tenho ilusões sobre a sua sustentabilidade financeira. De resto, não me parece que haja algum projecto editorial sério que nasça hoje, por cá, com ambição de fazer dinheiro. A ambição que resta parece ser a de ir fazendo as coisas à mercê das vontades. Ora, aqui não andaremos a reboque de tendências, mas procuraremos impor uma visão pessoal do que nos parece o melhor que se tem publicado por todo o mundo, e tentaremos apenas não perder muito dinheiro. E isto até para não arranjar problemas familiares, porque a minha mulher pode simplesmente fartar-se de me ver a atirar dinheiro à rua. No fundo, quis marcar esta posição, que era criar um projecto em que é a paixão que assumidamente dita a direcção a seguir. E não me parece que esteja isolado nisto. Nos últimos anos apareceram algumas editoras que também se orientam pela paixão de leitores que quiseram aventurar-se na edição. Se uma ou outra, infelizmente, ficaram pelo caminho, como é o caso da Ahab, pelo menos deixaram ficar a sua marca. Também não sei quanto tempo irá durar a Bazarov, mas enquanto durar será com o firme propósito de defender uma literatura de excepção, aquela em que verdadeiramente acredito. Porque mesmo depois de o projecto desaparecer os livros ficarão por aí, como um pó que demora a assentar e que vai sendo respirado por quem ainda procura livros capazes de fazer alguma diferença.
Tendo em conta que tens vivido fora do país, e que nos últimos anos foste permeável à influência de alguns projectos editoriais que têm aparecido e que traçam um caminho à parte, como é o caso das edições Fitzcarraldo, sediadas em Londres, gostava de saber quais são os selos que te deram as coordenadas que agora pretendes seguir.
Obviamente, a Fitzcarraldo é uma referência, até porque conheço o editor, o Jacques Testard, que é um jovem francês da minha geração. Temos gostos semelhantes e até trocamos algumas sugestões, pontualmente. Fui eu que tomei a iniciativa de contactá-lo, e, inicialmente, a minha ideia era colaborar de alguma forma naquele projecto. Mas depois entendi que era um projecto muito pessoal, e que era isso o que o distinguia. Além da Fitzcarraldo, a New Directions também foi uma influência, depois há uma série de outros projectos independentes que vou descobrindo e que me entusiasmam, como La Bestia Equilátera, um projecto argentino, gosto também da Archipelago Books, gosto da Pushkin Press, sobretudo de uma colecção de livros de pequeno formato que eles têm…
E estes títulos e autores que marcam a vossa linha de partida, são escolhas muito pessoais ou foram definidas por acordo com o Guilherme Pires, que foi a pessoa do meio a quem recorreste para te ajudar a lançar a editora?
A maior parte dos livros são escolhas pessoais, obras que eu li e que gostaria de trazer para a nossa língua. Nestes primeiros 12 títulos que vamos lançar este ano, a tendência foi para autores ainda bastante jovens ou em plena actividade. Com a excepção do David Foster Wallace e do Lyall Watson, são autores que estão ainda vivos e cuja obra não foi suficientemente divulgada entre nós. Em alguns casos são obras sugeridas pelo Guilherme, que fui ler e que me pareceu que se enquadrariam perfeitamente no estilo da Bazarov. O que me importa acima de tudo é uma escrita mais dura, poética talvez, mais no osso. Assim, o primeiro livro por nós publicado, “Censo”, de Jesse Ball, nasce de uma sugestão que me fez o Guilherme, tal como “Deserto Sonoro”, de Valeria Luiselli. O Guilherme é um leitor dedicado e com muito bom gosto, e tem sido uma ajuda fundamental. Mas a Bazarov não contará no catálogo apenas com autores recentes e vivos. A maioria das minhas referências estão com os mortos. Entre os títulos cujos direitos já estão do nosso lado e que serão editados em 2021, há autores mortos que estão até já editados em Portugal, mas não toda a obra. É o caso de Robert Walser. É uma grande satisfação para mim trazer títulos deste autor, uma das minhas grandes referências, para Portugal, sobretudo as histórias mais curtas.
Como é que chegas ao Guilherme Pires?
Era meu amigo no Facebook antes de nos conhecermos pessoalmente. Eu conhecia mais ou menos o percurso dele, sabia que tinha estado no grupo 20 20, tínhamos amigos em comum, e decidi contactá-lo. É um pouco esse o meu registo, entrar em contacto directo. Encontrámo-nos para almoçar, falámos muitos sobre livros e as leituras que nos apaixonam, e achei que ele era a pessoa de que eu andava à procura para me ajudar a levar para a frente este projecto. Eu sou pouco mais do que um leitor. Como editor não tenho experiência, e, por isso, é o Guilherme quem traz esse conhecimento. A mim começa-me a doer a cabeça rapidamente se me debruço sobre um texto em trabalhos de revisão. Limito-me a escolher livros de que gosto muito e o resto do trabalho é feito pelo Guilherme. Ele é que escolhe os tradutores, os revisores, é ele que trata de tudo para que o livro fique o mais cuidado possível. Depois desse primeiro almoço, o contacto multiplicou-se por uma série de conversas e encontros, e acabámos por nos tornar amigos. Estou convencido de que não podia ter escolhido melhor pessoa e editor para me acompanhar nesta aventura.
Numa entrevista que deste recentemente, fazias uma análise da precariedade que tomou conta do meio editorial, e, em resposta, disseste que vocês irão fazer um esforço por pagar acima do valor que pagam as outras editoras e fazê-lo assim que o trabalho vos seja entregue, em vez de obrigar tradutores e revisores a esperarem 30 ou até 60 dias para receberem. No fundo, vão repor a normalidade e até a dignidade num meio onde se banalizaram estes abusos, e ainda por cima num meio do qual se espera que estabeleça alguns valores, que se bata por certos ideais… Que avaliação tens feito, nestes meses desde que te puseste a reconhecer o terreno, do espaço literário e editorial?
Neste ponto posso escolher um de dois caminhos: ou sou completamente honesto e vou ser bastante caustico ou procuro manter-me focado naquilo que me parece ser possível fazer para contribuir para isso, sem estar a escarafunchar na ferida. O que é que preferes?
Acho que podes ser completamente honesto e caustico mesmo que depois avaliemos o que é que tem interesse transmitir ao leitor. Isto não é entrevista a um dirigente político ou a uma figura em que seja necessário registar até a entoação, e o que me interessa é perceber este projecto editorial e não arranjar maneira de te entalar para conseguir sacar alguma manchete mais sumarenta.
Está bem. Agradeço. Obviamente houve uma pesquisa feita neste terreno e houve também abordagens a algumas editoras… Para te ser completamente honesto, a minha intenção inicial não passava por criar uma editora. Como te disse, sempre li bastante, e havia um conjunto de editoras que eram para mim referências, mas que, com o passar dos anos, foram deixando de o ser. Sobretudo por um relaxamento dos critérios. Nos últimos tempos também vi nascer projectos bastante interessantes, com boas escolhas, mas que não resistiram. E o meu objectivo era fazer alguma coisa para recuperar esse sentido de rigor.
Podes dar-me exemplos das abordagens que fizeste?
Posso dizer-te que estive em negociações com um grupo editorial para aquisição das suas chancelas literárias, abordei também pequenas editoras, até uma ou outra livraria, no sentido de saber o que podia fazer para ajudar, para que os projectos ressuscitassem, para que resistissem ou até para que crescessem. Mas tudo se foi revelando muito difícil. Não sei se somos neste país muito desconfiados, ou se estamos muito apegados ao nosso quintal… Não sei bem o que é. Mas tenho a sensação que, particularmente no meio cultural, tudo parece carregado de vícios, e percebi que não ia ser eu a quebrar essa lógica. Mas é sabido que é difícil fazer negócios em Portugal em geral. Quando se entra no meio literário, em particular, o ambiente é ainda mais espinhoso, mais difícil. Parece-me que começas a dar por ti a penetrar um labirinto cerrado, e, uma vez que eu tentava apoiar e só me deparava com resistências, resolvi que o melhor seria ser eu a criar alguma coisa de raiz. É assim que nasce a Bazarov, com a noção clara de que o dinheiro investido não será recuperado, mas que, em contrapartida, me dará um gozo tremendo, pois sempre quis fazer alguma coisa que respeitasse à vida dos livros, a defender a tradição do papel. Não sou um entusiasta do digital. O cheiro dos livros é das coisas que melhor conhece o caminho através das memórias que guardo da infância. Assim, a Bazarov nasce da desilusão de não me ter sido possível salvar ou recuperar projectos que eu apreciava enquanto leitor, mas começo a pensar que este foi o rumo certo, e qualquer outro só me teria conduzido a equívocos e a dificuldades maiores.
Fazendo uma avaliação do que se vai sabendo dos hábitos dos leitores portugueses, parece que a Bazarov aterra como um projecto alienígena e que mais facilmente será estudada por homens com batas do que pelos leitores que ainda vão sustentando o nosso mercado editorial.
A Bazarov é uma provocação. É uma editora que nasce da necessidade de provocar um meio que se acomodou à sua agonia. Vindo a Portugal com frequência, não deixo de entrar nas livrarias, e até nas das grandes cadeias, e, ao olhar para as prateleiras e, sobretudo, para os tops, o que sinto é vergonha. Sinto tristeza por ver como o país nega a si mesmo algo mais do que esta triste ração. Olhando para as recensões nos jornais, para o espaço que é dedicado aos temas literários ou de cultura sinto a mesma vergonha e tristeza. Lembro-me de como jornais como “O Independente” podiam dedicar uma página inteira a um poema ou à sua análise, mas, hoje, venho a Portugal, com saudades da minha língua, e quero ler melhor, ler de uma forma que me compense desta ausência, e não consigo. Sinto que o próprio país me empurra para ler noutras línguas. Leio cada vez melhor lá fora.
O que foi que mudou?
Vejo projectos editoriais que foram uma referência para mim em tempos e que, hoje, parecem confundir ambição e desleixo. O meu filho tem dois anos e se eu quiser também deixo que seja ele a fazer as capas dos meus livros, mas parece-me que, antes de pensar na vaidade do meu filho, que um dia há-de herdar o que quer que fique da Bazarov, tenho de respeitar a inteligência e o bom gosto dos leitores. Também acho que uma editora literária publicar dez livros por mês não faz o menor sentido. Acho que os jornais estarem a abdicar das páginas culturais é estarem a pedir para que os últimos leitores que ainda têm lhes virem as costas. E acho que ter uma editora nas mãos a definhar e não querer salvá-la por birra, porque só aceitamos que as coisas sejam feitas à nossa maneira, também não faz sentido. O que também não faz sentido é a quantidade absurda de livros que se continua a publicar e que dão a sensação de que há uma indústria que pouco mais faz do que andar a sujar papel.
E o que pode neste quadro uma editora?
A Bazarov nasce como uma provocação, nasce disposta a perder dinheiro para lembrar que esse é um requisito se queremos defender a tradição editorial. A Bazarov nasce disposta a isso. Nasce com o compromisso de imprimir 1500 exemplares de cada livro, isto sabendo que não há 1500 leitores neste país para estes livros. Os livros vão ficar por aí e, na pior das hipóteses, ainda que vendam muito mal, vão forrar as paredes da minha casa, o que será uma decoração que não deixará de me honrar, podendo sempre retirar um volume e prosseguir essa leitura contínua que estes títulos merecem. O que importa é que vamos publicar exactamente aquilo em que acreditamos, sem deixar que seja o mercado a ditar as regras do jogo. Portanto, vamos perder dinheiro, mas vamos marcar uma posição.
Falaste dos jornais e editoras que para ti foram referências, e falaste num espaço que, hoje, te começa a parecer um tanto devastado. Há quanto tempo estás fora de Portugal e de que maneira é que isso levou a uma perspectiva diferente sobre o país?
O afastamento, por motivos profissionais, deu-se em 2013 ou 2014, e teve um efeito que me parece curioso, porque senti, antes de tudo, que estava a ser afastado da nossa língua. O seres obrigado a contactar diariamente com outra língua, leva a que passes cada vez mais tempo mergulhado nela ao ponto de as ligações na tua cabeça já não estarem sujeitas à tradução, mas é o próprio pensamento que se muda, que passa a funcionar de acordo com a nova língua, e, de algum modo, isso afecta bastante a tua forma de pensar e sentir. A verdade é que a estrutura sintáctica dos teus pensamentos organiza as tuas ideias, e sentes que a adopção da outra língua não é uma coisa de somenos. Fiquei bastante assustado com isto. Sempre senti como um motivo de orgulho a capacidade de me expressar com um bom domínio da língua portuguesa, de forma flexível na forma como ia esticando mais ou menos a linha para pescar no vocabulário e estabelecendo ligações. E o facto é que, ao fim de um tempo, sempre que retomava a minha cabeça em português sentia que estava a perder essa agilidade, as coisas começavam a emperrar, e era-me difícil articular as ideias da forma que fazia antes. Também por isso entrei num combate a este processo, o que me levou a ler mais, e fiz então um esforço para acompanhar o que se estava a editar em Portugal, para impedir que o caminho de volta ficasse obstruído. À medida que fui fazendo este esforço, fui sentindo cada vez mais dificuldade em encontrar livros e conteúdos que me empolgassem.
Não te referes apenas aos livros…?
Não. Dei-me conta de que a comunicação social estava a espremer cada vez mais o espaço dado à cultura a ponto de a tornar irrelevante. Porque mesmo o espaço que era dado estava a perder profundidade. Hoje, na cultura no nosso país, raramente se encontra uma análise mais profunda, e o facto é que o jornalismo passou a ser apenas uma malha entretecida entre manifestações de superfície, sem dar margem à reflexão, ao pensamento. Há muitas pessoas a voluntariarem a sua opinião mas o que não se vê é um esforço de pensar porque é que as coisas chegaram ao ponto em que estão. O que mais vemos são figuras empunhando as metralhadoras da culpa, disparando em todas as direcções, mas são raros aqueles que se aplicam a fazer um trabalho aturado para mostrar o encadeamento destes fenómenos, explicando o que se está a passar.
E no que respeita ao meio editorial?
Parece-me evidente que os editores abandonaram as obras mais exigentes, e se deixaram levar pela corrente, cedendo àquilo que o mercado absorve e consome mais facilmente. Ora, aquilo a que tenho assistido, hoje, no meio onde me insiro, em Londres, é que já há uns anos tem havido uma tendência inversa, que está a ser marcada pelo aparecimento de projectos independentes, rebeldes, que se aproveitam das frinchas e dos espaços que os dedos grossos dos gigantes não conseguem alcançar. Está, hoje, a assistir-se a um renascimento e reflorestação da paisagem editorial, com pequenas editoras mais dinâmicas, quase sempre dirigidas por jovens, e que assumem os riscos a que os grandes grupos são avessos. Começa a aparecer gente com instinto, que se lança em projectos extremamente arriscados, voltando a cultivar esses nichos que foram sempre o terreno natural de onde emerge a grande literatura. Mas minha apreensão com isto irá adensar-se com o nascimento do meu filho.
Porquê?
Há aqui uma motivação bastante egoísta. Quero ter condições de definir um campo de referências onde gostaria de ver o meu filho educar-se, escolher os gigantes aos ombros dos quais ele vai ganhar uma visão de fundo das coisas. É ainda muito cedo, é claro, para me estar a preocupar com isto, mas acho que é defeito de personalidade esta minha ansiedade.
Além de teres feito um curso de Letras, admitiste que tinhas aspirações literárias, que querias ser escritor. Continuas a escrever? E em que língua?
Escrevo desde muito cedo. Quando era miúdo tinha alguns problemas de fala, problemas com que ainda me debato. Neste momento essas dificuldades estão mais amenizadas, mas em criança eram bastante severas. E a escrita sempre foi uma forma de esgrimir com a língua sem estar a ser perturbado pelos gaguejos, por essas interrupções que nos fazem cair do cavalo. Foi por aí que nasceu o gosto pela escrita. Sempre me considerei um escritor, tendo havido fases em que escrevia muitíssimo seguidas de outras de silêncio. Na verdade, cada vez me inclino mais para a ideia de que o que define um escritor não é a regularidade com que se senta a escrever, mas uma disposição para observar, traduzir o mundo e recompô-lo em imagens, em histórias. Conheço um treinador de futebol que, embora o mais provável é que nunca se tenha sentado para escrever algum texto literário, dominava todos os impulsos na comunicação que me parece que denotam um espírito com uma fineza e uma capacidade de calibrar o discurso para entreter as mais significativas nuances. É alguém que sabe pôr por palavras aquilo a que cheira o mundo nas suas tantas disposições. Por isso, começa a atrair-me cada vez mais a ideia de que os escritores sabem escapar a esse cerco disciplinar de terem de se sentar todos os dias e escrever qualquer coisa.
E em relação às tuas leituras?
Há um bom tempo que não leio com o fito exclusivo de me entreter ou tirar disso apenas prazer. Há cada vez mais uma perspectiva de absorção, e de tentar investigar o estilo, perceber de que é feita essa correnteza. É o estilo e a forma, muito mais do que o conteúdo, aquilo que me intriga. A história não me perde tanto como a frase. Leio com instrumentos de exame, como quem realiza uma perícia qualquer, muito mais do que me deixo levar pelos incidentes relatados. Não conseguiria fazer uma lista de livros para ler em férias, com o intuito de relaxar. Neste momento não te sei dizer o que seja um livro que me relaxe. Acabo sempre por dar por mim debruçado, num exame minucioso, feito quase ao microscópio. Por isso, os autores que me inquietam nesta fase da minha vida são esses que escondem os seus crimes na forma.
Colocas a hipótese de te publicares com o selo da Bazarov?
Não, de todo. Para já, nesta fase da minha vida não tenho a ambição de publicar, e, em segundo lugar, acho que a bitola na Bazarov é demasiado elevada para alguém que estaria a dar os primeiros passos.
Em tempos as editoras não se limitavam a fazer os livros e fazer figas, esperando que fossem acolhidos pelas livrarias e vendessem alguma coisa. Batiam-se pelos seus autores, chegaram a dinamizar revistas literárias, encontros e debates. Não sendo fácil apresentar ao leitor português estes autores que a Bazarov vai publicar, os quais, em muitos casos nem nunca ouviu falar, estás a pensar fazer apenas os livros e distribui-los ou pretendes também fazer algum trabalho de comunicação?
Lamento desapontar-te, mas, depois de muita reflexão sobre isso, decidi que a nossa comunicação estará reduzida ao mínimo. Depois de pensar muito sobre o melhor a fazer para apresentar estes escritores, de estudar os exemplos de outras editoras e a forma como fazem a sua comunicação, decidi que faria apenas a comunicação estritamente necessária. Tomei a decisão de nunca usar imagens, nem cores, a não ser o preto. A Bazarov é só texto. Isto não é desleixo, nem é por facilitismo. Cheguei à conclusão de que aquilo que mais confortável me deixa é não concorrer pelo espaço mediático, limitar-me a garantir que os livros são feitos com o maior cuidado possível, e que vão sendo descobertos pelos leitores que estão atentos. Não vou comprar espaço nas livrarias nem na imprensa, não vou pedir favores, nem fazer atenções aos críticos, não vou chorar nem queixar-me se não for dada a menor atenção a estes livros. Fazemos as notas de imprensa por uma questão de cortesia, mas não se espere mais do que isso.
Disseste que não fazes ideia quanto à duração que a Bazarov pode vir a ter. Mas além destes primeiros 12 livros, para 2021, tens já contratados os direitos para editar mais uns vinte e tal. Vais manter o ritmo de publicação de quatro livros por mês?
Os livros já eram para ter saído mais cedo. Por causa da situação da pandemia achei que viria aí uma avalanche de novidades para o mercado, e para não contribuir para isso, causando ainda mais pressão sobre um mercado já atafulhado, decidimos adiar para Setembro. O plano inicial era ter começado em Julho, e, se assim tivesse sido, os lançamentos seriam mais espaçados. Mas o objectivo é publicar estes 12 em Setembro, Outubro e Novembro, e mais 12 no primeiro semestre de 2021, e outros 12 no segundo semestre. Portanto, um ritmo de publicação de 24 livros por ano.
E gostarias de manter ritmo no tempo de vida da editora?
Na verdade, gostaria de editar 48 livros por ano em duas chancelas.
E a outra chancela já está pensada?
Não. O mais provável é que nem chegue a ir para a frente. Mas perguntaste-me o que é que eu gostaria de fazer… O espaço em que a Bazarov vem integrar-se tem já algumas editoras em campo. São editoras de que gosto muito, mesmo muito, e às quais agradeço por fazerem o trabalho que fazem. Estou a falar da BCF, da VS (Vasco Santos Editor), da Snob, da Sistema Solar… É um espaço curto, e a Bazarov não tem a pretensão de o alterar de forma dramática. Se lançasse outra chancela, provavelmente seria dedicada exclusivamente ao ensaio.
Basta ter em conta os custos de edição entre tradução, revisão, paginação, grafismo, etc., destes 12 livros que vais lançar este ano para ter a noção de que já foi empenhada aqui uma pequena fortuna. E sendo este um projecto que se desenha de tal modo em que tudo indica que irá sofrer perdas sérias, gostava de saber se estás disposto a falar em números para termos uma ideia dos custos envolvidos?
O arranque da editora, e estes primeiros 12 livros, com todos os serviços incluídos, desde as traduções ao trabalho de coordenação editorial do Guilherme, com o trabalho de design feito pelo Andrew Howard, além da contratação dos direitos, tudo isso andou à volta dos 100 mil euros.
E se esta editora se revelar um fiasco absoluto, quantos anos de actividade é que garantes à partida?
Queres perguntar quanto dinheiro é que eu tenho para gastar?
Sim.
Estes primeiros 12 livros custaram os tais 100 mil euros, e ponho a hipótese de recuperar 15 a 20 mil euros. Fico a arder com 80. Conto que o custo dos próximos livros baixe, rondando os 6 a 7 mil euros, e se lançar 24 livros, recuperando apenas 20% do investimento, suponho que vá gastar 200 mil euros num ano e meio.
Portanto, um ano e meio pode ser o tempo de vida da Bazarov?
Não sei. A minha fonte de rendimento não é esta. Trabalho, trabalho muito, e as coisas até me têm corrido bem. Tenho diferentes negócios, em diversas áreas, e, enquanto tiver vontade, enquanto a minha mulher não começar a perder a paciência e irritar-se por me ver desfazer-me do dinheiro desta forma, vou continuar.
A Bazarov parece surgir no pior ano e no pior momento para se lançar uma editora.
Sim, nem podia ser de outra maneira. Se a Bazarov nasceu para provocar, também faz sentido que o seu baptismo seja bastante duro. Porque é garantido que esta é uma editora que vai levar muita porrada. E, sim, nasce numa altura boa para começar já a apanhar forte e feio.
Como será o processo de distribuição dos vossos livros? Vais ter uma distribuidora? Conseguiste que a Bertrand vos acolhesse, ou estás na mesma situação que todas as pequenas editoras que são simplesmente ignoradas e barradas pela maior cadeia livreira do país?
Seria muito complicado associarmo-nos a uma distribuidora porque isso significaria entregar-lhe 60% do preço de capa. Se eu o fizesse depois como é que pagava às pessoas? Como é que um livro faz algum lucro, se com todos os gastos que implica, apenas ficamos com 40% do seu valor? Como é que lanço outros livros a seguir? Face a isto, a distribuição tinha de ser feita por nós. Vamos estar nas lojas Fnac, na Almedina, Corte Inglês, e nas livrarias independentes. Quanto à Bertrand, não sei. A verdade é que nem me responderam.
Portanto, além do Guilherme Pires, vais ter mais pessoas a trabalhar na Bazarov, para tratar da distribuição?
Não, não quero. Da distribuição vou tratar eu. É a minha forma de estar envolvido no dia-a-dia da editora, isto para além das escolhas feitas enquanto leitor. Não sou editor, não sou tradutor nem revisor, e, assim, a minha forma de estar envolvido é ir buscar os livros à gráfica, trazê-los com o maior cuidado para casa, e depois ir aos correios, mandá-los para onde tiverem de ir, ser eu a escrever as moradas, à mão… É a minha forma de suar o meu carimbo neste projecto. Isto nos dias em que esteja aqui em Portugal. Se me ausentar por uns tempos, e for preciso alguma coisa, provavelmente irei contar com a ajuda do meu irmão.
Destes primeiros 12 livros já anunciados, quais são aqueles que te deixam mais empolgado e orgulhoso por os ires dar a conhecer ao leitor português?
A grande recompensa de tudo isto é sobretudo essa. É montar um instrumento tão poderoso como este. O nome que destaco à cabeça é o Eliot Weinberger. Foi o último autor que me arrebatou. Mais do que isso, foi como ser esbofeteado, humilhado. É darmo-nos conta de que estamos muito longe do verdadeiro génio. A clareza do pensamento, a sagacidade expressiva da escrita dele… É um dever e uma honra trazer este autor para as nossas livrarias. E se tiver condições de o fazer, quero publicar toda a obra dele. Acho que é um desses autores que criam a sua própria categoria, desde logo pela hibridez do estilo, pela forma como avança e explora os temas, como uma Wikipedia em esteroides. Não vai vender nada, e pode ser até que ninguém por cá dê por ele, mas é tão bom que a vontade que dá é felicitar um a um os leitores que se empenhem em lê-lo. Destacaria também os ensaios sobre ténis do David Foster Wallace. Lembro-me de os ter lido numa edição da Library of America, há uns anos, e foi um livro especial, até porque adoro o ténis. De resto, é difícil encontrar outro autor que tenha escrito tão bem como ele fez sobre desporto. Depois há o “Censo”, de Jesse Ball, que é um livro muito marcante para quem é pai, para quem, como eu, anda um pouco enredado nestas questões da paternidade. Há depois alguns títulos que me parece que terão algum sucesso comercial quando os seus autores alcançarem a projecção para a qual os seus feitos já apontam. É o caso da Valeria Luiselli, que será sem dúvida alguma um dos próximos grandes nomes da literatura mundial. Há ainda o caso do César Aira, que não se entende a pouca divulgação que tem tido em Portugal, e há ainda o Gerald Murnane, um eterno candidato ao Nobel, uma personagem que escreve da forma que mais gosto me dá ler, um prodígio de concisão, escreve no osso… São livros que, à medida que começam a ficar prontos e a chegar aqui a casa (já tenho por aqui caixotes e caixotes), são livros que estou a adorar abrir e descobrir de novo, aos poucos, e agora em português. Ao nível do Weinberger, em termos do orgulho em editar, estará o Walser, que já está em tradução mas só chega no próximo ano.
Bazarov é o nome do protagonista de “Pais e Filhos”, de Ivan Turguéniev.
Sim. Foi um livro muito importante na minha adolescência.
Esta questão de teres sido pai parece ter sido decisiva para a criação da editora. Porquê?
A relação com o meu filho começa na relação com o meu pai, que é a pessoa mais inteligente que conheço. Li muito na minha infância, e, em parte, isso passou por um esforço por acompanhá-lo, querendo estar à altura dele. Ainda hoje, se choro ao ver um filme normalmente é por estar em causa uma relação de conflito entre um pai e um filho.