Ler a vida de maneiras diferentes


Desta incompreensão e da recusa mútua de encontrar uma linguagem comum capaz de interpretar a vida, emana o interesse do último livro de Erri de Luca e a lição que ele encerra.


Esta semana pensei escrever sobre dois temas que me perturbaram, mas desisti.

Pensei, primeiro, escrever sobre a decisão política, para mim dificilmente compreensível, da realização, este ano, da Festa do Avante, mas desisti de o fazer face ao ódio feroz, irracional e alucinado que perpassa na maioria das tomadas de posição contra ela manifestadas.

No ambiente político atual, tais tomadas de posição eram, de facto, previsíveis e mais previsíveis são ainda, e talvez piores, todas as provocações que se lhe sucederão.

Só isso já teria, em minha opinião, aconselhado uma maior ponderação da parte de quem quis assumir tal risco: um risco político para a organização que a promoveu e um risco social para todos aqueles que dela, indubitavelmente, dependem para defender os direitos fundamentais que a Constituição consagra e que sempre lhes tentam ser negados ou reduzidos precisamente por muitos do que conduzem tal campanha demencial. 

Pensei escrever, depois, sobre o inimaginável abaixo assinado contra a obrigatoriedade da disciplina de educação cívica, mas renunciei face à minha incapacidade de, nos dias de hoje, compreender os anacrónicos e inconsequentes argumentos que o justificam.

O tempo, ouso dizê-lo, não volta para trás; pelo menos em matéria de costumes.

Atente-se na programação das televisões, mesmo nas de sinal aberto e nos muitos conteúdos difundidos livremente pela internet e tenha-se a noção da inutilidade, do absurdo e até da incoerência gritante desta tomada de posição.

Optei, por isso, por refletir sobre um dos melhores romances que li recentemente e que, também como magistrado, me tocou profundamente.

Chama-se ele, na versão francesa – a que li – Impossible e foi escrito por um dos mais notáveis e controversos escritores italianos da atualidade: Erri de Luca.

O romance consta de dois registos diferentes.

Um consiste nas atas das várias sessões de interrogatório como arguido, feitos por um jovem procurador italiano, a um velho revolucionário.

Aquele magistrado suspeita ter sido o outro o autor do homicídio de um antigo correligionário que, muitos anos antes, o havia denunciado – a ele e a outros camaradas – tendo-os conduzido à prisão.

O outro registo corresponde às cartas que o arguido vai escrevendo da prisão a um amor já antigo e que – deduzimos – vive longe, contando-lhe as peripécias e estratégias dos interrogatórios que vai sofrendo por parte do procurador e as reflexões que, como homem já velho e causticado, elas, tranquilamente, lhe suscitam.

A suspeição do procurador baseia-se, apenas, na coincidência estranha de os dois antigos correligionários, e também amigos inseparáveis de adolescência, se terem encontrado – casualmente, ou não – na escalada de uma mesma montanha, muitos anos depois da luta comum e da, posterior, traição de um deles.

Nessa ascensão coincidente da montanha, o que traiu teria sido reconhecido pelo outro, que – segundo o procurador – o terá, por vingança, atirado de uma ribanceira, provocando-lhe a morte.

A presença dos dois na mesma montanha e trilho não podia, por isso, ter ocorrido por acaso e, mesmo que isso tivesse acontecido, as circunstâncias teriam, por certo, propiciado o desforço, mesmo que inesperado, por parte do arguido.

O interrogatório desenrola-se, assim, a partir de uma plausível hipótese inicial, de que derivam especulações várias e que o procurador tenta configurar sucessiva e coerentemente de modo a levar o arguido – detido preventivamente e em regime de isolamento – a confessar, nem que seja a partir de uma suposta ação de legítima defesa, que o isentasse de pena.

Acrescente-se que não há testemunhas desse encontro na montanha e que foi o arguido quem chamou o 112 para socorrer o montanhista que se despenhou, sem que, na sua versão, ele soubesse de quem se tratava.

Não vou contar mais da estória, pois apesar de ser brilhante e permitir várias leituras, não é dela que quero falar.

O que interessa, verdadeiramente, no livro é a constatação das linguagens e culturas políticas abissalmente diferentes do velho revolucionário e do jovem procurador: a existência de duas maneiras incompatíveis de ver o mundo, o papel do Estado e o da própria magistratura.

De um lado, a inicial incompreensão – desconhecimento – do procurador de toda a realidade italiana que presidiu aos chamados «anos de chumbo» e que motivaram os atentados genocidas dos movimentos neofascistas, bem como o aparecimento dos movimentos radicais da extrema-esquerda.

Do outro, a recusa do revolucionário, já retirado, de falar e assentir na linguagem e conceitos jurídicos que o procurador insistia em usar e que ele considerava ainda contrários à verdadeira justiça e aspirações da sociedade.

Numa primeira fase dos interrogatórios, era como se duas pessoas de países e culturas diferentes se digladiassem sem encontrar uma regra de entendimento que tornasse os seus diálogos coerentes e, minimamente, produtivos.

Depois, vamos assistindo a um jogo lento e ambivalente de quase sedução, que o velho revolucionário – experimentado nos artifícios do processo penal e nas voltas da vida – vai conduzindo com habilidade, mas sem condescendência de qualquer tipo, facto que ainda mais impressiona e atrai o procurador, que, por sua vez, também não cede na sua convicção.

Este quase civilizado diálogo de surdos – que o não era, afinal – parece não ter fim: não tem de facto.

Desta incompreensão e da recusa mútua de encontrar uma linguagem comum capaz de interpretar a vida na sua complexidade, emana o interesse do livro e a lição que ele encerra.

A estória termina num jantar entre ambos – depois da libertação por falta de provas do arguido – em que o revolucionário disserta sobre as ideias de fraternidade humana que o moveram na juventude e em que ainda diz acreditar, mas que, dadas as circunstâncias da vida atual, não o obrigam mais a militar; o procurador, por sua vez, fala sobre a sua visão da justiça, a maneira procedimental de a prosseguir e sobre o papel que nela atribui ao Estado.

Dois modos irredutivelmente diferentes de ver e estar na vida por parte de duas personagens, cada uma das quais séria à sua maneira, mas que não chegam a encontrar pontes de entendimento entre ambas.


Ler a vida de maneiras diferentes


Desta incompreensão e da recusa mútua de encontrar uma linguagem comum capaz de interpretar a vida, emana o interesse do último livro de Erri de Luca e a lição que ele encerra.


Esta semana pensei escrever sobre dois temas que me perturbaram, mas desisti.

Pensei, primeiro, escrever sobre a decisão política, para mim dificilmente compreensível, da realização, este ano, da Festa do Avante, mas desisti de o fazer face ao ódio feroz, irracional e alucinado que perpassa na maioria das tomadas de posição contra ela manifestadas.

No ambiente político atual, tais tomadas de posição eram, de facto, previsíveis e mais previsíveis são ainda, e talvez piores, todas as provocações que se lhe sucederão.

Só isso já teria, em minha opinião, aconselhado uma maior ponderação da parte de quem quis assumir tal risco: um risco político para a organização que a promoveu e um risco social para todos aqueles que dela, indubitavelmente, dependem para defender os direitos fundamentais que a Constituição consagra e que sempre lhes tentam ser negados ou reduzidos precisamente por muitos do que conduzem tal campanha demencial. 

Pensei escrever, depois, sobre o inimaginável abaixo assinado contra a obrigatoriedade da disciplina de educação cívica, mas renunciei face à minha incapacidade de, nos dias de hoje, compreender os anacrónicos e inconsequentes argumentos que o justificam.

O tempo, ouso dizê-lo, não volta para trás; pelo menos em matéria de costumes.

Atente-se na programação das televisões, mesmo nas de sinal aberto e nos muitos conteúdos difundidos livremente pela internet e tenha-se a noção da inutilidade, do absurdo e até da incoerência gritante desta tomada de posição.

Optei, por isso, por refletir sobre um dos melhores romances que li recentemente e que, também como magistrado, me tocou profundamente.

Chama-se ele, na versão francesa – a que li – Impossible e foi escrito por um dos mais notáveis e controversos escritores italianos da atualidade: Erri de Luca.

O romance consta de dois registos diferentes.

Um consiste nas atas das várias sessões de interrogatório como arguido, feitos por um jovem procurador italiano, a um velho revolucionário.

Aquele magistrado suspeita ter sido o outro o autor do homicídio de um antigo correligionário que, muitos anos antes, o havia denunciado – a ele e a outros camaradas – tendo-os conduzido à prisão.

O outro registo corresponde às cartas que o arguido vai escrevendo da prisão a um amor já antigo e que – deduzimos – vive longe, contando-lhe as peripécias e estratégias dos interrogatórios que vai sofrendo por parte do procurador e as reflexões que, como homem já velho e causticado, elas, tranquilamente, lhe suscitam.

A suspeição do procurador baseia-se, apenas, na coincidência estranha de os dois antigos correligionários, e também amigos inseparáveis de adolescência, se terem encontrado – casualmente, ou não – na escalada de uma mesma montanha, muitos anos depois da luta comum e da, posterior, traição de um deles.

Nessa ascensão coincidente da montanha, o que traiu teria sido reconhecido pelo outro, que – segundo o procurador – o terá, por vingança, atirado de uma ribanceira, provocando-lhe a morte.

A presença dos dois na mesma montanha e trilho não podia, por isso, ter ocorrido por acaso e, mesmo que isso tivesse acontecido, as circunstâncias teriam, por certo, propiciado o desforço, mesmo que inesperado, por parte do arguido.

O interrogatório desenrola-se, assim, a partir de uma plausível hipótese inicial, de que derivam especulações várias e que o procurador tenta configurar sucessiva e coerentemente de modo a levar o arguido – detido preventivamente e em regime de isolamento – a confessar, nem que seja a partir de uma suposta ação de legítima defesa, que o isentasse de pena.

Acrescente-se que não há testemunhas desse encontro na montanha e que foi o arguido quem chamou o 112 para socorrer o montanhista que se despenhou, sem que, na sua versão, ele soubesse de quem se tratava.

Não vou contar mais da estória, pois apesar de ser brilhante e permitir várias leituras, não é dela que quero falar.

O que interessa, verdadeiramente, no livro é a constatação das linguagens e culturas políticas abissalmente diferentes do velho revolucionário e do jovem procurador: a existência de duas maneiras incompatíveis de ver o mundo, o papel do Estado e o da própria magistratura.

De um lado, a inicial incompreensão – desconhecimento – do procurador de toda a realidade italiana que presidiu aos chamados «anos de chumbo» e que motivaram os atentados genocidas dos movimentos neofascistas, bem como o aparecimento dos movimentos radicais da extrema-esquerda.

Do outro, a recusa do revolucionário, já retirado, de falar e assentir na linguagem e conceitos jurídicos que o procurador insistia em usar e que ele considerava ainda contrários à verdadeira justiça e aspirações da sociedade.

Numa primeira fase dos interrogatórios, era como se duas pessoas de países e culturas diferentes se digladiassem sem encontrar uma regra de entendimento que tornasse os seus diálogos coerentes e, minimamente, produtivos.

Depois, vamos assistindo a um jogo lento e ambivalente de quase sedução, que o velho revolucionário – experimentado nos artifícios do processo penal e nas voltas da vida – vai conduzindo com habilidade, mas sem condescendência de qualquer tipo, facto que ainda mais impressiona e atrai o procurador, que, por sua vez, também não cede na sua convicção.

Este quase civilizado diálogo de surdos – que o não era, afinal – parece não ter fim: não tem de facto.

Desta incompreensão e da recusa mútua de encontrar uma linguagem comum capaz de interpretar a vida na sua complexidade, emana o interesse do livro e a lição que ele encerra.

A estória termina num jantar entre ambos – depois da libertação por falta de provas do arguido – em que o revolucionário disserta sobre as ideias de fraternidade humana que o moveram na juventude e em que ainda diz acreditar, mas que, dadas as circunstâncias da vida atual, não o obrigam mais a militar; o procurador, por sua vez, fala sobre a sua visão da justiça, a maneira procedimental de a prosseguir e sobre o papel que nela atribui ao Estado.

Dois modos irredutivelmente diferentes de ver e estar na vida por parte de duas personagens, cada uma das quais séria à sua maneira, mas que não chegam a encontrar pontes de entendimento entre ambas.