Uma das razões pela qual a corrupção é hoje tão glosada no comentário público é a do largo espectro que tal conceito – em princípio jurídico e rigoroso – alcançou na linguagem política e jornalística mais popular.
Falar publicamente de corrupção significa, assim, falar de todo o tipo esquemas, de algumas negociatas, de muitas influências e de não poucas vantagens, que se geram nos negócios público-privados e mesmo nos negócios puramente privados: significa, queiramos ou não, falar da vida económica e social como ela existe e sem disfarces.
É isso que torna fácil a todo o tipo de demagogos imputar aos outros a prática de corrupção, sem, em rigor – mesmo que se nada prove –, andar muito longe da verdade.
É isso que lhes torna fácil, também, lançar suspeitas sobre os adversários políticos e deixar correr a estória até que a Justiça pegue nela e lhe dê, pelo simples facto de iniciar uma investigação, uma réstia de credibilidade.
Tais demagogos podem, assim, sem questionar sequer quais as mais leves razões do que chamam corrupção, fazê-lo com sucesso popular.
Basta-lhes o escândalo ou a aparência dele.
Dada a intrincada organização dos laços que ligam o sistema público ao sector privado e a lógica de dependência executora que aquele sofre em relação a este último e, em sentido contrário, a necessidade que o sector privado tem – pelo menos no nosso país – das iniciativas do sector público para sobreviver, difícil é, de facto, não encontrar, num ou noutro momento do processo negocial entre ambos, aspetos menos claros e, logo, suspeitosos.
A nossa intrincada – mas sempre pouco precisa – legislação, a linguagem quase esotérica de alguns contratos, especialmente desenhados para serem obscuros – vi um em que eram necessários três documentos, quais chaves de um enigma, para se poder entender o sentido aproximado das cláusulas -, o programado desarmamento científico e técnico da administração pública e a sua desertificação de quadros qualificados, estáveis e capazes de aconselhar com autonomia, autoridade e responsabilidade pessoal os decisores políticos propiciam o resto do clima nubloso em que se desenvolve o que se chama vulgarmente corrupção.
Quem ler, por exemplo, a paradigmática norma sobre responsabilidade financeira dos decisores políticos vertida, ainda agora, na versão de 2020 da Lei Orgânica e de Processo do Tribunal de Contas, ficará esclarecido.
Diz tal norma: «A responsabilidade (financeira) prevista no número anterior recai sobre os membros do Governo e os titulares dos órgãos executivos das autarquias locais, nos termos e condições fixadas para a responsabilidade civil e criminal nos n.ºs 1 e 3 do artigo 36.º do Decreto n.º 22 257, de 25 de fevereiro de 1933.»
E a quem se refere a tão acarinhada e sempre invocada norma da legislação salazarista?
Dirige-se ela aos:
«1.º (Os) Ministros quando não tenham ouvido as estações competentes ou quando esclarecidos por estas em conformidade com as leis, hajam adotado resolução diferente»;
2.º (Os) funcionários que nas suas informações para os Ministros não esclarecerem os assuntos da sua competência em harmonia com a lei.»
O recurso a tal linguagem e conceitos do antigamente dá, desde logo, lugar a todo o tipo de dúvidas e interpretações.
O que são, por exemplo, nos dias de hoje, as estações competentes: qual o significado jurídico administrativo atual deste conceito?
Quando os ministros e os autarcas não tenham ouvido tão enigmáticas estações – por, no caso, a isso não serem obrigados por lei e, porventura, por não saberem o que sejam – e decidirem como lhes aprouver, estarão incursos em responsabilidade financeira?
Podem estes decisores, na falta das invocadas estações competentes – por exemplo em certas autarquias menos apetrechadas de quadros habilitados – socorrer-se de opiniões e perícias contratadas ao sector privado para justificarem as suas decisões e eximir-se de responsabilidades?
Podem tais entidades, para o efeito, ser consideradas estações competentes?
Qual a natureza de tais pareceres?
E qual a responsabilidade destes peritos contratados pelas opiniões que emitem?
E qual, por tanto, o sentido a dar, neste contexto, ao conceito de «funcionário»: o do artigo 386.º do Código Penal?
Tendo ainda em atenção a empresarialização da administração publica, o que resta das suas tradicionais carreiras e os métodos atuais de seleção dos seus médios e altos responsáveis, os dos Institutos e os das EPs, como garantir a tais dirigentes a necessária autonomia, autoridade e segurança para informarem – de harmonia com a lei – um responsável político ou autárquico que os tutela e, porventura dizerem-lhe não?
Mesmo sem questionar de forma radical o sistema económico, político e jurídico em que nos movemos – e há de facto razões para tanto, como demonstraram as recentes crises – poderíamos, pelo menos, procurar, desde já, clarificar as leis e qualificar e estruturar melhor os instrumentos da administração pública que permitem lidar, em primeira linha, com os negócios mais duvidosos.
Disso, claro, não falam os populistas e nem os seus promotores mais ou menos óbvios na imprensa séria.
Para que a corrução não se transforme numa arma contra a democracia e o estado de direito, compete, pois, aos democratas impedir que ela seja explorada apenas na perspetiva escandalosa.
Mais importante do que incrementar sempre mais e mais os métodos autoritários e capciosos de gestão processual penal, é, pois, a tomada de medidas que tornem o processo de decisão político-administrativa dos negócios públicos mais rigoroso tecnicamente e mais evidente nos seus pressupostos e fundamentos económicos e jurídicos.
Só isso tornará tais decisões mais fáceis de concretizar, de analisar e escrutinar.
Só assim é possível também, com justiça indiscutível, punir e responsabilizar financeiramente quem, de facto, abusou ou aproveitou dos poderes e dinheiros públicos.