Para os milhões de norte-americanos ansiosos por assistir aos playoffs da NBA, esta quarta-feira, confortavelmente sentados no sofá, a decisão dos jogadores dos Milwaukee Bucks de não sair do balneário – bem como a maré de solidariedade que obrigou a adiamentos de outros três jogos da NBA, mais três jogos da liga de basebol, cinco da liga de futebol e um jogo da tenista Naomi Osaka –, foi um dia de lembrança de que algo estranho se passa nos Estados Unidos. Os jogos desta quinta-feira também acabaram por ser adiados, mas os jogadores acabaram por aceitar voltar ao campo, segundo a ESPN.
É que, a menos de 50 km de Milwaukee, em Kenosha, este domingo, Jacob Blake foi baleado sete vezes nas costas pela polícia, à frente dos filhos, somando-se ao crescente rol de vítimas de brutalidade entoados por milhões de manifestantes. Dias depois, entre o caos e da fúria, duas pessoas foram abatidas a tiro de AR-15 por um rapaz de 17 anos, obcecado admirador da Polícia. Tinha-se juntado às milícias fortemente armadas que invadiram as ruas, com a bênção de alguns agentes de segurança, filmados a atirar-lhes incentivos e garrafas de água do topo de um veículo blindado.
Em vez de ver o MVP deste ano, Giannis Antetokounmpo, dançar à volta da defesa dos Orlando Magic, ou vibrar com os afundanços de Aaron Gordon no cesto dos Bucks, os norte-americanos receberam a mensagem de que algo tem de mudar.
“Os últimos quatro meses lançaram luz sobre as injustiças raciais em curso que enfrentam as nossas comunidades afro-americanas”, declaram em comunicado os Bucks. “Apesar dos avassaladores apelos por mudança não houve nenhuma ação, por isso o nosso foco hoje não pode ser o basquetebol”.
Face ao boicote da equipa de Milwaukee, os Orlando poderiam muito bem ter reclamado a vitória, de que bem precisavam: estão a ter uma época particularmente má, sem grande esperança de chegar mais longe na competição. Contudo, optaram por não o fazer.”Estamos unidos”, declararam os Orlando Magic. “A condenar o preconceito, a injustiça racial e o uso indevido de força pela polícia contra pessoas de cor”.
O protesto, ecoado por todas as equipas que jogavam na quarta-feira, apesar de histórico, não é surpreendente. Numa liga em que quase dois terços dos jogadores são negros, muitos experienciaram na pele o racismo e a violência policial de que fala o movimento Black Lives Matter.
Aliás, uma das estrelas dos Bucks, Sterling Brown, foi atingido por um taser da Polícia e imobilizado com um joelho no pescoço, em 2018, quando estava cercado por oito agentes devido a uma multa de estacionamento. O polícia responsável, Erik Andrade, acabou por ser despedido, não pelo incidente em si, mas devido a vários posts racistas que fez nas redes sociais após o sucedido.
“Eu sei que as pessoas estão fartas de me ouvir dizê-lo, mas nós estamos assustados, enquanto pessoas negras na América”, disse Lebron “o rei” James, assombrado pelo vídeo dos disparos sobre Blake. A sua equipa, os Los Angeles Lakers, foi uma das que boicotaram os jogos de quarta-feira. “Se me dizes que não havia maneira de dominar aquela pessoa ou detê-la antes de disparar armas, estás a mentir não apenas a mim, mas a cada afro-americano”, salientou, citado pela ESPN. ”Porque vimos isso uma e outra vez”.
Longa luta Olhando para a história da NBA, uma indústria bilionária em que cada equipa vale em média 1,7 mil milhões de euros, segundo a Forbes, para a encontrar a última vez que foi adiado um jogo em protesto temos de ir até 1992. Nesse ano, Los Angeles irrompia em motins, raiva e saques, após a Justiça ilibar os polícias responsáveis pelo brutal espancamento de Rodney King, perante as câmaras. O caso foi das primeiras vezes que os EUA, como um todo, viram o que muitos afrodescendentes temiam todos os dias.
Contudo, muito antes disso, a NBA já tinha uma longa história de luta pela emancipação dos negros. Antes de 1992, o último boicote a um jogo da liga fora em 1962, pelos Boston Celtics, após um restaurante recusar servir vários membros negros da equipa, no Kentucky.
Hoje pode ser difícil de acreditar, mas nos primeiros anos da NBA, que surgiu em 1946, não havia jogadores negros. Dizia-se que não tinham o intelecto necessário para um desporto tão rápido, que tinham pulmões pequenos e ossos pesados que os impediam de saltar, escreveu John Christgau, autor de Tricksters in the Madhouse, de 2007, um dos principais livros sobre a história do desporto. A história relegaria esses argumentos ao caixote do lixo.