Herbert George Wells (1866-1946) é mais conhecido pelas suas obras de ficção científica (Brian Aldiss chamou-lhe “o Shakespeare da ficção científica”), mas é, acima de tudo, um grande escritor. Para George Bernard Shaw, Nobel da Literatura em 1925, Wells era “o mais original dos escritores de língua inglesa e das outras”. Que Wells nunca tenha ganho o Nobel é uma vergonha para o Nobel (Winston Churchill ganhou-o, vá-se lá saber porquê). Os seus livros de ficção científica são muito conhecidos pelas suas premonições: por exemplo, em A Ilha do Doutor Moreau (1896) previu a engenharia genética e em The World Set Free (1914) previu a bomba atómica. Mas Wells é também autor de romances fora da esfera da ficção científica (a Antígona publicou há muito pouco tempo Tono-Bungay, uma sátira social que quebra as barreiras do tempo) e de uma obra ensaística que alcançou enorme êxito em todo o mundo: a sua História Universal (3 vols., Livros do Brasil, 1956, reeditada em 1974 e 1976), que se arranja nos alfarrabistas, foi um long-seller.
A obra de Wells é enorme, abarcando romances, contos e não ficção (biografias, história, política, sociologia e ciência). Licenciado em Biologia, o seu primeiro livro foi um manual dessa área. Em Portugal há várias traduções de uma pequena parte da sua obra. A E-Primatur publicou, em dois volumes, a sua Ficção Curta Completa em 2017 e 2019, traduzida por Sofia Castro Rodrigues (o primeiro volume inclui A Máquina do Tempo, o seu primeiro romance, de 1895). E a mesma editora publicou, em março passado, um pequeno livro de Wells intitulado Os Direitos do Homem (original: Penguin, 1940), que contém em esboço a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que haveria de ser aprovada em 1948 pelas Nações Unidas (ONU), a organização nascida há 75 anos das ruínas da ii Guerra Mundial. Em questão de direitos humanos, Wells foi não só um visionário, mas também um ativista.
É com gosto que deixo uma palavra de apreço pelo original trabalho da E-Primatur. Ela recebe propostas de livros que, por uma razão ou outra, merecem edição entre nós, e os interessados votam pela internet, contribuindo por crowdfunding para a publicação. Havendo suficiente interesse, o livro sai. Saíram As Mil e Uma Noites e as Obras Completas de Camões, só para falar dos mais recentes.
Os Direitos do Homem é pequeno (152 pp.) e lê-se muito bem, ou não tivesse sido escrito por Wells e traduzido por Pedro Elói Duarte, um profissional competente. O livro resultou de duas cartas ao Times em que Wells afirma que faltava um objetivo para a guerra e que este só poderia ser uma carta de direitos humanos que unisse as nações do globo. Nos direitos, sobressai o n.o 1: “Qualquer homem, sem distinção de raça ou cor, tem direito a alimentação, habitação, roupa para vestir, cuidados médicos e atenção suficientes para realizar todas as atividades de desenvolvimento físico e mental”. Impressionou-me em particular o n.o 4: “[O homem], ainda que esteja sujeito às críticas dos seus concidadãos, deve ter proteção adequada contra qualquer mentira ou calúnia que o possam ofender ou lesar. Todos os registos sobre os cidadãos devem estar abertos à sua inspeção pessoal e privada. Não deve haver dossiês secretos em nenhum departamento administrativo. Todos os dossiês devem estar acessíveis à pessoa em questão e sujeitos a verificação e correção a seu pedido. Um dossiê é apenas um memorando; não pode ser usado como prova sem a confirmação devida” (p. 18). Num tempo muito antes da internet, Wells escreveu: “Qualquer tolo pode dizer uma mentira e há demasiados tolos que gostam de fazê-lo” (p. 59). Mais adiante, diz: “O objetivo principal de qualquer ordem social sadia é banir o medo (…) da vida humana. A confiança e a segurança são a essência da fraternidade; sem estas, não há facilidade nas relações, não há civilização” (p. 63).
Wells é considerado pacifista, mas isso não quer dizer que não tenha defendido o confronto armado, quer na i quer na ii guerras mundiais. Na ii, achava que os nazis mereciam uma boa sova, distinguindo-os dos alemães. Diz o pior do primeiro-ministro inglês na altura, Arthur Chamberlain, que fez um acordo com Hitler antes da guerra. Foi Churchill, um amigo de Wells, que sucedeu a Chamberlain em 1940, quando este morreu.
Oriundo da classe operária, Wells era um socialista utópico. Desiludido com o socialismo real da Rússia (país que ele visitou três vezes), nunca desistiu da ideia de progresso humano. Em A Máquina do Tempo (há uma edição da Antígona, de 2016, com introdução de Manuel Portela) perpassa a ideia de luta de classes mesclada com a doutrina darwinista, que ele projeta para o ano de 802 701. Wells, perto do fim de Os Direitos do Homem, posiciona-se politicamente: “De forma simples, sou um revolucionário extremo. Embora a retórica e a emoção me desagradem bastante, a minha razão obriga-me a ser extremo. Não penso que seja possível continuar com o modo de vida que prevalece hoje em todo o mundo, com os governos soberanos que temos e com as práticas económicas que prevalecem. Estes governos soberanos não nos deram mais do que guerras inconclusivas numa escala cada vez maior, e temos de nos livrar deles todos. De todos. Não é do atual governo alemão que tentamos livrar-nos; é de todos os governos deste tipo, incluindo, muito explicitamente, do nosso. Temos de nos livrar destes governos e substituí-los por um sistema mundial, e só isso é a revolução mundial. Além disso, temos de nos livrar dos métodos de exploração das vantagens naturais, do controlo das empresas e da finança, que, no meio de uma possível abundança, nos deixam quase todos pobres e necessitados, suados e aborrecidos” (p. 122). Nesse escrito está já o embrião da ONU.
Há um interessante artigo de José Manuel Mota sobre a receção de Wells em Portugal (Biblos XI (2913) 251). António Sérgio e Óscar Lopes comentaram Wells, sobressaindo da apatia geral. Mas há uma curiosa ligação do autor inglês ao nosso país. Wells passou uma temporada entre nós para se restabelecer de uma doença. No seu livro A Year of Prophesying (Fisher Unwin, 1924), o cap. 25 (“Portugal and prosperity: the blessedness of being a little nation”) é devotado a Portugal. Depois de descrever as nossas belezas naturais, pinta de cores negras a nossa situação social e política. Neste canto da Europa não se asseguravam os direitos mínimos a todos. Transcrevo, em tradução minha, um texto um pouco longo, mas que vale a pena ler:
“Quer esteja a chover ou não, o ar em Portugal tem uma felicidade particular e as pessoas desse país deviam ser tão felizes e prósperas como qualquer povo do mundo. O país tem uma situação magnífica e grandes territórios ultramarinos. Lisboa é o porto natural da Europa para a América do Sul e para a África ocidental. As oliveiras, as laranjeiras e espécies semelhantes podem ser aqui cultivadas nas melhores condições possíveis. A riqueza mineral é muito diversa e extensa, embora em larga medida inexplorada, e inclui filões radioativos de importância mundial. E por aí fora. Existem todas as condições para haver uma grande prosperidade. Mas, de facto, nunca vi uma nação com um aspeto tão pouco próspero. Uma enorme pobreza prevalece em toda esta terra. Nunca vi em lado nenhum do mundo, nem sequer na Rússia, trabalhadores tão andrajosos, tão remendados e esfarrapados, tão manifestamente malcuidados e subnutridos. E há também numerosas doenças que podiam ser prevenidas. As mulheres estão velhas aos 30 anos, dando à luz filhos que vão morrer; os homens estão corcundas aos 50. As casas mais pobres são casebres, e metade da população é analfabeta. E, no entanto, não se trata de uma população inferior. (…)
Porque é este povo tão conspicuamente pobre? Porque é que as estradas são tão abomináveis que mesmo entre este meu próspero e agradável idílio do Estoril e a cidade de Lisboa, a 12 milhas de distância, uma viagem de automóvel é uma aventura perigosa? Porque ficam as minhas cartas e telegramas a apodrecer nos correios de Lisboa e porque é que toda a gente diz que as coisas vão de mal a pior e espera remédios tão violentos como uma ditadura? Em nenhuma outra parte da Europa o enigma do declínio europeu se coloca de uma maneira tão crua como aqui neste lugar de sol ventoso, cores alegres e belezas naturais.
(…) Os comboios em Portugal estão num estado miserável e as estradas metem medo. Por todo o lado se veem sinais evidentes de uma administração incompetente ou corrupta. Um pequeno país como este, com uma moeda instável, não consegue assegurar uma educação moderna para o seu povo. Não existe um público que leia o suficiente para manter uma imprensa com poder e uma literatura de crítica política. Os ministros não são suficientemente vigiados. E, sobre as coisas que se passam nas colónias portuguesas, dificilmente podemos saber alguma coisa lendo a imprensa portuguesa. Parece que não existe opinião pública que olhe para lá. Os portugueses que enriquecem nas colónias depositam e investem o seu dinheiro no estrangeiro, em geral, em Londres; há uma saída permanente destes tributos do Império Português para os estados maiores e mais estáveis. Em nenhum lado da Europa se tem um sentimento tão intenso de um país penhorado ao capital guardado lá fora”.
Wells apresenta uma proposta de remédio dos nossos males: a federação com Espanha e países da América Latina pois, segundo ele, Portugal não teria suficiente dimensão para ser um país próspero. Acertou quanto à necessidade de associação, mas enganou-se nos parceiros, pois a nossa união é europeia. Um grande visionário acertou na muche em muita coisa, mas não podia acertar em tudo…