Com licença da peste, pelo menos até ver, Lisboa e Porto desdobram hoje e amanhã as suas montras arqueológicas, com os despojos que os livros são, labirintos interiores a aguardar essa mágica que, de umas linhas frias, levanta as “ruínas da textura do passado”, e volta a pôr em ordem as ideias que lhe sobreviveram. Aí está, lá em cima, nos Jardins do Palácio de Cristal, e por cá, de volta ao Parque Eduardo VII, essa ocupação expressiva da cidade por artefactos cujo encanto fica a dever-se a subterfúgios contraespaciais. E neste ano, de tal modo marcado por contrariedades, na capital até se esqueceram das efusivas comemorações pelos 90 anos da Feira do Livro, porque, por uma vez, o estardalhaço não é o mais aconselhável, desde logo porque ninguém pode prever se o evento será bem sucedido, ainda que a APEL, que com a câmara municipal de Lisboa organiza a feira, não tenha prescindido das previsões optimistas, e manifestamente descabidas, ao estimar que o número de visitantes este ano será muito semelhante ao dos anos anteriores, que não andou longe do meio milhão de visitantes. Outro motivo para que o ambiente de fanfarra tenha dado lugar a algo mais sóbrio é o facto de o sector livreiro ter sido dos mais atingidos pela crise pandémica, de tal modo que muitos contam que a feira este ano seja uma oportunidade para recuperar das perdas sofridas nos últimos meses. Segundo estimativas bastante conservadoras da APEL, o sector deverá perder entre 30 a 35 milhões de euros até ao final do ano. A associação que representa editores e livreiros perdeu, há alguns anos, a organização deste evento no Porto, e não faltam testemunhos de livreiros e editores que garantem que a feira da Invicta, a partir do momento em que passou a ser organizada pela autarquia liderada por Rui Moreira ganhou com isso, tornando-se mais aberta, com preços mais acessíveis no que toca ao aluguer dos stands e onde os participantes não se vêem hierarquizados, ficando todos no mesmo plano do ponto de vista da visibilidade. Isso mesmo é apontado pela direcção da Rede de Livrarias Independentes (RELI), que denuncia a organização levada a cabo pela APEL na feira de Lisboa, afirmando que esta “serve interesses, regras que beneficiam apenas uma parte dos associados”.
A APEL anunciou que a feira deste ano será a segunda maior de sempre, contando com 117 participantes em 310 pavilhões, representando 638 editoras, livrarias e chancelas. Mas um facto decisivo foi a decisão de cortar em um terço o preço do aluguer dos pavilhões, um custo que é incomportável para muitos livreiros e editores, rondando os 2 mil euros. No Porto, o custo de um pavilhão desce para um quarto desse valor, e, este ano, a autarquia só exigiu aos participantes que pagassem à cabeça 20% desses pouco mais de 500 euros, sendo o remanescente pago no fim da feira. O certo é que a feira de Lisboa, mesmo no que toca ao aspecto foi sendo descaracterizada, e hoje é difícil reconhecer os relatos que nos ficaram de outras décadas, como quando Baptista-Bastos, numa reportagem recolhida no livro “As Palavras dos Outros”, descrevia como a encenação de um largo antigo, aquele que era o centro do mundo, referindo-se a essa espécie de teatro de rua que, por algumas semanas, nos lembra o que foi a amizade de bairro. “Ao estabelecer o encontro com o homem, na rua onde o homem e o livro se completam e entendem, a Feira não presta serviço aos grémios, não bajula os interesses dos editores, não namorica os livreiros: faz-nos ler, aconselha-nos a existir mais, pulveriza o tabu segundo o qual o livro é a uma torre e a palavra escrita uma palavra apenas perceptível por senhores circunspectos.” O jornalista e escritor desaparecido em 2017, ia ao encontro do que disse Elias Canetti, de que a leitura é esse vínculo essencial da nossa existência, pois se cada época perdesse o contacto com as anteriores, se cada século cortasse o cordão umbilical, estaríamos condenados a construir uma fábula sem porvir, e isso significaria que asfixiaríamos no nosso tempo, sem possibilidade de visitar ou possuir outros mundos. Nisto, Baptista-Bastos cunhou uma das expressões mais belas sobre o acto da leitura, afirmando que “o homem que lê é o devorador quotidiano das civilizações”.
Nos seus 90 anos, a Feira do Livro deixou já muitos homens, alguns vivos, tantos já mortos, a puxar pela memória, tentando discar os números nesse telefonema para a infância de que falava aquele jornalista. Nessa rua que a todos pertenceu, e que levou gerações a cultivarem os seus itinerários, por estes dias haverá uma sensação de estranheza, não só pela obrigação de usar máscaras dentro do recinto, como pelo facto de este estar vedado por baias de modo que se possa controlar o fluxo dos visitantes. E isto porque este ano será imposta uma lotação máxima de 3300 pessoas. Mas, na verdade, o que preocupa aqueles que gostam de descer o parque nos passos perros de quem vai estudando as sugestões dos livros expostos, o pior é a obrigação de desinfetar as mãos de cada vez que se pretenda manusear os livros. Porque esse é, afinal, o grande atractivo desta feira, o ir com as mãos sentir as partes vulneráveis, cheirar intimidades nesse território sujeito a uma trégua, já que, ali, oferece-se hospitalidade a bandos adversários, e, no espaço entre os pavilhões, aquelas barracas, vigora um insólito armistício onde as hostilidades cessam, os inimigos se roçam na promiscuidade dos expositores e bancas ou estantes, as fronteiras vão-se apagando e a leitura converte-se numa forma de reconciliação. Mas este ano, os visitantes são encorajados a vigiar-se, a vir respirar à tona das suas vidas de imaginação, para controlar os movimentos uns dos outros, cumprindo as regras de distanciamento impostas pela Direcção-Geral da Saúde, e receberão inclusivamente um manual de boas práticas distribuído pela APEL. Assim, tudo propiciará a dissolução dos últimos focos das antigas colónias de ratos cerebrais que Fialho de Almeida se lembra de ter descoberto em Lisboa nos seus vagabundos tempos de rapaz.
Se atrás falámos de um armistício, é chegada a altura de falar das tensões e dos desequilíbrios que persistem há muito no sector livreiro, e que em grande medida estão espelhadas na diferença entre a Feira do Livro do Porto e a de Lisboa, uma vez que naquela estarão representados num número bastante superior as livrarias independentes (15 ao todo, ao passo que em Lisboa estarão apenas três) que este ano, na sequência da imposição do confinamento, decidiram unir-se para montar uma defesa face a um ambiente que lhes era cada vez mais adverso, muitas vezes devido a manigâncias resultantes de práticas de concorrência desleal por parte dos grandes grupos que tomaram conta do sector. Em declaração ao i, a direcção da RELI garante que não é uma facção dissidente da APEL, mas uma associação que vem impor uma estratégia comum no combate a uma série de práticas que estão a promover a extinção das livrarias de bairro ou de proximidade, dessas históricas e tantas vezes modestíssimas lojas que vendem livros, e que criam esse entramado de relações que garantem que o futuro não se condena à ignorância, deixando de ter sempre o passado aberto nalgum dos seus inúmeros capítulos, com sublinhados e anotações à margem, com conselhos e algumas orientações para o caminho.
Assim, a direcção da RELI propõe-se contrariar o ritmo desenfreado com que o e-commerce tem vindo a impor-se, numa lógica canibalista, valendo-se da deficiente fiscalização por parte das autoridades competentes (ASAE) do respeito pela lei do preço fixo, com campanhas de descontos constantes e “violentíssimas” por parte dos grandes grupos económicos. Miguel de Carvalho, livreiro alfarrabista e tesoureiro da RELI, revela até que “já aconteceu, por várias vezes, uma livraria independente denunciar na ASAE os descontos ilícitos praticados numa Feira do Livro (organizada pelos grandes grupos) para, no dia seguinte, ser esta livraria a sofrer uma fiscalização da ASAE e do IGAC, ao passo que o denunciado persiste na ilicitude”. O livreiro que tem hoje um espaço na Figueira da Foz, adianta que há já 3 testemunhos de ocorrências destas no último ano. Por sua vez, José Pinho, que à frente das livrarias Ler Devagar, preside à RELI, deixa claro que, se esta associação não pretende rivalizar com a APEL, surge da urgência sentida pelos livreiros independentes de se unirem para “alterarem as modernas condições de comercialização dos livros, em que uma grande parte das editoras e o conjunto das redes livreiras distorcem sistematicamente as regras da concorrência ao promoverem campanhas ao cliente final com descontos superiores aos permitidos pela lei do preço fixo e bem superiores aos descontos que as editoras praticam em relação às livrarias independentes”.
A direcção da RELI, que congrega 76 livrarias espalhados por todo o território, e que tem, hoje, ao seu dispor a maior oferta livreira do país, adiantou ao i que tem em construção uma plataforma de vendas online que irá integrar o fundo de todas as livrarias interessadas, disponibilizando os seus catálogos. A RELI acrescenta que esta oferta é transversal, ou seja, constitui-se de livros novos, usados, esgotados, raros, ao passo que as plataformas da Porto Editora (Wook), da Fnac ou do grupo Leya estão limitadas aos livros novos.