A Confissão de Tolstoi

A Confissão de Tolstoi


Por volta dos cinquenta anos, o grande escritor russo enfrentou uma profunda crise interior que o levou a questionar o sentido da vida. Concluindo que só a fé pode ligar o finito ao infinito, despojou-se de todos os bens e sentiu a força da vida regressar a si.


1. Há momentos dilacerantes da Confissão (Alêtheia, 2014), de Lev Tolstoi (1828-1910) que evocam, imediatamente, As Confissões, de Agostinho: “Não consigo recordar estes anos sem horror, repugnância e dor no coração. Matei pessoas na guerra, convoquei outras para duelos a fim de as matar, joguei a dinheiro; devorei os frutos do trabalho dos camponeses e puni-os; forniquei e pratiquei engano. Mentiras, roubos, promiscuidade de todos os tipos, bebedeiras, violência, assassinato…Não havia crime que não cometesse, e ainda assim era louvado por tudo aquilo e os meus contemporâneos consideravam-me, e ainda consideram, um homem relativamente moral”.

2. Tolstoi, à semelhança de Agostinho, segue várias escolas, peregrina entre escritores – que se julgam os educadores do mundo, donos de uma vaidade incomensurável, que se elogiam mutuamente ao mesmo tempo que se invejam, frivolidade entre fama e dinheiro como comuns motivações de escrita –, jornalistas, professores; salta da oferta do aperfeiçoamento pessoal (tudo devorar para ser, ele próprio, melhor, acompanhando a evolução das coisas – primeira escola), para o aperfeiçoamento coletivo (contribuição para o progresso, a educação do povo através de jornais, livros, e aulas – mesmo que nada se tivesse para ensinar; segunda escola) até chegar à vida familiar (terceira escola) – “as novas circunstâncias da vida familiar feliz distraíram-me completamente de qualquer busca do significado da vida”. Mas eis que o aturdimento lhe chega: para quê a educação do filho? Para quê ajudar as crianças camponesas? Para quê ser um escritor mais famoso do que Shakespeare? Para quê tudo isso, afinal? Infantis, as perguntas? Nada. Inevitáveis, incómodas, militantes. Fugir-lhes? “Nem sequer queria saber a verdade porque adivinharia o que era. A verdade era que a vida era sem significado”. O cordão sai do quarto, a espingarda de caça abandona o seu carro: “lutei o quanto pude contra a vida. Os pensamentos de suicídio chegavam-me com a mesma naturalidade com que chegaram os anteriores de melhorar a vida”. E isto em alguém que, segreda na aurora do texto (confessional), nunca abandonou a crença em Deus, a crença em Cristo.

3.Família magnífica, amigos muitos, propriedades a rodos (nasceu aristocrata), elogios do mundo e, ainda assim, a crise existencial: “é só possível continuar a viver enquanto estamos intoxicados pela vida; uma vez sóbrio é impossível não ver que é todo um mero engano, e um engano estúpido (…). Não importa quantas vezes me afirmam: não consegues entender o significado da vida, não penses nele, vive, não consigo porque o fiz por tanto tempo”(pp. 35 e 37). Arte, poesia, família… que fenómenos são, se a vida é nua? “«A família…», disse a mim mesmo. Mas a minha família, a minha mulher e os meus filhos, são também seres humanos. Estão na mesma posição que eu: terão também de viver uma mentira, ou encarar a realidade terrível. Para o que vivem? Porque os amo e guardo, crio e olho por eles? Para que atinjam o mesmo estado de desespero que me preenche, ou para ser obtuso!. Se os amo não posso esconder deles a verdade. Cada passo no conhecimento leva-os à verdade. E a verdade é a morte” (pp.37/38) Prosseguindo, corroborando o raciocínio empreendido: “simplesmente entendi que a vida não tem significado. Poderia ter aceite este facto pacificamente, sabendo que era o meu destino. Mas não podia ficar tranquilo”.

A suprema sinceridade do que se confessa, na memória de um tempo em que (o confessante) pensou que a verdade, a resposta, era a morte.

4. Como um “moribundo em busca da salvação”, Tolstoi percorre todos os domínios do conhecimento humano, quer saber tudo o que as ciências naturais, sociais e humanas lhe legaram, em séculos de desenvolvimento humano, acerca da questão do sentido da vida: “a minha pergunta, aquela que me trouxe ao ponto do suicídio quando eu tinha cinquenta anos de idade, era uma questão muito simples que reside na alma de toda a pessoa, da mais pateta criança ao velho homem sábio. É a questão sem a qual a vida é impossível, tal como aprendi pela minha experiência. Que é: o que será do que faço hoje e amanhã? O que será da minha vida inteira? Expresso de outra forma a questão pode ser colocada assim: porque vivo? Porque desejo algo, ou faço alguma coisa? Ou ainda expresso de outro modo: existe algum significado na minha vida que não será aniquilado pela inevitável morte que me aguarda?”.

Então, o autor de Guerra e Paz, descobre que a ciência natural, a matemática, o que é experimental nem a pergunta reconhece – qual o sentido da vida? Doutra banda, a filosofia aceita-a, mas não lhe responde. Cabe-lhe, pois, inserir-se no campo da sabedoria, observar o que disseram Salomão, Sócrates, Buda ou Schopenhauer sobre a questão. A resposta é desoladora, porque vai ao encontro dos seus piores receios: a vida é maldade; melhor, pois, a sua aniquilação (mesmo em vida).

Perante esta “verdade”, Tolstoi traça o quadro de respostas existenciais a que assiste (no seu “meio”; Tolstoi reitera, sempre, esta proveniência (social) original, “o meu meio”): a) ignorância da questão do sentido da vida; b) resposta epicurista: aproveitar a vida, gozá-la, porque depois desta vida não haverá nem festas, nem bebida, nem comida, nem nada em outra dimensão alguma, inexistente; c) suicídio – “o modo mais digno de escape”, destinado a “pessoas fortes e consistentes”; d) continuar a viver, agarrar a vida má e prosseguir, caminho “dos fracos”, mas aquele em que até então Tolstoi prosseguia. As falhas de cada uma das posturas podiam, para o escritor russo, ser esquematizadas da seguinte forma, respetivamente: a) ausência de entendimento de que a vida é absurda; b) falta de imaginação quanto a viver devorando prazeres, esquecendo que a velhice, a doença e a morte espreitam; c) quem comete suicídio não pondera que pode ter-se enganado, ou não compreendido algo, algures, quanto ao sentido da existência; d) e se esta tem sentido, o viver por viver também não é resposta.

Se é tão evidente que a vida é falha de sentido, então como conseguiram prosseguir milhões de pessoas a sua caminhada e transmitir-me a vida e suas realizações, algo que indiscutivelmente chegou até mim? É a pergunta que dará novo fôlego a Tolstoi.

5. O erro de Tolstoi, segundo o próprio, foi ter-se atido ao seu “meio” e visto os demais como “ELES”. E, no entanto, é “neles”, nos que labutam, e não nos “ricos” e “parasitas” que frequenta, e de que é membro, que se encontra a resposta mais importante: a fé. A mais sincera das fés, aquela que não se fica nas enunciações elaboradas desmentidas pelo viver dos seus autores ou transmissores, mas a do povo que vive como reza. A fé que Tolstoi “adiciona” ao conhecimento racional. Este, só permite somar o finito ao finito, e o infinito ao infinito, em jogos de soma zero. Nada. Só a fé (re)liga finito e infinito, forma de conhecimento maior, portanto. “Onde há vida, há fé”, formulação que um respeitado teólogo do nosso tempo, Andrés Torres Queiruga, colocará deste modo: o viver do homem que podia matar-se é o referendo pragmático de que a vida tem sentido. Tolstoi abandona a sua “classe”, ruma a uma vida ascética, deixa todos os bens, renuncia à propriedade privada. Todos, sem excepção – aqui contraria um pouco o Hans Kung de Aquilo em que creio –, se confrontam com o sentido da existência, só que milhões não se entediam com este, mas penam, sofrem, vivem com a dignidade que lhes advém de acreditarem, genuinamente, no que professam. O luxo não permite aceder à vida verdadeira. Como Guardini, Tolstoi aceita a não pedagogização da liturgia. Como Agostinho, o caminho é o do regresso: “tal como a força da vida foi gradualmente extinta e imperceptível, e cheguei à impossibilidade da ida, a cessação da vida e a necessidade de suicídio, também a força da vida regressou a mim, não era algo novo mas a mesma velha força que me atraiu no período inicial da minha vida. Regressei a todas estas coisas que tinham sido parte da minha infância e juventude (…). Noutras palavras regressei a uma crença em Deus, na perfeição moral, e à tradição que deu sentido à vida (…). A baía era Deus, a direcção a tradição, e os ramos eram a liberdade que me havia sido dada para remar para a baía e juntar-me a Deus”.

Não se julgue, contudo, que este regresso é um conto de fadas – haverá momentos de dúvida, ainda. A ausência de ecumenismo entre as Igrejas cristãs será algo que impressionará o autor de Confissão. Que, assentando na verdade essencial do que lhe era transmitido, esforçou-se no estudo dos textos para neles compreender, em equilíbrio, o que menos aí se sustentava. Um percurso exigente, permanentemente no fio da navalha. Acabou excomungado pela Igreja Ortodoxa que nem no ano 2001, a pedido de um ainda familiar de Tolstoi, reviu a condenação.