É raro ler-se, hoje-em-dia, um comentário nas redes sociais sobre assuntos de natureza política, social ou económica, em que não se refira ser este «um país de corruptos».
A questão da corrupção e da desejada luta das autoridades policiais e judiciais contra ela foi apropriada – como era previsível e já se observara noutras latitudes – por aquelas forças políticas e estratos sociais que nunca se identificaram com o regime democrático e que, por fim, encontraram nelas um fator mobilizador para o combaterem.
Por tal razão, e ainda pelo relevo e tipo de enquadramento privilegiadamente escandaloso que, em geral, a comunicação lhes dá, as investigações policiais e judiciais sobre a corrupção têm servido para muita coisa, para muitos discursos e, até, em alguns casos, para, efetivamente, ajudarem a controlar a corrupção e punirem alguns dos seus autores.
Fácil é constatar, porém, que apesar da inegável importância da intervenção judicial, não é, no essencial, por essa via que se contrariam as práticas corruptivas instaladas.
As intervenções policiais e judiciárias apenas podem, com efeito, aspirar, num caso ou noutro, a desvelarem alguns dos esquemas corruptivos mais subtis e identificarem e punirem alguns dos seus autores.
Foi o que, entre nós, aconteceu recentemente, com mérito, num caso muito relevante.
Dada a complexidade e ambiguidade do sistema socio económico que gere a vida de todos nós, para o conseguirem, as autoridades policiais e judiciárias têm, contudo, de se socorrer, frequentemente, de métodos que, mesmo legais, no rigor dos termos, põem em causa muitos dos princípios mais puros da democracia e do estado de direito.
Cada vez mais, para se conseguirem eficientes medidas de investigação e obter resultados no deslindamento da atividade corruptiva é-lhes necessário enveredar por estratégias e esquemas que comprometem e corroem, eles próprios, iniludivelmente, valores, princípios e garantias, desde sempre associados à democracia e ao seu sistema judiciário.
Podemos dizer, assim, que, de alguma maneira, a corrupção gangrena também a alma do dispositivo policial e judiciário que se dirige a combatê-la.
Como aconteceu com o terrorismo, também a chamada luta contra a corrupção vai concebendo formas de atuação que, no limite, podem ter efeito de boomerang: a construção de teorias sobre a prova que subvertem a lógica jurídica clássica, o aproveitamento de informação obtida de forma ilegal, a cooperação ambígua com criminosos assumidos ou declarados, etc.
Aí se encontra o terreno pantanoso onde a justiça democrática pode escorregar e, por fim, soçobrar.
Quem visionou a série inglesa, que passou na RTP2, denominada «Lei e Corrupção» – em inglês «Line of Duty» – poderá compreender melhor como o combate à corrupção, quando centrado primordialmente no inquérito policial e judiciário e socorrendo-se de métodos ínvios, pode ir corroendo, também, as bases morais das próprias autoridades que o travam.
Como ali se vê, não só a corrupção, no sentido jurídico do termo, acaba por comprometer alguns dos investigadores que dela se ocupam, como, não menos importante, destrói também os fundamentos em que assentam as suas relações profissionais e de camaradagem, produzindo suspeitas pessoais e inimizades inultrapassáveis, alimentando protagonismos e estrelatos fáceis, suscitando guerras e invejas intestinas, favorecendo, para tanto, o mercadejar de informação reservada, destruindo, enfim, a moral coletiva dos corpos a quem a missão de combater a corrupção foi atribuída.
Daí que seja simples aos que hoje combatem a democracia encontrarem sempre motivos para apodarem o regime democrático de corrupto.
E isso, porque o discurso democrático e a a estratégia de luta contra a corrupção centrada, sobretudo, no sistema policial e judiciário esquece as razões político-económicas que a favorecem e as medidas de fundo que podem, de facto, dificultar ou contrariar a sua expansão.
Na verdade, não precisam tais indignados com o regime democrático explicar as causas da corrupção de que o acusam.
Os regimes democráticos, tendo optado por privilegiar o combate à corrupção na vertente das consequências criminais, permitem aos seus inimigos fazer olvidar politicamente as suas razões político-económicas e nunca explicar como pensam contrariá-las de raiz.
O discurso destes é, por isso, simples e basta-se com as notícias escandalosas dos media: suspeitas de corrupção, dificuldades nas investigações judiciais, necessidade de meios mais intrusivos para a descoberta da verdade, empoderamento crescente das autoridades policiais e judiciárias, inevitável obrigação de recortar ainda mais as garantias democráticas, reforço permanente das estratégias autoritárias.
Onde já vimos isto?
Mas, sobre o pano de fundo em que a corrupção prospera, sobre as causas profundas da corrupção nada dizem: desde logo, a consentida promiscuidade entre os interesses privados e públicos, a opacidade técnica e terminológica dos contratos públicos, a falta de um controlo prévio, tempestivo, eficiente e rigoroso das despesas do Estado, a demonização e desmoralização da administração pública e dos seus funcionários, a impossibilidade financeira de recrutar e pagar devidamente bons técnicos para o Estado, capazes de intervir com conhecimento e autonomia nas negociações em que o Estado intervém, a consequente desagregação das carreiras públicas e a falta de formação permanente dos que nela trabalham, etc.
E se lhes perguntassem – nos perguntássemos – algo sobre isto?