A importância de reabrir os “laboratórios de ideias”


A investigação em matemática tem um papel tão importante como o dos laboratórios experimentais noutras áreas do conhecimento científico.


As histórias associadas, por exemplo, à demonstração do Último Teorema de Fermat por Andrew Wiles, na última década do séc. xx, e da Conjetura de Poincaré por Grigory Perelman, na primeira década do séc. xxi, reforçaram uma imagem dos matemáticos como cientistas tímidos, reclusos e solitários, trabalhando durante anos em isolamento para chegarem aos seus resultados. Esta imagem pode eventualmente ser adequada a uma pequena percentagem de matemáticos, mas é muito enganadora da forma de ser e de trabalhar da sua grande maioria.

De facto, há pelo menos 70 anos que a investigação e o desenvolvimento em matemática são muito baseados em atividade colaborativa. Há institutos de investigação espalhados por todo o mundo cuja missão principal é estimular esse tipo de atividade. Um exemplo paradigmático é o Oberwolfach Research Institute for Mathematics, conhecido simplesmente por MFO [1]. Situado na Floresta Negra, no sul da Alemanha, a sua atividade principal é acolher encontros temáticos de uma semana, com cerca de 50 participantes convidados pelos dois ou três organizadores de cada um dos encontros, onde são apresentados e discutidos resultados recentes numa determinada área da matemática, bem como delineados novos projetos de investigação para o seu desenvolvimento futuro. A arquitetura e o enquadramento do MFO, bem como o formato típico de cada encontro, procuram estimular o mais possível aquilo que na investigação em matemática tem um papel tão importante como o dos laboratórios experimentais noutras áreas do conhecimento científico: 

– A troca de ideias entre participantes, espontânea e informal, baseada nos problemas em que cada um está a trabalhar ou motivada por algo que se ouviu numa palestra ou numa conversa. 

Dito de outra forma, o MFO funciona como um “laboratório de ideias” onde decorrem, semanalmente, “experiências” de matemática. 

Recomendo a leitura do seguinte artigo recentemente publicado na Quanta Magazine [2]: “Mathematics as a Team Sport. When 50 mathematicians spend a week in the woods, there’s no telling what will happen. And that’s the point”.

Infelizmente, a atual pandemia está a afetar fortemente o funcionamento destes “laboratórios de ideias”. Na sequência do artigo anterior, recomendo também a leitura de outro artigo publicado pouco depois na mesma revista [3]: “Math after COVID-19. Modern mathematics relies on collaboration and travel. COVID-19 is making it increasingly difficult”. O autor, Kevin Hartnett, colunista da Quanta Magazine, refere no final que sendo ainda demasiado cedo para saber como esta pandemia vai afetar o fluxo de novos resultados em matemática, parece inevitável que, numa área que valoriza tanto as interações e colaborações presenciais, irá necessariamente haver mudanças. Pessoalmente, e tendo em conta que, como já referi, considero que estes “laboratórios de ideias” são tão importantes para a matemática como os laboratórios experimentais o são noutras áreas do conhecimento científico, o que me parece importante e inevitável é que venham a reabrir o mais rapidamente possível.

Os “laboratórios de ideias” são também absolutamente fundamentais em todos os níveis de ensino. A troca de ideias, espontânea e informal, baseada no que está a ser estudado ou motivada por algo que é dito numa aula, seja pelo professor ou por algum aluno, ou pelo trabalho colaborativo de alunos na resolução de exercícios/problemas/projetos, ou também no contexto de uma tutoria ou de uma aula de dúvidas, desempenha um papel crucial e insubstituível na formação e desenvolvimento dos alunos. 

Em Portugal, as medidas associadas à pandemia fecharam quase totalmente, desde março, todos estes “laboratórios de ideias” no ensino. Quando possível e com um enorme esforço de professores e alunos, tentou-se que fossem substituídos por “laboratórios virtuais”, baseados nas mais diversas plataformas de ensino à distância. As novas tecnologias permitem, de facto, novos modelos de ensino/aprendizagem e até de investigação que podem ser muito úteis como instrumentos complementares. No entanto, assim como para os laboratórios experimentais, são alternativas muito pobres para os “laboratórios de ideias” baseados em interações presenciais professor/aluno, aluno/aluno e professor/professor.

Depois de um período fechado, o MFO reabriu [4] no final de junho o seu “laboratório de ideias”. Apesar da pandemia, é absolutamente fundamental reabrir já em setembro, de forma sustentada, os “laboratórios de ideias” em todos os níveis de ensino em Portugal. Pela minha parte, e julgo que o mesmo acontecerá com a grande maioria dos meus colegas, farei tudo o que estiver ao meu alcance para que isso seja uma realidade no Instituto Superior Técnico, com especial atenção para os alunos do 1.o ano vindos do ensino secundário.

 

[1] https://www.mfo.de/
[2] https://www.quantamagazine.org/mathematics-as-a-team-sport-20200331/
[3] https://www.quantamagazine.org/how-has-coronavirus-affected-mathematics-20200428/
[4] https://www.mfo.de/about-the-institute/news/oberwolfach-welcomes-guests-again

 

Departamento de Matemática, Instituto Superior Técnico

A importância de reabrir os “laboratórios de ideias”


A investigação em matemática tem um papel tão importante como o dos laboratórios experimentais noutras áreas do conhecimento científico.


As histórias associadas, por exemplo, à demonstração do Último Teorema de Fermat por Andrew Wiles, na última década do séc. xx, e da Conjetura de Poincaré por Grigory Perelman, na primeira década do séc. xxi, reforçaram uma imagem dos matemáticos como cientistas tímidos, reclusos e solitários, trabalhando durante anos em isolamento para chegarem aos seus resultados. Esta imagem pode eventualmente ser adequada a uma pequena percentagem de matemáticos, mas é muito enganadora da forma de ser e de trabalhar da sua grande maioria.

De facto, há pelo menos 70 anos que a investigação e o desenvolvimento em matemática são muito baseados em atividade colaborativa. Há institutos de investigação espalhados por todo o mundo cuja missão principal é estimular esse tipo de atividade. Um exemplo paradigmático é o Oberwolfach Research Institute for Mathematics, conhecido simplesmente por MFO [1]. Situado na Floresta Negra, no sul da Alemanha, a sua atividade principal é acolher encontros temáticos de uma semana, com cerca de 50 participantes convidados pelos dois ou três organizadores de cada um dos encontros, onde são apresentados e discutidos resultados recentes numa determinada área da matemática, bem como delineados novos projetos de investigação para o seu desenvolvimento futuro. A arquitetura e o enquadramento do MFO, bem como o formato típico de cada encontro, procuram estimular o mais possível aquilo que na investigação em matemática tem um papel tão importante como o dos laboratórios experimentais noutras áreas do conhecimento científico: 

– A troca de ideias entre participantes, espontânea e informal, baseada nos problemas em que cada um está a trabalhar ou motivada por algo que se ouviu numa palestra ou numa conversa. 

Dito de outra forma, o MFO funciona como um “laboratório de ideias” onde decorrem, semanalmente, “experiências” de matemática. 

Recomendo a leitura do seguinte artigo recentemente publicado na Quanta Magazine [2]: “Mathematics as a Team Sport. When 50 mathematicians spend a week in the woods, there’s no telling what will happen. And that’s the point”.

Infelizmente, a atual pandemia está a afetar fortemente o funcionamento destes “laboratórios de ideias”. Na sequência do artigo anterior, recomendo também a leitura de outro artigo publicado pouco depois na mesma revista [3]: “Math after COVID-19. Modern mathematics relies on collaboration and travel. COVID-19 is making it increasingly difficult”. O autor, Kevin Hartnett, colunista da Quanta Magazine, refere no final que sendo ainda demasiado cedo para saber como esta pandemia vai afetar o fluxo de novos resultados em matemática, parece inevitável que, numa área que valoriza tanto as interações e colaborações presenciais, irá necessariamente haver mudanças. Pessoalmente, e tendo em conta que, como já referi, considero que estes “laboratórios de ideias” são tão importantes para a matemática como os laboratórios experimentais o são noutras áreas do conhecimento científico, o que me parece importante e inevitável é que venham a reabrir o mais rapidamente possível.

Os “laboratórios de ideias” são também absolutamente fundamentais em todos os níveis de ensino. A troca de ideias, espontânea e informal, baseada no que está a ser estudado ou motivada por algo que é dito numa aula, seja pelo professor ou por algum aluno, ou pelo trabalho colaborativo de alunos na resolução de exercícios/problemas/projetos, ou também no contexto de uma tutoria ou de uma aula de dúvidas, desempenha um papel crucial e insubstituível na formação e desenvolvimento dos alunos. 

Em Portugal, as medidas associadas à pandemia fecharam quase totalmente, desde março, todos estes “laboratórios de ideias” no ensino. Quando possível e com um enorme esforço de professores e alunos, tentou-se que fossem substituídos por “laboratórios virtuais”, baseados nas mais diversas plataformas de ensino à distância. As novas tecnologias permitem, de facto, novos modelos de ensino/aprendizagem e até de investigação que podem ser muito úteis como instrumentos complementares. No entanto, assim como para os laboratórios experimentais, são alternativas muito pobres para os “laboratórios de ideias” baseados em interações presenciais professor/aluno, aluno/aluno e professor/professor.

Depois de um período fechado, o MFO reabriu [4] no final de junho o seu “laboratório de ideias”. Apesar da pandemia, é absolutamente fundamental reabrir já em setembro, de forma sustentada, os “laboratórios de ideias” em todos os níveis de ensino em Portugal. Pela minha parte, e julgo que o mesmo acontecerá com a grande maioria dos meus colegas, farei tudo o que estiver ao meu alcance para que isso seja uma realidade no Instituto Superior Técnico, com especial atenção para os alunos do 1.o ano vindos do ensino secundário.

 

[1] https://www.mfo.de/
[2] https://www.quantamagazine.org/mathematics-as-a-team-sport-20200331/
[3] https://www.quantamagazine.org/how-has-coronavirus-affected-mathematics-20200428/
[4] https://www.mfo.de/about-the-institute/news/oberwolfach-welcomes-guests-again

 

Departamento de Matemática, Instituto Superior Técnico