Rosa Oliveira. A promessa adiada da sublimidade ou de um massacre

Rosa Oliveira. A promessa adiada da sublimidade ou de um massacre


No seu terceiro livro, “Errático”, o registo confessional e cheio de desenvoltura que tornou Rosa Oliveira uma das mais assinaláveis vozes da poesia portuguesa contemporânea, dá sinais de desgaste, deixando claro os limites da ironia no que toca a esboçar uma visão poética, ainda que profundamente cínica, do mundo.


Quando se olha para trás, o que mais dói é a forma como o tempo passa insensivelmente nesta terra. Talvez seja igual em toda a parte, mas, aqui, a sensação de que nada nunca é sentido no seu tempo deixa a impressão de um mosquito embriagado, tomado pelo frémito de uma gota de um sangue robusto, com o ritmo de um coração desproporcionado para o mundo, esse insecto que, lá na sua pedrada ínfima, pousado nalgum tronco, sem dar-se conta, acaba engolido por uma camada de seiva. Fica preservado o mosquito e o seu êxtase, como os amantes do Vesúvio, e custa-nos mais a nós, décadas depois, sentir como aquilo ficou ali, múmia instantânea, deixando a agonia para nós. E isto assalta-nos quando lemos observações tão certeiras sobre os nossos dias feitas há muito muito tempo, no que supúnhamos uma galáxia distante. A propósito do livro de estreia de António Manuel Couto Viana, “O Avestruz Lírico”, dizia David Mourão-Ferreira, que a jovem poesia do final da primeira metade do século oferecia “o aspecto de um acampamento desordenado e ruidoso, com pretensas mensagens tremulando no topo de mastros mal firmados, e com certos recantos muito arranjadinhos mas sem vida, pejados de tendas floridas e compostas, porque vento nenhum as atingia”. É uma descrição que se pode transpor tal e qual para os nossos dias, talvez adiantando que este é o panorama da poesia que temos, mesmo daquela não tão jovem assim, e até num momento em que os mais velhos são ainda dos poucos que têm alguma ideia do que seja a frescura, capazes de escavar essas bolsas subterrâneas que sacodem do seu estupor este tempo, sufocado pelo peso de transformações desgastantes, avanços descontrolados, conduzindo à morte natural daquilo que existia, daquilo que reconhecíamos como a antiga ordem temporal que se coordenava com a medida humana. Hoje, e ainda mais nestes dias cercados pela peste, citando Paul Nizan, tudo se parece com a desordem que conclui as doenças: “antes da morte que se encarrega de tornar todos os corpos invisíveis, a unidade da carne dissipa-se, cada parte dessa multiplicação puxa no seu sentido. Isso acaba na podridão que não comporta ressurreição.”

É curioso como a poesia, por mais licença que obtenha de um sentido de verdade, acaba por testemunhar isto, catando esses destroços apodrecidos que hoje tornam o lirismo uma disciplina um tanto “pulha”. Os poetas tornam-se cada vez mais cedo cínicos, bastante cépticos também quanto aos poderes da sua arte, e muito em breve não se distinguirão de meros artífices da concisão, cercando de fossos de espaço branco certas palavras, frases, “fiadas de marcas alfabéticas gravadas a ferro em brasa no papel”, com os poemas a tornarem-se nada mais que exercícios de respiração, elaborados a partir de uma sensação de espanto onanista, com um cinto apertado no pescoço para refrear a passagem de ar e prolongar o prazer.

Mais do que notar isto, valerá a pena compadecermo-nos deste estado de coisas? No seu diário, na mesma página em que diz que roçou por duas vezes o suicídio no último ano, Cesare Pavese lembra que na tragédia grega não há maus. “Não se estabelece uma responsabilidade, constata-se um facto – um destino.” Mesmo que o transtorno deste tempo nos leve a ficar impacientes pelo fim, pior é esse desespero de buscar ainda a chave para toda esta confusão, procurar ainda responsáveis quando talvez nenhum de nós seja já algo mais do que sequelas. Afinal, quando foi a última vez em que os homens nesta sociedade puderam realmente manobrar as rédeas do seu destino? O dinheiro parece ser a grande metáfora concebida pela época que precedeu a nossa. De tal modo poderosa que acabou por devorar o próprio tempo. Como escreveu Don DeLillo em “Cosmópolis”, “o dinheiro perdeu a sua qualidade narrativa, do mesmo modo que aconteceu em tempos à pintura. O dinheiro agora fala sozinho (…) O dinheiro faz o tempo. Quando dantes era ao contrário. O tempo que nos diz o relógio acelerou o capitalismo. As pessoas deixaram de pensar sobre a eternidade. Começaram a pensar em termos de horas, unidades mensuráveis de tempo, horas como frequências humanas, para organizar melhor os períodos laborais.”

Wallace Stevens notou, celebremente, que “o dinheiro é uma espécie de poesia”. É uma noção espantosa, sobretudo pela forma como nos mostra como uma metáfora pode instituir uma ordem de tal modo despótica que se torna violenta, bárbara, quase substituindo o mundo. Como uma rima interna que vai dissolvendo aos poucos tudo o que estava para trás, toda a História e cultura, uma melodia que se torna cada vez mais estranha, compondo a nossa vida, dominando os nossos desejos e ansiedades, arrastando-nos ao ponto de sermos estranhos para nós próprios, e vivermos aterrorizados uns pelos outros, por tudo aquilo que vive para além de nós. E, com isto, a metáfora arrasou a própria arte que a poderia relativizar, ridicularizando-a, dando-a como supérflua. O que não deixa de ser extravagantemente irónico. E foi isso o que, em certa medida, estabeleceu as regras desse jogo de dados com que se entretêm os poetas menores. Viciados menos no jogo do que na sua menoridade ou inconsequência. Eis, em chave-irónica e, nem por isso menos verdadeira, uma revisão dos “ditames da poesia” como ela é hoje praticada, não apenas por Rosa Oliveira, mas por qualquer poeta que tenha habilidade suficiente para ganhar mais vezes do que se perde, sem ganhar tantas que mais ninguém queira ir a jogo, ou arriscar o seu dinheiro – a única metáfora (como sabemos) que vale alguma coisa, valendo até mais do que o jogo: “(I) não vale a pena implorar/ ou chorar/ sobre caixinhas esfrangalhadas/ de metáforas// também já encurtei a métrica/ é menos doloroso/ e pode ser que o sentido não fuja// eu nunca fugi/ estive sempre aqui/ a ver passar os veados/ a desfiar rosários de enigmas/ a preparar-me sete dias por semana/ para mijar no tapete dos vizinhos// (II) provavelmente/ é preciso lançar/ o dardo venenoso// é preciso desfiar teorias/ lambuzar a cara de certezas/ por mais pífias que sejam as convicções// é preciso fazer esvoaçar o cabelo/ mesmo que não haja vento”.

Como se vê, não havendo muito com que se distrair, sendo a terra mental tão curta, com tão pouco que fazer, cai bem uma dose moderada de insubordinação, considerando que quem nos lê há-de estar sentado, indo e vindo, nuns rodopios mentais, sobraçando o livrinho com boa encadernação, todo airoso, talvez sentindo-se pouco aventureiro, e, portanto, precisado de encorajamento. Nisto, vai-se jogando a bisca, numa simulação de galhardia doméstica. Na verdade, vai-se desfiando a camisola de lã nos ventos presumidos dessa anti-épica, numa sonsice estratégica, porque não basta ter alguma presença de espírito, graça, ser acutilante e, ao mesmo tempo, ir dando corda, desfazendo-se em migalhas, combinando os versos mais poderosos e de recorte enfático, perfil clássico, com atracções de feira. No fundo, é preciso racionar bem a coisa, e não ofuscar o leitor que, por certo, terá também as suas pretensões artísticas, e não veio até ali desejando sentir-se humilhado. Em suma: não convém destratar ninguém. É preciso ter qualquer coisa para animar toda a família, e ainda algum alpista no bolso para o canário, que de outro modo se lançará à desgarrada, e acabará por cumular o favor da audiência.

Num poema que tem o “olimpo” como um trapo largado à laia de título, Rosa Oliveira anuncia: “não escrevo poesia épica”, e logo, num parêntesis, que é muitas vezes onde o poeta, hoje, toma a liberdade de ser mais ousado, adianta que “imensa gente escreve poesia épica no século XXI”. E aqui, dispensando remoques desses que se atira para o ar como quem dispara pistolas de fulminantes, era interessante se a poeta nos pudesse fazer uma listinha. É que, se calhar, esse fenómeno merecia realmente ser observado de perto. Nem que seja para variar a tão aborrecida ementa. Mas o poema segue, como se não tivesse escolha, e explica-se, e finge-se em falta, para dizer que não dá um passo, mas se diz plantado orgulhosamente neste chão que certamente já deu uvas: “a pena que tenho de não parir um gesto heróico/ por pequeno que fosse/ mas epopeico, homérico/ declamável, transpirável, pleonásmico/ soberbo na sua contagem decrescente/ a ser lançado no futuro/ num gesto largo/ cautelosamente generoso/ de quem entra na água fria das praias nortenhas/ e sabe que tem de avançar/ com os pés bem fincados/ no presente, essa empíria do épico”.

Para a troca, e também para comparar, podíamos fazer sem dificuldade uma listinha dos poetas anti-épicos, e não demoraríamos a dar conta de que, muito provavelmente, entre as duas barricadas, os de lá seriam subjugados muito cedo até pelos modos indolentes dos de cá. E ali Rosa Oliveira estaria na companhia de José Alberto Oliveira (com quem, apesar do apelido em comum, não partilha laços familiares), Vítor Nogueira, José Ricardo Nunes, João Luís Barreto Guimarães ou Pedro Mexia, isto para nomear só alguns dos elementos mais característicos desta tendência proliferante. É possivelmente, para usar um título da poeta, “a angústia da fluência”, que leva a que para muitos o poema se faça com o banco de jardim onde repousam desperdícios, comida acre, vendo a vida-lixo rodopiar ao vento, rematando isso tudo com a espera, uma adiada promessa da sublimidade ou de um massacre: “ali repousam singelos pensamentos sanguinários/ à espera de uma ópera”. É um discorrer lento, errático, como avisa o título do livro, “enredado em subentendidos”, numa voz que se confunde com a narração que resulta adequada para este tempo terrivelmente interessante, que nos impõe uma atemorizante vertigem, num tal arranjo de catástrofes que talvez se pudesse esperar que o poeta fosse convencido a calar-se sempre que não seja dominado por uma urgência absurda, de modo a não contribuir para o “ocaso cínico”. Talvez o verso mais urgente deste livro surja logo no primeiro texto, que nos fala do mundo como algo de inapelável, traiçoeiro ou impossível em si mesmo, “essa referência vazia que precisa de ser agitada para que ganhe consistência”. A hipótese que a poeta então nos lança é a de que face à experiência de morte que se vulgarizou, que tomou conta de tudo, “só desligando-nos do mundo se poderia sentir o mundo”. É nos momentos em que esta poesia se questiona, se toca, é nas notas desgostosas muito mais do que nas paródicas que este livro sem respostas nos atinge e nos deixa a forte impressão de que a poesia é cada vez mais uma questão de silêncios do que de palavras. Mas as palavras ainda servem como pontuação neste exame de consciência: “o herói vive em constante anonimato transcendental/ estamos presos em nós/ os outros são ambiente”.

O pior é se o poeta se habitua à ideia de que a publicação serve como pequeno teatro de bairro onde apresentar a familiares e amigos um pequeno espectáculo feito das nossas misérias, colando cacos de ilusões que, possivelmente, nem tinham razão de ser, à espera de aplausos, desse ânimo de se representar a sua vida para uma audiência, como se só ela pudesse dar sentido aos apagados gestos do herói, que assim se dá licença para dizer seja o que for: “tinha de falar/ não tendo nada a dizer/ apenas para esboroar o silêncio”.

Nos momentos mais desnecessários, esta poesia serve-se de referências cultas para socorrer quadros que resultam, assim, insinceros, de um dramatismo embiocado, como o longo poema que dá o título ao livro, que lembra um conto que foi poupado a um regime puramente narrativo e se viu arrumado em versos que estão ainda a curar as fracturas, envolvidos pela gaze: “todos os dias pensava/ que poderia ter nascido de uma biologia ingénua/ condenado à hecatombe malthusiana/ rezava então agradecendo/ a vida superior que lhe fora reservada (…) com o seu longo treino em manter o desespero açaimado/ avançava pela vida como um carro de combate metafísico”. Atente-se ainda na assumidamente infeliz estrofe que abre a parte final do poema bem como na que se segue: “ainda há pouco havia só bolhas no protoplasma/ e agora aqui estamos/ em interminável antimelodia/ usamos óculos de ver ao longe, ao perto/ para dentro, para fora/ sempre a esfregar os olhos de cegueira congénita// pisamos confiantemente uma esquizosfera/ dos nossos dedos escoam fluidos/ preparam-se sismos”. E é nalguns destes momentos que muita da poesia portuguesa contemporânea acusa a falta de compromisso por parte dos editores, que tantas vezes se limitam a publicar estes e não aqueles, ou mesmo estes contra aqueles, sem ir com o dedo, como um lebreiro de focinho no chão, a ver o que possam ser tocas e aquilo que não passam de páginas sulcadas, sombras de uma poeira que ainda não assentou. Dessa falta de comprometimento com o que se publica resulta este ambiente de “acampamento desordenado e ruidoso, com pretensas mensagens tremulando no topo de mastros mal firmados”, e será muito difícil esperar mais da poesia que se publica, e virem muitas vezes os editores queixar-se de que faltam vozes transformadoras quando, mesmo que estas lá estejam, seria muito difícil fazerem-se ouvir nesta modalidade em que, não só todos os cães merecem o céu, como tudo aquilo que desenterram merece ser estimado como se fora as ossadas de um anjo.

Dito isto, a escrita de Rosa Oliveira nunca se torna maçadora, e o registo é bastante vigiado, estimulante, o aspecto lúdico, as anotações e apartes meio desvairados (“uma mulher anota sonhos/ em letra de formiga/ os cadernos passam de mão em mão/ até acabarem no Museu Gulbenkian/ os amigos tentam lê-la/ seguir aquelas patinhas evanescentes/ sempre em fuga), emprestam um fundo anedótico, um regime de vistas generoso, que abre nestas páginas uma série de assoalhadas, arejadas, com vista para o parque, bons acessos e assim. É bom para receber visitas, e não é mau para se ficar sozinho. Parece-se um pouco com ligar a televisão para ter companhia enquanto se passa a roupa, mas tê-la ligada na RTP2, que a cada intervalo vai insistindo que é a excepção: “culta e adulta”. É neste sentido que o terceiro livro de Rosa Oliveira perde na comparação com os anteriores, ou seja, ao dar a sensação de que esta voz se acomodou aos seus lugares e recursos. Como essa mulher beirã que às tantas surge “sentada no horizonte/ à espera de nada/ pensa na vida/ documentário com legendas/ sabidas de cor”.

Este é um livro poeirento, onde a vida densa nos surge entre o despercebida e o atenuada, onde os sentimentos se tornam vagos, unidos por pensamentos-sombra, entre paisagens encurraladas, quedas sem especial aparato, cercos viciosos, e já nos surge aquele registo próprio de quem se serve de expedientes, redige notas de pesar, não faltam os epigramas desajeitados, poemas como refeições para um, desses congelados que se aquecem no micro-ondas. Há lembranças retiradas de alguma caixa de sapatos para ver se a dor está ainda viva, e, então, “os dedos mascarados abrem em leque/ esmagam o celofane das flores atónitas/ as subtis luvas negras/ trocam intensos olhares de lado/ nunca encaram o público que chora/ e se despede da caixa”. Um poeta húngaro diz-nos que os anos voam tão rápidos como um bando de pássaros depois de um tiro. Nestes poemas, o tiro ecoa distantemente, e vai-se apanhando do chão os cartuchos queimados, que inspiram essas questões ociosas de que se abusa quando é a própria vida que se põe a enterrar miragens, e tudo nos escapa “entre os dedos frágeis do presente metido a passado”. E é então que a morte se intromete, pela obsessão de ficcionar algum desfecho, em vez de se ter a audácia de deixar que o texto persista e vá mais longe nesse auto-retrato fragmentário e furtivo, mesmo que acabe por embaciar-se numa elegante ausência, numa mistura ambígua de verdadeiro e falso. Por uma qualquer reserva púdica que proíbe a si mesmo um excesso ameaçando o patético, recorre-se a esquemas narrativos, e lá vem a morte que só admite o registo murmurante, com as suas sepulturas carcomidas de ferrugem, os enfeites de ferro que se partem aos bocados e onde as inscrições se apagam, uma selva de anjos sem cabeça, como se lê numa das melhores descrições desse ruína calmante em que o adjectivo “inesquecível” que acompanha certos nomes é corroído pelo esquecimento, enquanto a vegetação se adensa e cobre os túmulos de estelas perdidas na floresta. Mas, neste caso, no caso destes poemas, não há nada como uma “aparência luxuriante da caducidade que suscite a fidelidade, a recordação, uma guerrilha com o tempo” (Claudio Magris). É apenas a morte como resto, como solução para um final que não exija demasiadas explicações. Uma forma de se esquivar antes que as luzes na sala se acendam: “por mais esforço que façamos/ os mortos escapam entre os dedos/ agarramo-los com força/ eles vão-se esbatendo na luta inglória/ contra dias gasosos e noites sólidas// mais não tenho a dizer/ acabei de chegar/ e parto imediatamente/ sem saber se há mais vida”.

Tudo lembra vagamente as falas das personagens num romance demasiado ocioso para se comprometer com o destino dos seus personagens, preferindo assumir uma “desconfiança da história”, desculpando-as: “estamos de passagem/ a caminho de feitos mais importantes// solhas, carpas/ tudo símbolos/ que não se podem partir/ tudo porcelana narcótica/ vinda directamente/ do interior dos factos”. Na página anterior, um poema não mais que comichoso, consegue a proeza de se safar à última, com uma estrofe final que se ergue como uma assombração de uma nota necrológica: “estou a mastigar o pão pela última vez/ só pode ser de olhos fechados/ para este mastigar ficar impresso/ na minha eternidade”. De resto, é-nos dito que “o mundo esteve sempre ali para ser descrito e sorvido/ mesmo não havendo mais mundo”, e, assim, a realidade surge como uma reflexão posterior (afterthought), que balança num espelho baço, numa simetria irónica, bastante desolada. Vemos desfilar nela a época com o seu coração voraz de necrófago. E há sempre margem para registar alguma outra queda: “um pensamento-sombra avança/ sobre os nossos passos incertos/ desbotados/ acima/ a poeira descontínua das galáxias/ em frente/ uma cara empalhada/ com olhos submarinos/ e veios à flor da pele// digam-me se é possível sobreviver a este fim de tarde/ de tão severa prosa?”

As coisas quase chegam a fazer sentido, mas depois escarnecem de si mesmas, tornam-se petulantes, desagradáveis, acrimoniosas, sempre inteligentes, um tanto nervosas, mas, porque se trata de poemas, e considerando que quem os escreve exerce antes de tudo um ofício de auto-domínio, censura, raramente estes fazem cenas. É tudo bastante cerebral. A própria cesura dos versos tem algo de sarcástico. Um certo desleixo prosódico, qualquer coisa como: para o que é, está bom demais. Tomai lá, não do O’Neill, mas do que se segue. Discorre-se sobre o que tiver de ser, o que quer que sejam os pratos do dia na ementa cultural, e depois não falta esses piscares de olhos, muita leitura, muitos escritores célebres posando em recriações de cera, às vezes fazendo caretas, às vezes na posição de lótus. A voz é reconhecível. A de um narrador que parece dizer-nos que preferia não o fazer, não seguir com a narrativa, mas que aceitou o trabalho em troca de poder enxertar o enfadonho texto de umas notas sardónicas, de uns gracejos, fazendo resumos distorcidos a cada oportunidade, alegando insanidade temporária sempre que lhe convém, dando-se o papel do bobo numa tragédia desapercebida: “Ironia e desprezo avançam sobre os nossos dias./ Cruel      ferino      perseguidor      encarcerado/ vive dentro de adjectivos sobrepostos/ acidentes      fantasmas      surpresas/ a cada esquina do reino geométrico// O labirinto é a arma: acorda e adormece dentro dela/ captura vítimas/ amortalhado/ com elas enroscadas/ nos cascos da besta”. Tudo um pouco frio, rimando distantemente. Um certo perfume de ameaça, de profecia dengosa, hábil como uma cartomante, não das de feira, mas dessas que recebe num quarto penumbroso por cima do salão de unhas.

Se calhar esperavam que disséssemos se é bom, se é mau… Mas que sentido isso ainda faz numa actividade que os leitores tomam como uma impostura sobrante e que cumpriu o seu papel nos velhos tempos de glória, mas que hoje se mostra inconveniente, indelicada para a fina estrutura do que é visto a embalar-se nos próprios braços, que sentido tem a crítica vir avalizar seja o que for enquanto se vê escoltada até à saída, antes de ser chutada para o exterior, ficando ao frio, tendo bebido à pressa os copos que apanhou no caminho, para ir rua fora a fazer de bêbada sem o estar realmente, porque chegar a casa num estado parecido e nem ter um vício mais socialmente tolerável para se explicar, aí está algo que nos pode arranjar enormes chatices com a patroa. Então, meu madraço, andaste lá fora a arranjar problemas, desancar uns e umas porque tu dizes que escrevem mal e porcamente? Ou nem isso, e é só porque o que escrevem não te diz nada… E se isto parece abandonado, um aparte “contente da sua animosidade”, perdido e sem possibilidade de retomar o fio, eis um poema chamado “retórica caseira”: “a metáfora perspicaz/ vai pela rua fora/ senta-se ao sol/ está na hora de almoço/ a ementa é aborrecida/ logo ela que tanto gosta de comer/ (há quem desdiga/ do prazer na boca)/ logo ela que foi parar a uma terra/ onde quase ninguém sabe comer// ali vivem lentamente/ sem inquietações papilares/ adormecidos à sombra/ de um bucolismo serôdio/ (porra de fonética)/ à espera de ver cair/ o próximo prémio literário/ a próxima promessa/ a não cumprir// nessa terra de cenário/ sem personagens/ nasce a metáfora à procura/ da breve embriaguez”.