Ludmila Istratuc: assim se chamava a funcionária que, aos 42 anos, perdeu a vida no surto de covid-19 que atingiu o lar da Fundação Maria Inácia Vogado Perdigão Silva (FMIVPS), em Reguengos de Monsaraz. Mais de um mês após o óbito, a família pede que seja feita justiça por Mila, como era carinhosamente tratada, mas também que sejam cumpridas todas as “promessas” feitas pela autarquia de Reguengos de Monsaraz.
Ao i, Cornelia Cojocaru, prima do marido de Mila, Adrien Istratuc, explica que a Câmara Municipal se disponibilizou para tratar de todas as questões relacionadas com o funeral, mas também para assumir todas as despesas. Algo que, garante, acabou por não acontecer. “Quando soubemos que a minha prima faleceu, o Adrien estava em choque e não conseguia reagir muito. Então combinou comigo que tratasse das coisas e disponibilizei-me. Eu fazia a ligação entre a Câmara e o Adrien”, diz Cornelia, que explica que o primo tem mais dificuldades em expressar-se – ao contrário de Mila, que já falava bem português. “Na altura disponibilizaram-se para ajudar em tudo, tratar do funeral, e confirmei várias vezes se iam mesmo pagar as despesas. O meu primo tinha outras pessoas para ajudar com o funeral, mas pediu-me para confirmar se era verdade que a Câmara assumia tudo. Voltei a ligar a perguntar se os custos ficavam a cargo deles, e a representante da Câmara disse para não me preocupar porque a Câmara assumia tudo. Ficámos descansados”.
A família reconhece que a autarquia tratou das questões logísticas do funeral, mas diz que o mesmo não aconteceu com as despesas. Um mês após a morte de Ludmila, a Segurança Social entrou em contacto com Adrien para informar que a certidão de óbito ainda não tinha sido emitida porque a dívida na agência funerária continuava por saldar.
“A Câmara disse que o Adrian ia receber uma fatura da funerária em nome dele, mas era só apresentar essa fatura na Segurança Social para ser reembolsado. Continuámos à espera e estranhámos demorar tanto tempo”, recorda Cornelia. O seu primo acabou por acertar contas com a funerária. Quando a família soube que, numa reunião do Executivo municipal, o autarca, José Calixto, terá dito que a Câmara já tinha efetuado o pagamento, publicou a fatura nas redes sociais. “O presidente foi confrontado e ele confirmou a dizer que a Câmara pagou o funeral. Uma grande mentira. Foi o meu primo que pagou”, acusa Cornelia.
Questionado pelo i, José Calixto, presidente da Câmara municipal (e também da FMIVPS), garante que cumpriu com a sua palavra. Depois de destacar as relações de “grande proximidade” que sempre existiram entre o município e a comunidade moldava, e de sublinhar que Mila “era uma das melhores funcionárias” do lar, o autarca explica que tentou um processo de repatriação do corpo para a Moldávia, sem qualquer custo para a família, tendo-se até disponibilizado para acompanhar o corpo. Contudo, “a família não quis, a operação abortou e nós respeitámos”, recorda.
Câmara garante que família não terá custos José Calixto garante que foi assegurado todo o processo logístico das cerimónias fúnebres e que cumpriu a sua palavra relativamente às despesas do funeral, uma vez que "no apoio administrativo dado pela Proteção Civil Municipal foi assegurado que o subsídio a pagar brevemente pela segurança social à família será superior ao faturado pela agência funerária". De acordo com Calixto, todas as despesas não cobertas pela segurança social, como a campa, foram custeadas pela Fundação.
Quanto à reunião municipal, José Calixto refere que de facto disse que os pagamentos tinham sido feitos – mas pela família. “Eu disse que o funeral já estava pago porque tinha sido pago pela família” e "que todos os documentos necessários à família já lhes tinham sido entregues pela agência funerária". O autarca, que se mostrou surpreendido com as acusações, rejeita que tenha havido uma ”falha de comunicação”, assegurando que tudo foi tratado com total “transparência”. E sublinha: “Em momento algum foi dito à família que as despesas do funeral seriam asseguradas pela Câmara Municipal. O que foi dito à família foi exatamente o seguinte: ‘Deverá ser a família a ser faturada pelas despesas do funeral, despesas essas que serão reembolsadas a 100% pela Segurança Social. Tudo o que não for comparticipado pela Segurança Social será liquidado pela Fundação. A família não terá quaisquer custos com o funeral’”. A pessoa responsável pelo apoio à família enlutada foi dando esclarecimentos diários sobre o ponto da situação em relação à organização das cerimónias fúnebres, assim como no suprir de algumas necessidades. “Tudo o que até aqui foi apresentado poderá ser comprovado pelas entidades envolvidas, como pela troca de mensagens e e-mail entre os diversos intervenientes”, assegura o presidente da Câmara, destacando que a autarquia fez tudo “para apoiar a família durante este período tão difícil para todos”. “E tudo continuaremos a fazer se nos deixarem”, acrescenta.
Depois de a fatura do funeral ser publicada pela família nas redes sociais, a FMIVPS emitiu um comunicado referente ao apoio prestado à família da funcionária e às questões levantadas relativamente ao funeral. Ao i, Cornelia Cojocaru destaca que sabe que a “Câmara não tem obrigação de fazer estes pagamentos”, mas critica ter sido a fundação a emitir um comunicado a esclarecer o assunto, quando os contactos foram sempre entre a família e representantes da Câmara. “O meu primo está revoltado, não por ter de pagar aquela importância, mas porque prometeram e não cumpriram. Depois de tudo isto, ligaram-me a dizer que eu percebi mal na altura, que a Câmara não paga nada. Podiam ter avisado que não ia ser pago. Eu sei que nós temos alguma dificuldade na barreira linguística mas percebi muito bem o que me foi dito”, alega. E acrescenta:“O Adrien não quer o dinheiro deles, está apenas revoltado com a situação (…) isto não é uma situação relacionada com política, não temos nada contra o presidente, só queremos que seja feita justiça, pela Mila e por todos os idosos que perderam a vida”.
Mila estava preocupada com o que passava no lar Cornelia revela que Mila expressava em casa a preocupação com o que se estava a passar no lar. O primeiro caso do surto viria a ser confirmado pelas autoridades de saúde no dia 18 de junho, mas antes disso já havia muitos utentes com sintomas.
“Na semana antes de dia 18, os utentes já estavam com febre. A Mila contava que davam Ben-u-Ron para a febre baixar. Nunca testavam, a direção dizia que não se passava mais nada, que era só uma constipação e ninguém pôs em causa a possibilidade de começar logo a testar e evitar esta desgraça”, conta. “Nunca separaram quem tinha sintomas de quem não tinha. As pessoas com febre eram levadas para o quarto e quando a febre passava voltavam a juntar-se com os utentes saudáveis. A Mila revoltava-se e preocupava-se muito com isso. Começou a ficar muito desconfiada e a sentir que algo não estava bem”.
Mas as preocupações de Mila não se prendiam apenas com os sintomas que começavam a surgir; diziam também respeito à falta de material. “Eles não tinham material de proteção. Ela queixava-se ao marido que estava a usar a mesma máscara há dois dias e às vezes ela própria chegava a comprar máscaras no Lidl para ir trabalhar. Não havia viseiras, havia funcionários a trabalhar sem máscara. Não estavam muito preparados, nem plano de contingência tinham preparado”, refere.
Mila foi sempre trabalhar, mesmo com sintomas, até ao dia 16 de junho, quando não conseguiu mais. Nos dias 17 e 18, os sintomas pioraram. Foi aí que lhe fizeram o teste à covid-19. Deu positivo.
Depois disso, Mila continuou a queixar-se da saúde. A médica que a acompanhava pelo telefone dizia que era “normal” e que “tinha de esperar”. No dia 23 foi levada para o Hospital do Espírito Santo, em Évora. No dia 25 foi colocada em coma induzido. Viria a morrer no dia 1 de julho. “Já era tarde quando a Mila foi levada para o hospital”, refere Cornelia. “O marido ligava a pedir informações, só diziam que ela estava estável e na verdade estava a piorar de dia para dia. A Mila morreu sozinha”, lamenta Cornelia. Cornelia reitera que o primo “só quer justiça pela mulher, pelos filhos, pelos idosos”, por toda a “negligência da fundação”.
Uma auditoria da Ordem dos Médicos concluiu que o lar da FMIVPS não cumpriu com as normas da Direção-Geral da Saúde para evitar a propagação do novo coronavírus. O DIAP de Évora abriu entretanto um inquérito ao caso. Mas a FMIVPS garante ter feito “tudo o que estava ao seu alcance” para “salvar vidas”, naquela que é uma “crise de saúde pública” que assumiu “contornos dramáticos”.
Sobre a alegada falta de material, José Calixto remeteu uma resposta para os serviços da fundação, mas esta não chegou até ao fecho desta edição.
“Há pessoas que ajudaram por obrigação” Após a morte de Mila, a mãe de um colega de escola de um dos seus três filhos decidiu criar uma angariação de fundos para ajudar a família, que acabou por também ficar infetada com o novo coronavírus.
Cornelia deixa ainda mais um recado: “Nós não pedimos nada. Agora vemos que há pessoas que ajudaram por obrigação. Quem estiver arrependido, o Adrien está disposto a devolver o dinheiro todo. Quando ajudamos não precisamos de apontar o dedo a dizer eu ajudei, eu dei. O Adrien sente-se discriminado. Só quer justiça”, explica. Cornelia destaca ainda que a família é “honesta” e que Mila era uma pessoa “culta” e “educada” que na Moldávia trabalhava como professora primária e que veio para Portugal à procura de uma vida melhor. “Nunca falharam com ninguém e não merecem ser tratados desta maneira”, remata.