Nos dias de hoje, a cremação é um dos rituais funerários em franca ascensão, mas esta é uma prática mais do que milenar. Já se sabia que as cremações já aconteciam na Idade da Pedra – foram encontrados alguns indícios arqueológicos desta prática, durante este período, na Irlanda e no Reino Unido –, mas uma descoberta arqueológica no Médio Oriente veio agora provar que, durante o Neolítico, os povos também queimavam os seus mortos. Restos dos ossos que pertenceram a um jovem adulto – não foi possível determinar o sexo, visto que a maioria dos fragmentos estavam calcinados – foram encontrados dentro de uma pira funerária no lugar arqueológico de Beisamoun (vale do Jordão, no norte de Israel). Terão sido queimados há cerca de 7 mil anos a.C., ou seja, há nove mil anos, tratando-se do achado mais antigo do género descoberto no Médio Oriente. As conclusões da investigação, liderada por Fanny Bocquentin, do Centro Nacional Francês de Pesquisa Científica (CNRS na sigla em francês), foram publicadas na semana passada na revista científica Plos One. Para lá do centro de investigação francês, também o Ministério dos Negócios Estrangeiros de França e a Autoridade de Antiguidades de Israel apoiaram o processo.
Segundo a equipa multidisciplinar que estudou a descoberta, que remonta a 2016, os fragmentos foram incinerados na pira onde foram agora descobertos a mais de 500 graus. No local, para lá dos 355 fragmentos ósseos, foram ainda encontrados vestígios microscópicos de plantas, que os investigadores acreditam terão servido como para atear e manter o fogo, o que corrobora a intencionalidade do processo. “O tratamento funerário envolveu a cremação in situ, dentro de uma pira, de um indivíduo adulto, jovem, que anteriormente tinha sobrevivido a uma lesão feita com um projétil de sílex [uma rocha sedimentar silicatada]”, precisou a investigadora principal, citada pela Phys.org, afirmando que não terá sido o ferimento a causa da morte do indivíduo.
Para lá da antiguidade, o achado é importante porque traduz o “complexo processo de neolitização” do Médio Oriente. As diferentes comunidades tinham as suas próprias formas de lidar com os mortos e, dentro de cada povoado, os ritos funerários também podiam divergir consoante o indivíduo a sepultar. “Assim, várias sequências operacionais na prática de sepultamento coexistiram”, diz o estudo. Entre essas práticas contam-se a desmembração – que podia incluir diversas partes do esqueleto –, a manipulação do próprio esqueleto, a encenação do corpo e até a mumificação temporária, precisam os investigadores, que passaram nove anos a estudar o local de Beisamoun. Estas velhas tradições entraram em declínio e a cremação ganhou um peso maior nas sociedades. “Esta é uma redefinição do lugar dos mortos na aldeia e na sociedade”, notou Fanny Bocquentin.
A juntar aos indícios de que esta cremação terá sido o método escolhido como ritual funerário para este jovem – e não simplesmente como meio de se livrarem de partes de um corpo ou o resultado de um incêndio não controlado – está o facto de o cadáver, batizado pelos investigadores de Locus 338, ter sido incinerado inteiro, recorrendo-se, como já referido, a materiais que funcionassem como “combustível”.
O corpo, adianta o comunicado, foi colocado dentro da pira com os joelhos fletidos, e todos estes factos contribuem para a tese de que estamos perante a mais antiga cremação descoberta no Médio Oriente. “O revestimento do fosso de lama queimada, o preenchimento do fosso, bem como o peso total do osso, a representação do elemento esquelético, as alterações relacionadas com a temperatura evidentes nos ossos, juntamente com o seu posicionamento espacial dentro do fosso, apoiam a interpretação da cremação como tendo sido de um cadáver completo e fresco, em vez de ossos secos isolados. Apesar disso, não podemos descartar totalmente a possibilidade de o cadáver ter sido cremado após um período durante o qual foi desidratado”, esclarece o estudo.
Brevíssima História da cremação
Com o avançar dos tempos, a cremação tornou-se um rito funerário cada vez mais comum. Os antigos gregos e romanos já cremavam os seus mortos. Num antigo cemitério em Ostia Antica, perto de Roma, uma descoberta arqueológica de 2014 revelou que, entre a mesma família, alguns mortos foram cremados enquanto outros foram inumados, ou seja, sepultados, o que sugere que os antigos romanos puderam escolher o último destino dos seus corpos. Este cemitério “atesta o livre-arbítrio que as pessoas tinham do seu próprio corpo, uma liberdade que as pessoas deixaram de ter na era cristã, quando o sepultamento se tornou a norma”, disse, na altura, Paola Germoni, diretora do complexo arqueológico, citada pela AFP.
Na Europa, esta forma de tratar os cadáveres passou então a ser considerada imoral e, por evocar o passado pagão, chegou a ser proibida pela Igreja Católica. No séc. xix, com o crescimento imparável das cidades, várias vozes – como o secretário prussiano da Saúde Johann-Peter Trusen ou o médico legista Rudolf Virchow, diz-nos um artigo da Deutsche Welle – começaram a pedir o levantamento da proibição. Em 1878, após uma invenção de Friedrich Siemens, foi inaugurado na cidade de Gotha o primeiro crematório “moderno”. O corpo do engenheiro Karl-Heinrich Stier, natural da cidade, foi o primeiro a ser cremado, a 10 de dezembro daquele ano. Estava assim inaugurado o costume contemporâneo de optar pela cremação, que tem conquistado, desde então, cada vez mais adeptos. Em 2015, nos EUA, o número de cremações já superava o das inumações e, em Portugal, também se verifica esta tendência. Em Lisboa, a taxa de cremação era, em 2018, de 53%, segundo dados da Associação Nacional de Empresas Lutuosas (ANEL), e, no resto do país, também tem aumentado nos últimos 12 anos. E para satisfazer a procura tem subido também o número de crematórios no país: a última inauguração de uma infraestrutura deste género deu-se há três semanas, no Entroncamento.