Quem é o dono da internet?


A escalada da guerra entre os EUA e a China atingiu uma nova etapa: Trump proibiu a aplicação TikTok e esta questiona nos tribunais dos EUA a legalidade da proibição.


A internet, omnipresente e indispensável ao ponto de não podermos estar no mundo sem ela, não terá dono? Será um daqueles casos em que nem Mestre Gil conseguiria separar o “Todo o mundo” a tem do “Ninguém” é dono dela? Terá integrado a categoria dos bens públicos, cujo livre acesso é garantido por qualquer Estado? Não será bem assim. Nos dias de hoje, quando os governantes se vêem em apertos, a primeira coisa que fazem é suprimir a internet. Seja por alegadas boas razões (evitar que supostos terroristas possam detonar engenhos explosivos ou comunicar entre si) seja por péssimas razões (evitar que a população comunique e se organize para protestar, como acontece esta semana pela Bielorrússia). Nos Estados mais preocupados com o controlo social e com a preservação da saudinha dos governantes, a internet é directamente comandada pelos poderes públicos. A República Popular da China construiu uma firewall à escala continental, controlada pelo Governo, e na internet chinesa só entra o que o Governo quer. Não há por lá Google ou Facebook (o que, visto da minha janela, não é necessariamente mau). A Coreia do Norte também conseguiu estar longe da internet em geral e de quase tudo o que tenha acontecido nos últimos 50 anos. Vladimir Putin mandou construir uma internet específica para a Mãe Rússia que permitiria “desligar” o acesso ao mundo exterior. E, claro, o botão está nas suas mãos. 

O controlo directo da internet era, até ao dia de hoje, um atributo de Estados em que a democracia, o multipartidarismo, a liberdade de expressão e um número crescente de direitos fundamentais estão ausentes. Esta semana ficámos a saber que Trump também quer ligar e desligar a internet. Ou as aplicações que vivem da ligação à internet, máxime o TikTok que, oh ignomínia!, recolhe dados pessoais relativos aos utilizadores e aos seus hábitos e preferências. Pequeno detalhe: a aplicação TikTok é a primeira com grandeza planetária que não é propriedade de empresas com sede nos EUA. Solução? Uma empresa dos EUA compra a TikTok e os dados pessoais recolhidos deixam de estar ao dispor do Governo chinês. A TikTok também parece ter uma solução em vista e anunciou a mudança do data center para a Irlanda, colocando-se assim sob jurisdição do direito da União Europeia.

Convém lembrar que a internet é apenas um protocolo técnico de comunicação com recurso a standards que permitem a diferentes computadores e redes comunicarem entre si. Não há, ao dia de hoje, um regime internacional convencionado entre Estados que regule a internet como “património comum da humanidade”. Tal não aconteceu porque os Estados quiseram manter intacta a soberania nesta matéria. A expressão mais simples da soberania estatal é a territorial. A lei aplicável à internet depende, em grande medida, da localização dos servidores depositários das comunicações e dos dados. Esta é abordagem do Regulamento Geral de Protecção de Dados da UE e, por essa razão, a TikTok está a fazer migrar o seu data center para a Irlanda, país muito sensível aos interesses das empresas tecnológicas que ganham dinheiro com a recolha, tratamento e venda de dados pessoais.
A internet, nascida dentro do porta-moedas do Departamento de Defesa dos EUA, vive de e para o mercado, sendo mínima a regulação. Na ausência de um regime jurídico internacional, de preferência gerido por uma organização especializada no âmbito da ONU, a internet é o cavalo de Tróia ideal para conquista do inimigo. A softwar será dura.
 
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990

Quem é o dono da internet?


A escalada da guerra entre os EUA e a China atingiu uma nova etapa: Trump proibiu a aplicação TikTok e esta questiona nos tribunais dos EUA a legalidade da proibição.


A internet, omnipresente e indispensável ao ponto de não podermos estar no mundo sem ela, não terá dono? Será um daqueles casos em que nem Mestre Gil conseguiria separar o “Todo o mundo” a tem do “Ninguém” é dono dela? Terá integrado a categoria dos bens públicos, cujo livre acesso é garantido por qualquer Estado? Não será bem assim. Nos dias de hoje, quando os governantes se vêem em apertos, a primeira coisa que fazem é suprimir a internet. Seja por alegadas boas razões (evitar que supostos terroristas possam detonar engenhos explosivos ou comunicar entre si) seja por péssimas razões (evitar que a população comunique e se organize para protestar, como acontece esta semana pela Bielorrússia). Nos Estados mais preocupados com o controlo social e com a preservação da saudinha dos governantes, a internet é directamente comandada pelos poderes públicos. A República Popular da China construiu uma firewall à escala continental, controlada pelo Governo, e na internet chinesa só entra o que o Governo quer. Não há por lá Google ou Facebook (o que, visto da minha janela, não é necessariamente mau). A Coreia do Norte também conseguiu estar longe da internet em geral e de quase tudo o que tenha acontecido nos últimos 50 anos. Vladimir Putin mandou construir uma internet específica para a Mãe Rússia que permitiria “desligar” o acesso ao mundo exterior. E, claro, o botão está nas suas mãos. 

O controlo directo da internet era, até ao dia de hoje, um atributo de Estados em que a democracia, o multipartidarismo, a liberdade de expressão e um número crescente de direitos fundamentais estão ausentes. Esta semana ficámos a saber que Trump também quer ligar e desligar a internet. Ou as aplicações que vivem da ligação à internet, máxime o TikTok que, oh ignomínia!, recolhe dados pessoais relativos aos utilizadores e aos seus hábitos e preferências. Pequeno detalhe: a aplicação TikTok é a primeira com grandeza planetária que não é propriedade de empresas com sede nos EUA. Solução? Uma empresa dos EUA compra a TikTok e os dados pessoais recolhidos deixam de estar ao dispor do Governo chinês. A TikTok também parece ter uma solução em vista e anunciou a mudança do data center para a Irlanda, colocando-se assim sob jurisdição do direito da União Europeia.

Convém lembrar que a internet é apenas um protocolo técnico de comunicação com recurso a standards que permitem a diferentes computadores e redes comunicarem entre si. Não há, ao dia de hoje, um regime internacional convencionado entre Estados que regule a internet como “património comum da humanidade”. Tal não aconteceu porque os Estados quiseram manter intacta a soberania nesta matéria. A expressão mais simples da soberania estatal é a territorial. A lei aplicável à internet depende, em grande medida, da localização dos servidores depositários das comunicações e dos dados. Esta é abordagem do Regulamento Geral de Protecção de Dados da UE e, por essa razão, a TikTok está a fazer migrar o seu data center para a Irlanda, país muito sensível aos interesses das empresas tecnológicas que ganham dinheiro com a recolha, tratamento e venda de dados pessoais.
A internet, nascida dentro do porta-moedas do Departamento de Defesa dos EUA, vive de e para o mercado, sendo mínima a regulação. Na ausência de um regime jurídico internacional, de preferência gerido por uma organização especializada no âmbito da ONU, a internet é o cavalo de Tróia ideal para conquista do inimigo. A softwar será dura.
 
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990