A história reveste-se de várias incursões de quem assumiu o «politicamente correto» como um sentimento louvável, que tornava a linguagem menos ofensiva e humilhante para aqueles cujo sexo, raça, condição física ou circunstâncias os poderiam tornar particularmente vulneráveis a qualquer uso de palavras ditas “mais fortes” e cruas de sentimento.
Para não ir muito atrás no tempo e na história, já Bill Bryson, escritor norte-americano, em 1994 já insistia por escrito na pessoal simpatia desta origem de movimento, dito ser a favor da linguagem sem preconceitos. O princípio e a origem foram, com pouco benefício de dúvida, salutares e positivos na procura do bem comum e da liberdade individual.
Cumprimos esse pressuposto? Não.
Nos dias que correm, muito peso tem a linguagem. Não adianta pensarmos nas falhas que esta corrente social do «politicamente correto» apresentou no Movimento de Maio de 1968 em França, no assalto às universidades americanas em 1990 ou o que Marx, Rousseau, Trotsky ou outros pensadores evidenciaram, e distanciaram, este movimento teórico da prática aplicada na sociedade.
Hoje vivemos num universo em que a linguagem não é exclusivamente verbal. A linguagem é alvo de uma apertada atenção e vigilância que escolhe e define quais os seus limites. Com o objetivo claro de impedir o discurso «ofensivo», ou seja, aquele que é considerado inadequado aos dogmas de hoje, feito através da ofensa gratuita que muitas vezes ataca, para além das liberdades individuais, a História, Literatura, Cultura e as Artes como recentemente todos assistimos na forma de “mandar abaixo” várias personalidades que a história eternizou.
Sabemos que esta manipulação de linguagem define qualquer debate. Extravasando o «politicamente correto», e sem inteligência emocional, regra geral chegamos ao ponto de não ser possível qualquer debate.
No entanto, diga-se, contra as teses dos defensores do «politicamente correto», também, este exercício de descontrolo de linguagem e ação muitas vezes também serve apenas para evitar a salutar capacidade de argumentação de cada um. Serve, digamos, de “desculpa” para fugir ao debate. Serve para fugir à ausência de resposta. Serve para evitar chocar argumentos. Serve para os fracos estados de alma de quem nada tem a construir e ajuda muito quem fala meramente para destruir ideias.
Os mais capazes, em qualquer circunstância, aguentam o ataque ad hominem que surge, regra geral, a qualquer indício de discórdia de pensamento. Aí é que se sente a fibra do tribuno e a mente que cada um consagra como correta ou incerta no avolumar do esgrimir de argumentos. É este o “ponto de caramelo” que os estáveis gostam.
Há, neste capítulo de reflexão, uma certa ironia. Ironia por ver a intolerância exibida em nome do dito «respeito». Defende-se a pluralidade, mas posteriormente só se afirma a homogeneidade de forma aceite porque a diferença roça a intolerância de grupo. Exercem a irreverência que se apregoa como correto, mas apenas para privilegiar o conformismo. Acaba por se abordar a «liberdade» aplicando uma certa «censura». É irónico.
Vivemos dias em que, sem ir longe, assistimos à publicidade em torno de ameaças lamentáveis a três deputadas portuguesas à Assembleia da República. Teriam, segundo nota noticiosa, 48 horas para abandonarem o nosso Portugal. Não necessito de grande justificação para lamentar este ato que é, sabemos, uma exceção deste exemplo de violência na nossa sociedade portuguesa.
Mas, este caso, carimba a exceção os extremismos que assistimos e ouvimos. Do “Velho Continente” Europeu, à América e inclusive na Ásia. É importante referir que as políticas identitárias, que estão em torno da triste notícia de ontem, e as ditas causas fraturantes de há algum tempo, vieram substituir a luta de classes no combate que o Ocidente sempre viveu, de forma dogmática e não só.
Vivemos num conjunto de gerações incoerentes com a teórica aplicabilidade do «politicamente correto». Há contradições gritantes: Vemos feministas que ignoram o tratamento dispensado a mulheres em determinados lugares, reivindicações LGBT a defenderem culturas que legitimam a punição de homossexuais, movimentos anti-racismo a partilharem xenofobias seletivas e, o mais gravoso, eméritos democratas a dedicarem-se a abominar democracias disponíveis. É o 8 e o 80 da esquizofrenia em torno da linguagem.
Os extremismos, de ambas as ideologias de direita ou esquerda, proliferam em torno de ausência de linguagens de «politicamente correto». Porém, ao contrário do que se julga, o conteúdo deste movimento de linguagem é mesmo dependente de estados de alma da maioria. O conteúdo é parcialmente ou totalmente irrelevante, apenas é escolhido em função daquilo que os seus proponentes imaginam ou escolhem como causa ou origem de indignação alheia.
O «politicamente correto» não procura nesta sociedade a doutrinação e, em sentido inverso, inclina os oradores para os extremismos. Não é a subversão de valores que os conservadores falam.
Caso seja possível discutir o que for nesta matéria, o «politicamente correto» nesta sociedade é meramente um instrumento de subjugação ao dogmatismo, é contentar as pessoas a aderirem – a bem ou mal – ao extremismo da discussão, seja entre a disseminação da eutanásia, as touradas ou questões de género. Dependerá dos estados de alma, das crises do momento a nível global e, sobretudo, da estabilidade emocional de cada um.
Aos dias de hoje, porém, é o «politicamente correto» que mais responsável é pelas ameaças a deputadas portuguesas, à cultura mundial e às democracias globais.
Não soubemos seguir o rio da história e a origem do movimento de linguagem. Mas que não o violemos de forma tão gritante a cada caso de extremismo.
Carlos Gouveia Martins