Antologias. Uma história da poesia portuguesa se esta voltasse a ler-se

Antologias. Uma história da poesia portuguesa se esta voltasse a ler-se


Rosa Maria Martelo propõe uma antologia, com um percurso de 900 anos, em que os poemas se ligam, ora dando o braço, e embalando-se, ora morrendo com a cabeça encostada na lápide uns dos outros


Muitos julgaram que se defendiam livrando-se da crítica. E até do hábito de a ter como uma incerta consciência, num diálogo de si para esse outro a quem se presta contas, e que nos guarda de maiores vergonhas, se foram libertando. Está praticamente sumida essa voz cuja missão é importunar-nos, pondo em causa, honrando a velha linhagem dos grilos. E isso faz com que o crítico seja a mais estranha e inquietante das figuras simplesmente por levantar o sobrolho. Se a crítica foi descurada e sucessivamente abafada, agora já de pouco nos vale perceber se há alguns (mas quantos?) que se possam considerar isentos de alguma culpa, ainda que esta se fique por omissões. O importante é lembrar que em todo o leitor verdadeiro, e este nem precisa de ser tão voraz assim, acaba por se manifestar um certo impulso organizador, um programa, mesmo que acanhado, para ir sujeitando a alguma ordem as suas leituras, mapeando os territórios percorridos. Todo o leitor, por mais licença que conceda à sua matilha exploradora, por mais promíscua que seja a sua imaginação, tenderá a deixar algum rasto, nem que sejam só migalhas, nos corredores dessas bibliotecas íntimas que transporta na mente.

Em Portugal, por azar, se ainda se vai falando de literatura, deixando cair referências redondas, confiando que ninguém se dará ao trabalho de puxar o fio, ver se a coisa cede ou se aguenta, é a leitura que nos apresenta um índice cada vez mais subnutrido. Que história tem sido a sua nas últimas décadas? Que intimidades trocam entre si já não os textos mas os seus ecos? Juntando as nossas cabeças, é difícil perceber em que juízos fomos capazes de encontrar um mínimo acordo. E é assim que os escritores dão por si como uma seita, um bando de supersticiosos, investindo o seu tempo num trabalho mal pago (se for pago de todo), rezando a uma hipotética linha de leitores silenciosos, que raramente dão sinal de presença ou sequer comunicam entre si. Face a isto, se compararmos com a nossa vizinha Espanha, onde tantos dos actos mais decisivos do ponto de vista crítico foram ensaiados através de propostas antológicas, sobretudo no que toca à poesia – género que, dada a sua portabilidade, se presta como nenhum outro a variações no que toca a arranjos e montagens – a nossa realidade surge como bastante deprimida. Entre nós, qualquer levantamento das edições feitas neste século apontará não só uma timidez nas propostas de rearranjo e de leitura crítica como, da parte das editoras, um desinteresse crescente por essas formas de questionamento e punção no panorama poético, o qual, não se podendo dizer que se vá mostrando pujante nos nossos dias, não deixa de arrastar os pés com a impertinência dos condenados que se recusam a acatar a sentença, e isto face a um meio cultural que lhe é cada vez mais adverso.

Assim, o anúncio da públicação de uma antologia com o crivo de Rosa Maria Martelo, professora associada da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, não deixa de ser motivo de algum entusiasmo. A proposta da sua “Antologia Dialogante de Poesia Portuguesa” – que chegará às livrarias este mês com selo da Assírio & Alvim (e que não nos chegou ainda às mãos nem tivemos oportunidade de explorar, senão nessa amostra de umas poucas páginas servida com vista a aguçar o apetite) – passa por criar um bairro ressoante, com gritos de janela a janela, serenatas, pedrinhas ameaçando partir vidros, numa vizinhança física entre poemas que estão vinculados entre si, segundo um princípio de escrita que a académica foi buscar a Fiama Hasse Pais Brandão, o de “epigrafia”. Como esclarece a autora, esta reporta-se “à noção de epígrafe, palavra que etimologicamente significa ‘escrito por cima de’ e que designava inscrições comemorativas de pessoas ou acontecimentos, no âmbito das quais podemos considerar também os epitáfios: palavras de louvor e celebração dos mortos, inscritas nos túmulos, escritas em lápides”. No texto de apresentação, a académica adianta que, “para Fiama, a literatura é epigráfica no sentido em que progride sobre os textos do passado, celebrando-os ao mesmo tempo que os subverte, assimila e transforma.” E remata: “A escrita é, assim, entendida como homenagem (lápide) e transformação, apropriação (versão).”

Nos 100 poemas selecionados, Rosa Maria Martelo cruza 44 autores, num “extenso diálogo com 900 anos”, privilegiando sobremaneira os autores contemporâneos. Não sendo de esperar, à partida, deste gesto antológico um vigor mais imodesto, uma intervenção crítica que faça repensar o sentido do trânsito nestas estradas secundárias, rompendo com a pacatez diluente que caracteriza os nossos dias, não deixa de ser um sinal de presença, quando cada vez mais os poetas têm motivos para acreditar que os leitores se acomodaram de tal modo ao silêncio que andam a fazer de mortos. O que não deixa de ser um desafio, para uma geração que assim se vê obrigada a avançar sem subsídios de qualquer espécie, a não ser esses de inserção, que as antologias burocráticas ou de conveniência promovem, a par de ficções como as viagens em comitiva ao estrangeiro, levando, no atrelado, programas de apoio à tradução para engordar as nossas mais inocentes ilusões quanto à viabilidade de carreiras intentadas no beletrismo, os quais, na verdade, servem apenas para aumentar o números dos que nos ignoram. Tudo por estarem fundados na hipótese de haver um “lá fora” capaz de suprir o vazio remansoso da vida com que temos de nos contentar “cá dentro”. E mais do que puxar do fio as contas de que Rosa Maria Martelo se serve para nos apresentar este colar, do poema de Adília Lopes, típico daquele tom das baldrocas que lhe conhecemos, e que vem aninhar-se de forma pouco convincente ao primeiro, de Martin Codax (“Ondas do mar de Vigo,/ se vistes meu amigo?”), tiramos mais proveito focando-nos na epígrafe de que Adília se serve, desses dois versos com mais acinte em que Vitorino Nemésio dá conta de como “Já portuguesmente/ Rimam ‘noite’ e ‘boîte’”.