Há quase cinco mil anos, o todo-poderoso Djoser, faraó do Alto e do Baixo Egito, primeiro dos construtores de pirâmides, teve de se vergar sob o peso da fome quando as tão esperadas cheias do Nilo não vieram durante sete anos. “Estava de luto no meu trono, todo o palácio sofria”, lamentou-se o faraó, segundo descreve a Estela da Fome, gravada em granito na ilha de Sehel, entre Elefantina e Assuão, traduzida por Miriam Lichtheim no livro Ancient Egyptian Literature (1980). “Escasso era todo o tipo de comida, todos os homens roubavam os seus irmãos”, continuava. “Os cortesãos estavam necessitados; os templos, fechados. Todos estavam angustiados”. Desesperado, Djoser consultou o sacerdote Imhotep, que lhe explicou que é o deus Khnum quem controla a origem do Nilo, “segura o trinco da porta na sua mão, abre os portões como deseja”. Khnum lá apareceu em sonhos ao faraó, disposto a deixar de novo o grande rio correr – mediante o restauro do seu templo e a entrega das receitas fiscais da região de Elefantina aos seus sacerdotes.
Esta velha história deve soar a pesadelo aos ouvidos do autoritário Presidente egípcio, Abdel Fattah el-Sisi, alcunhado de “Faraó”, furioso com a construção da Grande Represa do Renascimento Etíope (GERD, em inglês), entre a nascente do Nilo Azul, na montanhosa Etiópia, e as planícies do Sudão e do Egito. Cairo teme que, à semelhança de Khnum, Adis Abeba possa abrir e fechar as portas do Nilo a seu bel-prazer, sobretudo em tempo de secas ou cheias. Já o Governo etíope, liderado pelo primeiro-ministro Abiy Ahmed, salienta que a gigantesca barragem hidroelétrica, a maior de África, com mais de 18 vezes a capacidade do Alqueva, abastecerá 65 milhões de pessoas sem acesso a eletricidade.
As negociações recomeçaram esta segunda-feira, mas nenhuma parte se mostra disposta a ceder: no fundo, mais do que a água em si, discute-se poder. Por um lado, o Egito está consciente tanto do seu peso geopolítico como do dos seus aliados – não só controla o canal do Suez, uma das principais artérias comerciais, como Trump chegou a referir-se a Sisi como o seu “ditador favorito” – e quer que a Etiópia se comprometa agora com um volume certo de água, mesmo em caso de seca ou cheias, remetendo futuras disputas para arbitragem internacional. A Etiópia, com a força de quem está a montante do rio, optou por mudar a realidade no terreno. Ou seja, antes de haver acordo, aproveitou esta época das chuvas, entre junho e julho, para encher o reservatório com 4,9 mil milhões de m3 de água, para fúria dos egípcios, uns 90% dos quais vivem à beira do Nilo.
“O rio tornou-se um lago”, tweetou o ministro dos Negócios Estrangeiros etíope, Gedu Andargachew, o mês passado, acrescentando provocadoramente: “O Nilo é nosso”. Enquanto isso, no Egito, as redes sociais e a imprensa – fortemente controlada por Sisi – encheram-se de apelos a que a força aérea egípcia simplesmente bombardeasse a barragem.
Já o Sudão, onde o Nilo Azul se junta ao Nilo Branco, nos arredores de Cartum, foi apanhado no meio da disputa. Por um lado, trata-se de um país que foi politicamente dependente do Egito nas últimas décadas. Por outro, poderia beneficiar do excedente de eletricidade produzida pela GERD, bem como do seu controlo das cheias do Nilo, que ainda há duas semanas causaram pelo menos cinco mortos e destruíram milhares de casas, com perda de gado e culturas. O incidente causou o colapso de uma das pequenas e frágeis barragens sudanesas, a barragem de Bout, que deixou umas 600 famílias isoladas, cercadas pela água e debaixo de chuva pesada durante horas, segundo a Associated Press.
Guerras por água? A escalada nas tensões trouxe consigo os velhos receios de uma nova era de guerra, causada pela disputa de água, à medida que aceleram as alterações climáticas. De facto, o Governo egípcio avisou que está “pronto a defender com todos os meios disponíveis os interesses do povo egípcio”, enquanto Abiy Ahmed, galardoado com um Prémio Nobel da Paz o ano passado, prometia perante o Parlamento etíope: “Se houver necessidade de partir para a guerra, conseguimos ter milhões de pessoas prontas”. Ressalvando: “Mas isso não é no melhor interesse de todos nós”.
Certamente que Sisi não tem mais vontade de entrar em guerra que Abiy. Apesar da aparente superioridade militar do Egito, os dois países não partilham fronteiras, o que limita as opções do Governo egípcio. Dificilmente Sisi embarcaria em tal aventura numa altura de pandemia, com a sua economia – tão dependente do turismo – a contrair-se a olhos vistos, quando já está prestes a intervir militarmente na lamacenta Guerra Civil da Líbia, mesmo ali ao lado, a favor do general Khalifa Haftar e contra o Governo sediado em Trípoli e apoiado pela Turquia. Curiosamente, a Turquia também tem uma presença forte na Etiópia: é o segundo maior investidor estrangeiro, ultrapassado apenas pela China, com um capital equivalente a mais de 2 mil milhões de euros, segundo a Anadolu.
Contudo, o Governo etíope, apesar de se mostrar duro à mesa de negociações, está tudo menos sólido. Afinal, a Etiópia é um país com enormes fraturas entre etnias, em que a mais numerosa, os oromo, há muito se queixam de discriminação – a subida ao poder de Abiy, um antigo dirigente das secretas de origem oromo, foi vista como uma maneira de acalmar essas tensões. Mas não está a funcionar: só nas últimas semanas, pelo menos dez mil pessoas tiveram de fugir das suas casas devido a brutais motins étnicos e religiosos.
Talvez esse seja um dos grandes motivos para a dureza de Abiy nas negociações. A Grande Represa do Renascimento Etíope é dos poucos assuntos que unem a vasta maioria dos etíopes e os fazem esquecer as diferenças em prol de uma “vitória nacional”, como descreveu Biruk Negafh ao Economist. Foi um dos milhões de etíopes que contribuíram para a construção da barragem, fosse através da compra de títulos ou sendo pressionado a ceder um salário para o projeto, que passou a ser propriedade direta de todos.
Nem os escândalos de corrupção que envolveram a empresa responsável pela GERD, a Metec, que teve mais de 60 dos seus dirigentes detidos, ou a misteriosa morte do seu principal engenheiro, Simegnew Bekele, em 2018, declarada suicídio, fizeram os etíopes esquecer o seu objetivo. “Erradicar o nosso inimigo comum, a pobreza”, nas palavras de Bekele. Há grandes dúvidas de que, caso ceda quanto ao projeto, Abiy tenha qualquer hipótese de ganhar as eleições legislativas do próximo ano.