A decisão do Tribunal Constitucional sobre as quarentenas nos Açores


É preocupante que o Tribunal Constitucional não seja chamado a apreciar a constitucionalidade das medidas do Governo de combate à pandemia.


Através do seu acórdão n.o 424/2020, do passado dia 31 de Julho, o Tribunal Constitucional decidiu o recurso obrigatório interposto pelo Ministério Público relativamente à decisão do Tribunal Judicial de Ponta Delgada, que concedeu a providência de habeas corpus interposta por um cidadão obrigado a permanecer por 14 dias num quarto de hotel em Ponta Delgada, devolvendo esse cidadão à liberdade. O Tribunal Constitucional confirmou essa decisão, julgando inconstitucionais as normas contidas nos pontos 1 a 4 e 7 da resolução do Conselho do Governo n.o 77/2020 e nos pontos 3, alínea e), e 11 da resolução do Conselho do Governo n.o 123/2020, nos termos das quais se impõe o confinamento obrigatório, por 14 dias, dos passageiros que aterrem na Região Autónoma dos Açores, por violação do disposto na alínea b) do n.o 1 do art.o 165.o, por referência ao art.o 27.o da Constituição da República Portuguesa.
A decisão foi imediatamente comentada pelos presidentes dos governos regionais dos Açores e da Madeira, criticando-a e defendendo que o quadro legal deveria ser aperfeiçoado. Estranhamente, no entanto, a decisão não mereceu qualquer comentário do Presidente da República, do Governo e dos grupos parlamentares, quando é manifesto que da mesma resulta claramente a desconformidade com a Constituição de todas as restrições aos direitos fundamentais que foram decretadas pelo Governo após o fim do estado de emergência.

Efectivamente, nesse acórdão n.o 424/2020, o Tribunal Constitucional refere expressamente que a previsão do art.o 165.o, n.o 1, b) da Constituição, segundo a qual é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre direitos, liberdades e garantias, salvo autorização ao Governo, inclui “toda a intervenção legislativa no âmbito dos direitos, liberdades e garantias”, sendo este “um entendimento pacificamente consolidado na jurisprudência constitucional”. E, a este propósito, o Tribunal Constitucional cita o seu próprio acórdão n.o 362/2011, segundo o qual “todo o regime dos direitos, liberdades e garantias está englobado na reserva relativa de competência da Assembleia da República (art.o 165.o, n.o 1, al. b) da CRP). Nestes termos, todas as normas disciplinadoras de um qualquer direito desta natureza carecem de uma autorização prévia da Assembleia da República. Esta exigência ganha particular relevância quando estão em causa compressões ou condicionamentos a um direito”.

Ora, desde que terminou o estado de emergência, no passado dia 2 de Maio, que o Governo tem vindo a aprovar, sem qualquer autorização do Parlamento, sucessivas resoluções do Conselho de Ministros que estabelecem igualmente medidas restritivas dos direitos, liberdades e garantias, a pretexto dos estados de calamidade, contingência e alerta, previstos na Lei de Bases da Protecção Civil. Tal situação já foi por mim qualificada, em crónica publicada neste jornal, no passado dia 5 de Maio, como constituindo um verdadeiro “estado de calamidade constitucional”. Este acórdão do Tribunal Constitucional vem dar razão ao que então sustentei, sendo manifesto que dele resulta que o Governo necessita de autorização do Parlamento para aprovar quaisquer medidas restritivas dos direitos, liberdades e garantias, não podendo, por isso, as mesmas resultar de resolução do Conselho de Ministros.

É, por isso, preocupante que o Tribunal Constitucional não seja chamado a apreciar a constitucionalidade das medidas do Governo de combate à pandemia, especialmente nos casos em que estas restringem gravemente os direitos, liberdades e garantias. E é igualmente preocupante que o Parlamento não se importe de não estarem a ser respeitadas as suas competências constitucionais neste domínio. Quando, numa época tão grave para a vida da República, a preocupação do principal partido da oposição é a de não fazer debates para deixar trabalhar o primeiro-ministro, fica-se com a sincera dúvida se o regime constitucional português possui o necessário sistema de freios e contrapesos, que é essencial a qualquer regime democrático.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção  das regras do acordo ortográfico de 1990

A decisão do Tribunal Constitucional sobre as quarentenas nos Açores


É preocupante que o Tribunal Constitucional não seja chamado a apreciar a constitucionalidade das medidas do Governo de combate à pandemia.


Através do seu acórdão n.o 424/2020, do passado dia 31 de Julho, o Tribunal Constitucional decidiu o recurso obrigatório interposto pelo Ministério Público relativamente à decisão do Tribunal Judicial de Ponta Delgada, que concedeu a providência de habeas corpus interposta por um cidadão obrigado a permanecer por 14 dias num quarto de hotel em Ponta Delgada, devolvendo esse cidadão à liberdade. O Tribunal Constitucional confirmou essa decisão, julgando inconstitucionais as normas contidas nos pontos 1 a 4 e 7 da resolução do Conselho do Governo n.o 77/2020 e nos pontos 3, alínea e), e 11 da resolução do Conselho do Governo n.o 123/2020, nos termos das quais se impõe o confinamento obrigatório, por 14 dias, dos passageiros que aterrem na Região Autónoma dos Açores, por violação do disposto na alínea b) do n.o 1 do art.o 165.o, por referência ao art.o 27.o da Constituição da República Portuguesa.
A decisão foi imediatamente comentada pelos presidentes dos governos regionais dos Açores e da Madeira, criticando-a e defendendo que o quadro legal deveria ser aperfeiçoado. Estranhamente, no entanto, a decisão não mereceu qualquer comentário do Presidente da República, do Governo e dos grupos parlamentares, quando é manifesto que da mesma resulta claramente a desconformidade com a Constituição de todas as restrições aos direitos fundamentais que foram decretadas pelo Governo após o fim do estado de emergência.

Efectivamente, nesse acórdão n.o 424/2020, o Tribunal Constitucional refere expressamente que a previsão do art.o 165.o, n.o 1, b) da Constituição, segundo a qual é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre direitos, liberdades e garantias, salvo autorização ao Governo, inclui “toda a intervenção legislativa no âmbito dos direitos, liberdades e garantias”, sendo este “um entendimento pacificamente consolidado na jurisprudência constitucional”. E, a este propósito, o Tribunal Constitucional cita o seu próprio acórdão n.o 362/2011, segundo o qual “todo o regime dos direitos, liberdades e garantias está englobado na reserva relativa de competência da Assembleia da República (art.o 165.o, n.o 1, al. b) da CRP). Nestes termos, todas as normas disciplinadoras de um qualquer direito desta natureza carecem de uma autorização prévia da Assembleia da República. Esta exigência ganha particular relevância quando estão em causa compressões ou condicionamentos a um direito”.

Ora, desde que terminou o estado de emergência, no passado dia 2 de Maio, que o Governo tem vindo a aprovar, sem qualquer autorização do Parlamento, sucessivas resoluções do Conselho de Ministros que estabelecem igualmente medidas restritivas dos direitos, liberdades e garantias, a pretexto dos estados de calamidade, contingência e alerta, previstos na Lei de Bases da Protecção Civil. Tal situação já foi por mim qualificada, em crónica publicada neste jornal, no passado dia 5 de Maio, como constituindo um verdadeiro “estado de calamidade constitucional”. Este acórdão do Tribunal Constitucional vem dar razão ao que então sustentei, sendo manifesto que dele resulta que o Governo necessita de autorização do Parlamento para aprovar quaisquer medidas restritivas dos direitos, liberdades e garantias, não podendo, por isso, as mesmas resultar de resolução do Conselho de Ministros.

É, por isso, preocupante que o Tribunal Constitucional não seja chamado a apreciar a constitucionalidade das medidas do Governo de combate à pandemia, especialmente nos casos em que estas restringem gravemente os direitos, liberdades e garantias. E é igualmente preocupante que o Parlamento não se importe de não estarem a ser respeitadas as suas competências constitucionais neste domínio. Quando, numa época tão grave para a vida da República, a preocupação do principal partido da oposição é a de não fazer debates para deixar trabalhar o primeiro-ministro, fica-se com a sincera dúvida se o regime constitucional português possui o necessário sistema de freios e contrapesos, que é essencial a qualquer regime democrático.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção  das regras do acordo ortográfico de 1990