1. Nem em/com Portugal se tinha dado uma revolução científica antes daquela (propriamente dita), reconhecida oficialmente, em Galileu e Newton, no século XVII – como pretenderiam alguns historiadores nacionais -, nem, muito menos, Portugal pode ser esquecido ou ignorado, como o é pela generalidade da historiografia anglo-americana, no que aos importantíssimos impulsos à ciência – que a expansão marítima nacional alcançou, nos séculos XV e XVI -, diz respeito. É este entendimento – in medio virtus, recusando sub e sobrevalorização do empreendimento luso no que ao aduzir à ciência importa – que leva Onésimo Teotónio de Almeida a rever o estado da arte – que específico contributo português no que à ciência concerne, durante o seu período de Expansão, e respectiva valoração no quadro global do acquis de sucessos científicos e de mentalidades/forma mentis então prevalecentes? – em um conjunto de ensaios recolhidos em “O Século dos Prodígios. A Ciência no Portugal da Expansão” (Quetzal, 2018), multipremiado livro (Prémio Gulbenkian, História da Presença de Portugal no Mundo (atribuído pela Academia Portuguesa de História); Prémio Mariano Gago (atribuído pela Sociedade Portuguesa de Autores); Prémio D. Diniz, da Fundação Casa de Mateus, Prémio John dos Passos, atribuído pela Secretaria Regional da Cultura), do Professor na Universidade de Brown.
2. Durante a Alta Idade Média, o enfoque na natureza e no conhecimento empírico desta adquire certa preeminência nos (melhores) espíritos. Ora, um dos momentos/expoentes dessa viragem para a noção da experiência como “madre de todas as cousas” teve lugar em Portugal, durante o Período da Expansão. A experiência, em realidade, levada, já, em linha de conta por Aristóteles e Galeno é, agora, revalorizada. Todavia, não pode falar-se, ainda, em revolução científica.
3. Expressão crescentemente polémica no nosso espaço público, com ganhos de grande visibilidade em anos recentes – embora a sua controversão recue bem mais no tempo -, a palavra “Descobrimentos” é usada por Onésimo Teotónio Almeida, neste contexto. Sabendo, claro, que os “descobrimentos” são-no do ponto de vista europeu – a Europa Ocidental descobriu que havia mais mundos para além do seu -, ainda que, evidentemente, os povos há muito existissem e se encontrassem em latitudes a que só então (sécs.XV/ XVI) os portugueses – os europeus – conseguiam aceder, e contactos com outras zonas culturais – prévios, por parte de tais povos – podiam estabelecer-se; uso, ademais, do vocábulo “descobrimentos”, porque, sem as “descobertas” científicas a Expansão portuguesa não poderia ter ocorrido – e, além do mais, “descobertas”, pois, porque “nunca fui dado a purismos linguísticos (puritanismos?) e não é com esta idade que vou começar a sê-lo”, p.29).
4. Frente a uma «pré-ruptura epistemológica» de que os Portugueses teriam sido parteiros, e que culminaria na revolução científica do século XVII – tese do historiador Barradas de Carvalho, o qual, bem como sua obra, não deixa de ser elogiada, na globalidade, por Onésimo Teotónio Almeida que, no entanto, lhe aponta a sobrevalorização e não correcta ponderação/interpretação dos êxitos portugueses no todo do então concebido/conhecido em termos internacionais -, opõe o Professor da Brown a noção de que esse tempo é descontínuo e recua muito mais no tempo e que, portanto, não se dão suficientes razões para se aceitar a ideia de estarmos perante uma “revolução em gestação”. Um exemplo muito claro: 300 anos antes de Duarte Pacheco Pereira, já Roger Bacon se tinha referido à experiência como critério de verdade, pelo que a importância de Duarte Pacheco Pereira fica confinada, neste específico item, ao caso português (p.41). Segundo Onésimo Teotónio Almeida, a história do conceito de “experiência” é vastíssima e começa, sem exagero, um milénio antes do que diz Barradas de Carvalho (p.45). Em Aristóteles, é certo, a “experiência” seria sinónimo de “acumulação de experiências”, enquanto em Duarte Pacheco Pereira (e no seu “Esmeraldo De Situ Orbis”, uma “obra notável, nunca mencionada em nenhum livro de história da ciência escrito por um autor não lusófono”, p.139) traduzir-se-á por “conhecimento que advém dos sentidos”. E, todavia, já Galeno chamava a atenção para a importância dos “experimentos”, sendo, pois, que Galeno e Aristóteles usam o mesmo método que (é utilizado por) Duarte Pacheco Pereira (p.49). É, ainda, para consumo interno, segundo Onésimo, a importância de Pacheco Pereira no uso (em maior quantidade) dos números árabes face aos romanos. Ineditismo, pois, só houve, no contexto português, dado que, efectivamente, a percentagem de algarismos árabes usada até ao século XVI, no nosso país, é pequena; a sua divulgação é devida a estrangeiros; os introdutores são homens ligados ao comércio e á navegação (p.53). Todavia, fora de Portugal, já há textos a utilizar apenas numeração árabe no século XII – e, aí por volta de 1400, estes encontram-se generalizados, em termos europeus, nomeadamente em tratados de ciência, astronomia.
5. Qual a participação dos portugueses no contexto universal das ciências, no século XVI?, eis, pois, a grande questão que se coloca e à qual, em definitivo, interessa responder. Onésimo Teotónio Almeida louva-se na síntese de Jaime Cortesão, elogiando também os trabalhos do historiador Joaquim Bensaúde (p.68). Os portugueses foram:
– criadores da ciência náutica;
– inventores do navio próprio para os Descobrimentos – a Caravela;
– adaptadores do astrolábio – instrumento que devemos aos árabes (p.156) – aos usos da navegação, nomeadamente para determinar a posição das Descobertas;
– forjadores de novas estradas nos oceanos;
– estabelecedores do roteiro de todos os mares e de todos os ramos da rosa dos ventos.
6. Se Garcia da Orta fixou os fundamentos da medicina tropical e Pedro Nunes aperfeiçoou a tradição da navegação científica, da astronomia e da matemática, porém, considera Oliveira Marques, estes cientistas eram poucos e o seu experimentalismo nunca ultrapassou a fase empírica sistemática. Sendo que, no dizer de W.G.L. Randles o peso dos modelos bíblico aristotélico, da dinâmica dos graves de Lactâncio ou da geografia de Ptolomeu, ou seja, os “utensílios mentais” não permitem àqueles renascentistas uma completa renúncia ao modelo clássico e aceitação total do modelo empírico. De aí não se poder falar em «pré-ruptura epistemológica». Não há uma atitude completamente inovadora; há uma extensão, um alargamento de horizontes, um crescimento de dados que, mais tarde, sim, possibilitarão a rutura (p.70):
– o contributo português dá-se ao nível da observação, da constatação empírica;
– excepto na astronomia, cartografia e geografia, não se vai além da descrição causal. Não se produz uma elaboração sistemática ou pelo menos compendiada;
– realizam-se poucos experimentos. Buscam-se soluções apenas para as dificuldades (a necessidade do Know how chega a impulsionar o to know that na gesta portuguesa; o desejo de saber subjaz a uma preocupação utilitarista, p.242);
– raramente surgem generalizações nomológicas, porque os dados empíricos raramente são coligidos meticulosamente ou consequentemente classificados;
– tão-pouco surge uma elaboração teórica que tome os dados empíricos e as leis, ou quase-leis, com base neles formuladas.
Eis a súmula de Onésimo Teotónio Almeida, que refere, adicionalmente, que na Biologia, na Botânica e na Etnografia o avanço português foi muito precário. Numa palavra, a revolução científica do século XVII terá recebido em Portugal um “prévio e significativo impuslo”(p.84), mesmo que não constitua, ainda, uma exata ruptura epistemológica com o modelo clássico que herda e de que participa. Neste revisitar do legado que homens como Garcia da Orta, Pedro Nunes, Duarte Pacheco Pereira, João de Castro, Fernando Oliveira deixaram (compulsando-se as suas obras, como com afinco fizeram Luís de Albuquerque, Francisco Contente Domingues ou Henrique Leitão) terá, contudo, de reconhecer-se nestes (p.87):
– a rejeição dos antigos [nomeadamente, da Antiguidade Clássica] per se [por exemplo, Garcia da Orta foi ao ponto de escrever: “aprende-se mais com os portugueses num só dia, do que em cem anos com os Romanos”, p.106);
– aceitação da experiência como critério de verdade;
– desenvolvimento de uma perspectiva e metodologia científicas;
– interface de teoria e prática entre eruditos, artesãos e marinheiros;
– consciência generalizada da importância dos novos conhecimentos adquiridos pelos navegadores portugueses.
A necessidade de tradução das nossas melhores obras na área da História, quanto ao contributo português para o impulso da – de uma nova – ciência, é imperativo, considera o ensaísta, assim responsabilizando-nos, também, pela escassa divulgação internacional de tais feitos (são necessários “editores em língua inglesa” para divulgar a ciência portuguesa, p.191).
De entre os não muito numerosos historiadores internacionais, como se vem de dizer, que atentaram, devidamente, no papel dos Portugueses no avanço e impulso para (o que veio a ser) a revolução científica do século XVII, Onésimo Teotónio Almeida destaca Hooykaas, o holandês que entende que uma atitude científica como a de D. João de Castro é raro de observar antes deste em qualquer parte da Europa – que, não obstante, segue a mundividência aristotélica, com o seu modelo organicista face ao modelo mecanicista de Newton e Galileu (p.117); trata-se de uma “figura emblemática, representando um estado intermédio entre o antigo e o moderno, nas ciências naturais”(p.117) -, e observa como única a relação entre pensadores e homens de acção, no nosso país, sendo certo que o nosso contributo não foi o de avanços teóricos (p.114).
Tomando este acervo de sublinhados, dir-se-ia que se impõe, de novo, um balanço sobre o que se passou em Portugal enquanto espelho do que se passa com a ciência (de um modo geral) (p.118):
– a ciência avança por impulsos;
– há uma sobreposição de paradigmas em conflito;
– criações paralelas e redescobertas por desconhecimento de criações prévias;
– desenvolvimento desigual das ciências individualmente consideradas.
7. A mentalidade destes homens portugueses de quinhentos irá repercutir-se inclusivamente em homens da Literatura. Teotónio de Almeida aprofunda a intuição de António José Saraiva quanto à modernidade, e a especificidade nesse âmbito, do canto V de “Os Lusíadas”, contraria J.S.Silva Dias – que repreendera o poeta por este não estar informado acerca da mudança representada pela consciência da importância de se conhecer o mundo empiricamente -, e conclui que apenas de Pedro Nunes não revela, Luís Vaz de Camões, conhecimento. Ele que se encontrará com Garcia da Orta na Índia (p.220). Um dos ensaios, este sobre a modernidade de Camões plasmada no Canto V d’Os Lusíadas que convidam, e de que maneira, à leitura dos prodígios de Onésimo.
Ao seu jeito, despede-nos com um texto seu, inserto no Diário de Notícias, de 1989, onde compendiava uma série de prémios, atribuídos em Portugal (quantos adstritos à Literatura, quantos às Ciências) que mostravam o nosso pendor para valorizar mais a literatura do que as ciências (embora hoje, porventura, dificilmente as estatísticas fossem semelhantes, o que também ilustra um caminho percorrido) e afiança-nos, sobre o nosso descuido com o “empírico”, que quase sempre – antes dele, a anteceder tal vocábulo – antepomos um advérbio de modo: meramente. Meramente empírico.