Citava José Gomes Ferreira para se dizer “cheia de saudades do futuro” num artigo de opinião publicado pelo semanário SOL ainda em abril passado. “Não contem comigo para ficar quietinha e calada”, escrevia. Sentimento que a assaltara nos últimos meses, meses de pandemia, de confinamento, de paralisação de um país e com ele de um setor cujas fragilidades estruturais ficaram mais do que nunca e irremediavelmente expostas. Meses em que levantou a sua voz contra a ausência de uma verdadeira política para a Cultura, contra o subfinanciamento do setor e do trabalho de produção artística, meses em que apelou à criação de um plano de emergência para assegurar que haveria para as artes de palco ainda um futuro.
“Conforme há um Serviço Nacional de Saúde, que é para curar o corpo, deveria haver um serviço nacional de cultura para curar, alimentar o espírito. E ajudam a pensar, que é uma coisa importante”, dizia há pouco mais de dois meses em entrevista a Bernardo Mendonça para o podcast “A Beleza das Pequenas Coisas”, do Expresso. “Neste momento estão a saltar cá para fora todas as fragilidades que ao longo dos anos este país tem escondido”. O jornalista perguntava-lhe como via um país que não tratasse bem os seus artistas. “Estou muito negativa, mas diria que está moribundo”. E depois falava sobre o que amava na vida: “O que eu amo é o teatro, amo demais, por isso sofro horrores. É uma paixão, é preciso muita teimosia para manter essa paixão viva”. Uma paixão que não morreria nunca? E ela respondia: “Vai morrer comigo”. Fernanda Lapa, atriz e encenadora com mais de meio século de carreira, fundadora e diretora da Escola de Mulheres, companhia de teatro que dirigia há 25 anos, morreu esta quinta-feira, aos 77 anos, em Cascais, onde estava hospitalizada.
Como “uma eterna apaixonada do teatro” a recordava na quinta-feira a Escola de Mulheres – Oficina de Teatro, que dirigia em conjunto com Marta Lapa, uma das suas três filhas. E nesse amor insistiu Fernanda Lapa ainda em março passado na mensagem do Dia Mundial do Teatro a convite da Sociedade Portuguesa de Autores: “Amar o teatro e o público não é um conceito abstrato; amar não pode ser uma palavra sem conteúdo e, tal como a palavra drama, contém o sentido de ação”, defendia. “Homens e mulheres de teatro têm o dever imperioso de lutar por um teatro digno do nosso país e por uma classe teatral dignificada”.
Nome incontornável do teatro e da cena artística portuguesa, Fernanda Lapa nasceu a 11 de maio de 1943 na Junqueira, em Lisboa, filha de Fernando Santos Lapa e de Maria Palmira Mamede de Pádua e irmã da também atriz São José Lapa. Depois de ter estudado no Colégio de Santa Maria de Belém, quando frequentava já o curso de História na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa passou a integrar o Teatro dos Alunos Universitários de Lisboa. Estava-se no ano de 1962. Logo no ano seguinte juntou-se à Casa da Comédia, entre nomes como Maria do Céu Guerra, Manuela de Freitas ou Norberto Barroca.
Foi aí que se estreou profissionalmente, em 1963 ainda, com “Deseja-se Mulher” (1928), de Almada Negreiros que, tendo feito questão de mostrar o seu desagrado para com a encenação de Fernando Amado, ofereceu à atriz um exemplar do livro, reeditado em 1959 com ilustrações de oito esboços de cena da autoria do próprio, com uma dedicatória em que lhe atribuía “20 valores” pela sua interpretação. “Recordo-me sobretudo dos ensaios e de uma cena em que o Almada comentava sempre: ‘Que máscara!’. De resto, a primeira vez que falei com ele, virou-se para mim e disse: ‘A menina podia ser dadaísta!’. E eu ia morrendo de susto. Não sabia o que era o dadaísmo, não sabia se estava a ser insultada”, recordava Fernanda Lapa numa entrevista concedida ao SOL em 2015. “Essa peça teve muitos elogios nos jornais, sobretudo para mim e para a Manuela de Freitas. De tal forma que ficámos convencidas que não tardava estávamos em Hollywood. Isto até, uns dias depois, passarmos, de saias travadinhas e saltos agulha, por uma tasca e uns gajos que estavam à porta virarem-se para nós e dizerem: ‘Ca gandas frascos!’, que era como se chamava às ‘meninas’. Tiraram-nos logo as pretensões”.
De Almada, acabou por se tornar amiga. “Fez o favor de se tornar muito meu amigo”, recordava em janeiro numa entrevista a Paulo Alves Guerra para a Antena 2. “Era casada já com a minha filha mais velha, íamos à quintinha deles e falávamos muito. Ele falava daquelas questões da numerologia, que para mim eram chinês”. Às tantas, entre conversas, ganhou coragem para lhe perguntar por que não tinha gostado da encenação. “E ele diz: ‘Porque aquele não é um teatro para ser declamado, aquilo é um teatro mais ligado ao cabaré e à revista’. Fiquei profundamente chocada com essa questão da revista, pensei ‘o que é que isto tem que ver com revista’ e não falei mais. Passados nove anos, já nos anos 70, estava na moda o café concerto e eu entretanto já tinha averiguado mais as questões do dadaísmo, das performances da altura, do modernismo e então achei que tinha percebido, pronto. Foi por isso que decidi fazer a minha primeira encenação”, daquele mesmo texto com que se estreara profissionalmente em 1963. Estava-se ainda na década de 1970 e Fernanda Lapa tornava-se numa das poucas mulheres encenadoras num país marcado pelo sistema patriarcal sobre o qual assentava também a política do regime do Estado Novo.
Formou-se pelo Instituto Superior de Serviço Social, em Lisboa, e por uma década trabalhou na Fundação Sain, prestando apoio a cegos em reabilitação. Foi aí que conheceu o médico e psicólogo António Martinho do Rosário, mais conhecido pelo seu pseudónimo literário: Bernardo Santareno. Foi de Fernanda Lapa que partiu todo o programa de comemorações do centenário do seu nascimento, que se assinala em novembro próximo. “Pensei que teria meia dúzia de instituições a acolher o projeto”, dizia na mesma entrevista à Antena 2. “Pois não, já vamos nas centenas”.
Juntou-se em 1978 ao Partido Comunista Português, que integrou até ao final da vida, embora admitisse em entrevista ao Observador em janeiro passado ser uma militante pouco interventiva. “As minhas escolhas é que me fizeram lá chegar”, explicava. “A perceção do mundo em que vivia, ter trabalhado muitos anos em reabilitação de cegos, com o Santareno, ter visto os estropiados que vinham da Guerra Colonial, ter participado nas greves académicas na Faculdade de Letras. Fui abrindo os olhos para o que me rodeava.”
No ano seguinte, rumou à Polónia, onde na Escola Superior de Encenação de Varsóvia se formou em encenação. Por lá fez vários estágios: no Teatro Laboratório de Grotowski, no Teatro Contemporâneo de Wroclaw e no Teatro Stary de Cracóvia.
Foi ainda docente universitária e diretora do conselho do Departamento de Artes Cénicas da Universidade de Évora, cargo que ocupou até agosto de 2012, altura em que se reformou. Admitiu em entrevistas recentes que era dessa reforma que vivia, que o apoio quadrianual da DGArtes para a Escola de Mulheres nunca chegou para lhe pagar um salário.
Foi apesar disso um dos seus grandes contributos para as artes de palco portuguesas a criação em 1995 da companhia que dirigiu até ao fim da vida. Fundou-a para abrir espaço para a produção e criação de teatro no feminino.
Trabalhou textos de Almada Negreiros, Jean Cocteau, Eurípides, Strindberg, Bernardo Santareno, deu a conhecer ao país através da Escola de Mulheres autoras como Caryl Churchill, Paula Vogel e Timberlake Wertenbaker. “Devemos-lhe todos, muito, e por isso hoje é dia de luto carregado, a força com que defendeu causas que não podiam ser só suas, coletivas, como a luta pela igualdade entre mulheres e homens na história do teatro em Portugal, e por isso criou a Escola de Mulheres e nos fez descobrir Caryl Churchill, ou íntimas, como a defesa do trabalho de quem a formou e de quem foi cúmplice e discípula, como Bernardo Santareno”, homenageava-a quinta-feira Tiago Bartolomeu Costa, seu antigo aluno de Estudos de Teatro na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde também lecionou, num texto que partilhou no Facebook. “Fernanda Lapa significava luta: pela dignidade, da vida e no teatro; significavas perseverança, porque defesa de valores e princípios; significava coragem, pela retidão e verdade; significava não apenas uma forma de vida e de fazer teatro, mas um modo de agir social, intelectual e emocionalmente”, continuou o também ex-jornalista, que recordava uma entrevista que fizera à atriz e encenadora em 2013, para o Público: “Disse-me: ‘É a consciência das coisas que faz as revoluções’. Usei a frase como título porque me pareceu resumi-la bem”.
O seu corpo estará em câmara ardente até às 18h desta sexta-feira na Escola de Mulheres, no Clube Estefânia, em Lisboa, e o seu corpo segue às 16h30 de sábado para o crematório do Centro Funerário de Cascais, em Alcabideche. Para a despedida, a família pede que não se levem flores. Num apelo lançado em comunicado, foi pedido a todos aqueles que à atriz e encenadora queiram prestar uma última homenagem que doem o valor que seria gasto em flores para a conta solidária criada pela Casa Conveniente em apoio à família de Bruno Candé, ator negro assassinado no mês passado por um antigo combatente da Guerra Colonial. Fernanda Lapa não teria querido diferente.
Não contem comigo para ficar caladinha
Só a minha reconhecida teimosia me faz levantar da cama de manhã com a convicção absoluta que nada, nem ninguém, me conseguirá fazer parar de trabalhar. Claro que estou, como dizia o poeta José Gomes Ferreira, cheia de “saudades do futuro” – o futuro com os meus colegas de Teatro, no nosso espaço de espectáculos, desbravando um texto, que já comecei a desbravar em casa, criando personagens a partir das propostas do autor e dos intérpretes e, já que o Teatro é, nas palavras de Bernardo Santareno, a mais carnal de todas as artes (também a dança, acrescento eu), repensando as relações possíveis entre os actores em palco e entre os actores e o público possível. Sei que nada será como dantes. Sei que muito do tecido teatral português não vai sobreviver a esta catástrofe que se abateu sobre toda a Humanidade. A situação das gentes das Artes de Espectáculo é devastadora: o desemprego, a imediata incapacidade de fazer face às despesas do dia a dia, a fome, o desespero, o sentimento de abandono e de desconfiança por parte da grande maioria dos trabalhadores de teatro, são a realidade actual e não vale a pena tentar tapar o Sol com a peneira. As medidas de apoio por parte do Ministério da Cultura são manifestamente insuficientes e quase ofensivas – apoios máximos, na ordem dos 400 euros mensais, aos artistas e técnicos, os chamados “intermitentes” que há longos anos lutam, com o estigma da sua precariedade, por um lugar digno a que têm direito, na construção de um Serviço Público de Cultura para Todos. Muitos deles, com a sua generosidade e para servirem um Público sem rosto, oferecem gratuitamente nas redes sociais, espectáculos, recitais, tudo enfim que lhes dê a hipótese de se sentirem vivos, criativos e amados. Mas não tenhamos dúvidas, essa é só uma memória apagada e tristonha do que é o Teatro e, nem as grandes e poucas Companhias de Teatro que vivem “desafogadamente” e possuem nos seus acervos gravações em vídeo de espectáculos que produziram no passado e os colocam on-line, podem afirmar que estão a oferecer verdadeiro Teatro ao Público. O futuro das Artes em Portugal e, especificamente, do Teatro está hipotecado. Com a experiência do passado próximo, estou consciente que muitas Companhias, Artistas e Técnicos serão sacrificados por falta de medidas a curto e médio prazo. Se não for criado, urgentemente, um Plano de Desenvolvimento Teatral com Futuro que preserve este património nacional inestimável, eu afirmo que será cometido um crime contra a Cultura.
Pertenço à chamada geração da “peste grisalha” que muitos gostariam que estivesse quietinha e calada, mas não contem comigo para isso!
Texto originalmente publicado na edição do semanário SOL de 18 de abril de 2020, como parte da série Conta-me
Como Vai Ser