“Os meus discos não são abstratos, são sobre locais e pessoas em concreto”, explica ao i David Bruno, o produtor e músico de Gaia que no sábado passado lançou o seu terceiro disco a solo, Raiashopping. “Até levei lá o Marco [Duarte, guitarrista e colaborador neste projeto musical] para ele perceber como era. As pessoas têm de conhecer os sítios para poderem falar sobre eles”.
Depois de ter explorado a zona de Gaia, primeiro com os Conjunto Corona, em que David é produtor, em Último Tango em Mafamude (2018) e Miramar Confidencial (2019), os seus álbuns em nome próprio, aventurou-se por um universo mais terra a terra e romântico, com fortes inspirações de músicos como Toy ou Marante, onde musicava as observações que fazia sobre os comportamentos que os seus conterrâneos adotavam em locais como o Restaurante Carpa, em Gaia.
Agora era altura de fazer algo diferente. Estava na hora de mudar de ares e ir beber inspirações a um local que se situa a cerca de 230 quilómetros de Vila Nova de Gaia. Estamos a falar de Figueira de Castelo Rodrigo, vila portuguesa que pertence ao distrito da Guarda, onde nasceram os pais de David e que serve de inspiração para Raiashopping.
“Nos meus discos, só falo de sítios de que tenho propriedade”, explicou. “Já tinha falado e explorado Gaia e não me surgiam ideias para fazer coisas novas. Por isso, lembrei-me de fazer um trabalho sobre a aldeia onde cresci”, nota. “Fazia sentido, para não estar sempre a falar das mesmas coisas. Também não gosto de me repetir. Fizemos o álbum muito depressa, tinha mil e uma ideias para fazer e escrever sobre a terra dos meus avós”. David não só tinha mil e uma ideias como ainda mais histórias para partilhar.
Lobisomens na aldeia, motosserras e tostas mistas na festa da espuma
O produtor de Gaia admite que este é, provavelmente, o seu disco “que tem músicas mais sérias, não é só macacada do início ao fim”. Raiashopping, título que procura fazer a ponte entre Gaia (shopping) e a raia histórica, fronteira entre Portugal e Espanha, é uma ode nostálgica ao local onde David passava as férias durante a infância e a adolescência.
Em Café Central – ilustrada com teclados que podiam ter sido retirados das bandas sonoras dos maiores blockbusters dos anos 1980 e com gentis acordes da guitarra de Marco Duarte (que durante os solos tem sempre liberdade para soltar uma certa loucura) – recorda o café do seu avô, onde trabalhou e aprendeu muito sobre aquilo a que chama “cultura de café”.
“Há um episódio de que nunca me vou esquecer que envolve um homem que estava perdido de bêbado e não parava de chatear a cabeça ao meu avô”, conta ao i. “Primeiro queria comprar-lhe o café, depois queria comprar a casa, depois queria comprar a casa, o café e uma casa para o meu avô ir morar, era o típico chato”, recorda, enquanto nos relembra que na altura tinha 12 anos. “Entretanto, ele cansou-se, pegou no jipe, arrancou em direção à aldeia dele e espetou-se contra um muro logo à saída do café. Saiu do jipe, foi à mala, tirou um pé-de-cabra, chegou à parte da frente do jipe e disse: ‘Não é para aí, é para ali’. E partiu o jipe todo à frente do café”, conta entre risos. “Isto mostra o espírito desta zona: as pessoas são muito boas, mas muito selvagens”.
Ainda em Café Central há tempo de recordar a avó Maria, que contava “histórias de bruxaria [no seu sotaque beirão] e lobisomens” que viviam na aldeia e que corriam as sete (número mítico) igrejas da vila antes do nascer do sol. As avós de David também são homenageadas na bastante nostálgica Flan Chino Mandarim, marca do pudim que David comia sempre que as visitava.
“Nunca tive um estilo próprio. Em David Bruno, a música sustenta aquilo que estou a dizer”, explica. “Mas neste aconteceu isso ainda mais porque eu já tinha as letras e os temas. Não importa o estilo dos samples, eles têm de alimentar o espírito das letras e dos poemas”.
Talvez onde seja mais óbvio que o instrumental está a sustentar aquilo que está a dizer é em Festa da Espuma, com uma batida contagiante em homenagem a Hélder, Rei do Kuduro (apesar de o sample, confessa, ser de uma música japonesa), um dos autores que mais soavam nas colunas das festas que costumava frequentar nesta zona do interior do país.
Mais contagiante que a batida, só mesmo a letra – “É a Festa da Espuma, tu nem convides/ ‘Tou equipado com lycra da Cofides/ Topo o teu body Lacatoni no escuro/ Dança comigo, Hélder, o Rei do Kuduro” (que possivelmente virá a tornar-se a letra mais repetida do estranho verão de 2020) -, baseada nas experiencias de David (Marco Duarte revelou ao i que nunca foi a uma festa da espuma) na discoteca Auritex, o clímax das festas de verão da vila.
“Estes instrumentais transcrevem o kitsch da zona e dos imigrantes. Foi fácil imprimir esse sentimento nestes temas, apenas precisava de me lembrar do mês de agosto e da discoteca Auritex”, explica, enquanto diz que já viu “um gajo a ameaçar outro com uma motosserra na festa da espuma”, mas também outras cenas igualmente chocantes, apesar de menos violentas: “Quando havia comes e bebes dentro da discoteca e o pessoal ia para a espuma enquanto comia tostas mistas ou cachorros com espuma até à barriga”.
Os vídeos caseiros e o álbum de família
À semelhança dos discos anteriores, também este trabalho chegará ao mercado de uma forma original. O Último Tango em Mafamude foi vendido em formato de disco single, Miramar Confidencial como um DVD pirata e Raiashopping vai ser vendido como se tratasse de um álbum de fotografias da Kodak. “Tem a ver com o sentimento nostálgico do disco”, esclarece David.
Algo que também acompanha a narrativa dos discos anteriores é o facto de este também existir em formato de videoálbum, com filmagens caseiras onde podemos ver um jovem David Bruno, além de como era Figueira de Castelo Rodrigo e os seus habitantes durante a sua infância – imagens que mostram “a experiência do que é viver neste local”, acredita.
Para além das filmagens do pai, também tem excertos das filmagens caseiras de um senhor que assume o papel de “repórter da aldeia” e capta o hilariante momento em que um jovem diz ao “repórter” que quer ser camionista. “Estes momentos são importantes porque ajudam a situar o ouvinte no disco”, especialmente nas músicas Praliné ou Doucement, uma homenagem a Vem Devagar Emigrante, de Graciano Saga. Os temas falam sobre os emigrantes e a fronteira entre Portugal e Espanha, onde podemos ver um homem com uma mão cheia de passaportes a ser abordado por um agente confuso ou um emigrante, com um garrafão de cinco litros na mão, que grita com um agente da GNR no meio da estrada.
Todos estes ingredientes servem para ilustrar um tempo mais simples da vida de David Bruno em que ouvia “Dire Straits a passarem no meu rádio” e a maior preocupação era encontrar “garrafões vazios para encher na fonte”, como podemos ouvir em Flan Chino Mandarim.
O disco é um excelente escape para os tempos conturbados que estamos a viver com a pandemia que, apesar de não ter permitido que o duo fizesse mais do que uma mão-cheia de concertos de apresentação para Miramar Confidencial, acabou por permitir este lançamento tão especial.
“Nunca lançaria um álbum em agosto, em circunstâncias normais, porque todas as pessoas estão em festivais, mas os astros alinharam-se e permitiram que eu lançasse este álbum na altura em que ele devia ter sido lançado: em agosto, mês dos emigrantes e das festas de aldeia”.
Esperemos agora, com o desconfinamento e o regresso dos concertos, que os astros voltem a alinhar-se e David e Marco regressem aos palcos, de preferência com um concerto de apresentação numa festa da espuma.