Josep Maria Esquirol. Resistir, olhando o sol de frente

Josep Maria Esquirol. Resistir, olhando o sol de frente


Beber o cálice até ao fim. Em “Resistência íntima” (Prémio Nacional de Ensaio 2016, em Espanha, acabado de publicar entre nós, pelas edições70), Josep Maria Esquirol concebe a experiência do frémito face ao nada como constitutiva do humano e apresenta a casa, a valorização do quotidiano simples e lhano e a coragem e força do…


1. Uma experiência de que o humano não pode, não consegue mesmo que queira, afastar-se, nem deve deixar de, com todas as suas melhores forças, contemplar/enfrentar: a da intempérie, do vazio, do nada, do abismo, do poço, da ameaça da desintegração. Em todos os tempos e lugares, co-natural ao humano, o cutelo impende sobre a vértebra: “a existência humana é sempre pós-traumática” (mesmo que biograficamente precedida pelo saudoso tempo da ingenuidade, pp.151-152). 

2. Uma das piores provas a que o humano é sujeito é à (possível) desagregação do ser. Das forças entrópicas, o niilismo é a mais relevante. Nada: negação de toda a coisa, de todo o acontecimento, de tudo, total ausência (p.22). Ne-hilum: sem fio (sem relação, sem nexo). O processo niilista consistiria em ir perdendo o fio (vital) (p.23). O niilismo não é, radicalmente, uma teoria, mas uma experiência, apenas compreendida se vivenciada: “o niilismo (…) é uma experiência”(p.24) e “se a sua ácida poção não tiver circulado, ainda que em doses homeopáticas, pelas próprias veias, permanecerá um mistério”(p.24); “há que experimentá-lo para entendê-lo e, quando isso ocorre, não podemos deixar de sentir arrepios”(pp.24-25); “a experiência da queda e do abismo, com o corpo trémulo, a boca entreaberta e um trago involuntário do nada está na origem” (p.25).

3. Própria da situação humana, não do domínio da tese mas bem mais da experiência, seguindo o pensamento de Josep Maria Esquirol, a ameaça da desintegração e, nesta, o particular contacto com o niilismo – sendo este, sobretudo, concebido como processo (de niilização) – pôde, contudo, ser tematizado, evidenciando-se a lógica do niilismo enquanto processo histórico (Heidegger chamou-lhe a “história do Ocidente”, p.33). Foi o que fez Nietzsche, considerando duas etapas niilistas (pelas quais a civilização passara): a aniquilação (desvalorização) da vida em consequência dos valores que se lhe sobrepõem (Bem, Deus, Razão, História) e, em um segundo momento/estádio, a desvalorização desses valores superiores, em especial o que se chamou de «morte de Deus» (ainda que, façamos aqui esta nota, Deus, Ele mesmo, por natureza e definição, não possa morrer; mas um determinado conceito/imagem Dele –  O que está para lá de qualquer conceito – pode tornar-se datado): “todos os nomes do sentido, que submetia a vida, desvalorizaram-se até desaparecer e se produzir o vazio e a incredulidade generalizada. [Em um estádio niilista] Não há meta no porvir (não há um sentido a alcançar no fim da história)” (p.27). Assim, “o niilismo consiste na sensação de que nada tem valor, em darmo-nos conta de que não podemos interpretar o sentido da nossa existência recorrendo aos conceitos de fim, unidade e verdade”. 

4. Advém a noite (da alma), sim (“a noite negra da alma é uma experiência de verdade, uma experiência que transforma definitivamente quem a vive, de tal forma que não voltará a ser o que era”, p.33), mas com uma aluvião de complexidade já (como veremos adiante). 

Noite que, lato sensu, pode, pois, ser entendida em (pelo menos) três acepções : a) a noite do repouso, do descanso e do sono, em que se recuperam energias vitais e a força; b) noite da reflexão, da vigília voluntária, na qual o espírito pode contemplar o universo lá fora ou o seu interior; c) noite de vigília involuntária, submissão às forças obscuras da existência, que não permitem o repouso. Ambivalência da experiência da noite: o dia é trânsito e caducidade, a noite é permanência; o dia esforço, a noite descanso; a «noite escura» de João da Cruz – trevas, alma abandonada, mas também união amorosa, fonte, flores, escadaria secreta; a «noite escura» de Santa Teresa: a noite é meio para a comunhão extraordinária e incompreensível (pp.31-32). A densidade da noite permite descer às profundezas do «si-mesmo» – a noite do mundo e a noite negra da alma, a que experienciou a equivalência entre o ser e o nada. 

5. E que poderemos, então, opor às forças de desintegração e corrosão? Com efeito, em “sociedades do bem-estar, o esforço da subsistência deu lugar a outro tipo de esforço: o da luta para não nos desagregarmos” (p.41), pelo que a demanda por esses vínculos que nos mantenham à tona revela-se crucial. O que poderemos opor àquelas forças corrosivas é, numa palavra (-conceito), Resistência íntima. Existir é, em parte, resistir. A resistência expressa um movimento da existência. O resistente é o que não quer perder-se de si mesmo – para poder servir os outros. Íntima quer dizer próxima. Central, nuclear. De aí que “quem vai para o deserto não é um desertor” (p.13): só quem é capaz de solidão – e há deserto(s) na cidade – pode estar mesmo com os outros (amigo, companheiro, filho, articulações do «si mesmo» como memória, sentimento, esperança…). Importa, aliás, compreender que para haver relação tem de existir dois termos e um vínculo, isto é, tem de existir diferença e modo de relacionar o diferente. Se no mundo tecnificado a monocromia pode destacar o «sentimento oceânico» de pertença ou comunhão/inserção ou, mesmo, fusão num Todo – mas, porventura, com(o) nódulos/terminais sem existência ou individualidade/singularidade; ou seja, não há relação se tudo é igual, homogéneo, indiferente -, o homem verdadeiramente religado seria o que experienciar(i)a a necessidade de amparo (e, outrossim, de o assumir, de dar corpo, também, ao amparo). Há, neste modo de resistência, a afirmação do sujeito e da ideia de responsabilidade. Em vez das banais promessas – e, já agora, exigências – de felicidade (própria e alheia), a autorrealização entendida como conquista e sucesso, esta captada, diversamente, pelos resistentes, enquanto amparo – e discernimento a partir do amparo. O resistente “acredita em algo e, por isso mesmo, não é niilista” (p.17).

6. A experiência da proximidade – e a direcção contrária à intimidade será a da dificuldade, dureza, desgaste, dispersão, exposição hostil – pode expressar-se, segundo Josep Maria Esquirol, Professor de Filosofia da Universidade de Barcelona, onde dirige o grupo de investigação Aporia, autor de numerosos estudos de filosofia contemporânea e de vários livros neste âmbito, em “A resistência Íntima” (Prémio Nacional de Ensaio, em Espanha, em 2016; obra agora publicada, entre nós, pelas Edições70), em um exercício sapiencial, de Ética (por uma ética da resistência), de antropologia filosófica (o humano considerado a partir do eixo da vulnerabilidade) e Metafísica (em especial, a metafísica da junção, do ajuntamento, presente no último capítulo da obra; dimensão esta, porventura, hoje menos habitual), com um primoroso cuidado literário, sob três modalidades em especial, a saber: i) o gesto da casa; ii) a quotidianidade; iii) a reflexão/pensar/filosofia. 

A (boa) casa é porto de abrigo, recolhimento, estância, concórdia, repouso, paragem, consolo, refúgio da intempérie – não apenas atmosférica, mas incluindo o gelo metafísico -, lareira, elementos primordiais, conversa próxima. Num universo de proporções inimagináveis, a casa salva (p.39). A casa é condição para haver mundo. Em uma interpretação metafísica da casa, Esquirol assinala que “da casa que temos, a dádiva não reside em nela permanecer desde o princípio, nem em sair para não voltar, mas em voltar. Ficarmos nela é impossível, a não ser que se pague o preço do auto-engano (…) Pelo contrário, sair para não regressar não é um engano, mas sim uma perda. O êxtase sem retorno tem unicamente duas possibilidades: a paulatina desaparição orgiástica ou a enfermidade e o suicídio” (p.42). Em chave “crente”, chamemos-lhe assim (simplificando a expressão, recorrendo ao uso mais habitual daquele termo), talvez este passo pudesse ser lido da seguinte forma: a visio beatifica não será imediata/terrena; ficar por construções infantis do sentido, e erguer um mundo à volta destas, que traga todas as certezas e seguranças e nos poupe à escuridão e às apalpadelas mesmo que calcorreando pegadas de uma luz que nos interpela e que seguimos, não seria mais do que enganarmo-nos a nós mesmos; mas recusar o colo – o amparo é o lugar da permanência, dirá o filósofo ainda – não é um engano, mas uma perda (não é que os ateus não tenham razão; não têm é paciência – para escutar a Realidade da realidade, dirá Tomás Halík, em “Paciência com Deus”; quer dizer, paciência para escutar esse – a presença desse – sentido que salva; absurdo deriva, etimologicamente, de “surdo de ouvido”, p.81); ficar em êxtase sem um sentido que salva só é possível pelo recurso a uma diversão e ruído que ocultem a dor e que neguem aquela carência (desaparição orgiástica); sem aquele sentido, e sem a estratégia ruidosa que, aliás, não deixa de dissolver/corroer, advém enfermidade e suicídio. No que pode ser lido como implícito diálogo com Nietzsche (e também com filosofias orientais), o autor regista: “a filosofia da casa não é a do eterno retorno, mas a do retorno (…) Sabemos, além disso, do último retorno, ainda que só o saibamos através de um pressentimento. A vida é uma parábola dos retornos”(p.42). 

Casa (e “o outro é a casa primordial”, p.47), terra para trabalhar, família, companhia, pomar, intimidade: lugares que se oferecem como concentrados de resistência (mesmo que não se evapore “completamente a névoa do niilismo (…) já que faz parte da situação humana”, p.37).

A quotidianidade não é sinónimo da repetição do mesmo, mas uma síntese entre o conhecido e o novo: dias de trabalho e feriados, esforço e descanso, pés no chão e voo. O impulso romântico assinala o excepcional como único que conta, e eis-nos em vanglória, sucesso mediático, pequeno poder hierárquico (como medida de todas as coisas). Todavia, resistir, como vimos, é, nesta perspectiva, assumir, sem evasão – que será sempre evasão de nós mesmos -, a própria existência, com o seu simples e lhano, o sublime no mundo: “a apropriação da quotidianidade significa também a revelação do originário, a revelação que se dá ao partilhar o pão. Para aqueles que voltam para casa e se sentam ao redor da mesa torna-se  presente o mais sublime. O que não tem nome, o mais originário do originário, revela-se no momento da repetição comensal” (p.59); o “fundo da existência não está para lá da proximidade, mas sim nela, no seu seio” (p.58). Que José Tolentino de Mendonça, um autor capaz de vislumbrar a – e alertar para a – “mística do instante”, o kairos no cronos, seja o autor do Prefácio à edição portuguesa de “A resistência íntima” – um livro-machado, um livro que morde, diz-nos a partir da terminologia de Kafka – não parece, de todo, neste passo por antonomásia (de imediato o evocamos), uma mera coincidência.  

Josep Maria Esquirol faz o elogio de uma certa plenitude da vida corrente, da sabedoria do gesto (e das palavras aparentemente simples mas que dizem muito, até porque muito maturadas ao longo dos séculos, quanto ao quero que tu sejas, quero-te bem, como as populares “Deus te guarde”, “Saúde”  – do latim Salve, equivalente ao Salam árabe, ou ao Shalom judeu -, “Cuida-te”; de resto, “no deserto, a palavra é uma tenda”, p.112), do esforço de ganhar o pão – não menor, diz-nos o Catedrático de Filosofia, do que o da criação artística -, das tarefas diárias do padeiro, do mecânico, do médico cuja relevância não pode menosprezar-se face à da criação cultural, do ora et labora da regra monástica por nela integrar o cultivo do jardim, dos alimentos, por permitir cheirar a terra. Se nos afastámos da vida foi por medo da morte (p.65) e “o senso comum sabe que a principal das verdades acontece a cada dia”. No dia-a-dia há conteúdos que satisfazem por si próprios – sentido já presente na vida (“a comida, o cansaço do trabalho e o momento do descanso (…) fazem igualmente parte da resposta ao abismo”, p.67). 

Outra das respostas à queda é a filosofia (“filosofia e suicídio são expressões da mesma experiência”, p.25; “o espírito mais profundo da filosofia assemelha-se ao rogo pelo facto de que em ambos os casos faltam respostas (…) Existe, por isso, uma filosofia que é (como) uma prece e muitas preces que são, por sua vez, expressão da mais genuína inquietude filosófica”, p.137). É que pensar – e “pensar não é fácil nem habitual” (p.87) – é uma forma de nos aproximarmos do mais original (p.67). Reflectir, flectir sobre o «si mesmo», é já cuidar de si (p.83) – para cuidar dos outros. Enfrentarmos o “nosso próprio vazio, com a sua miséria, e não contornar esta experiência é a melhor maneira de manter este «si mesmo» e evitar que se perca” (p.30), percebendo, até, que “olhar o nada de frente intensifica a experiência da vida e o retorno à proximidade” (p.85). Com efeito, “o relâmpago da consciência é condenação e carga mas, ao mesmo tempo, é já uma espécie de domínio sobre a situação” (p.95).

Ascesis: exercício sobre o si mesmo do qual se sai transformado. Pensar, filosofar é, pois, uma experiência deveras – o pensar situa-nos num caminho de transformação pessoal: não apenas no fim, mas já a meio caminho, não se é quem se era (p.86) -, sendo que “experiência implica sempre uma metanoia, uma mudança na maneira de nos posicionarmos no mundo e de sentir a vida” (p.85). A filosofia é cuidar da alma, porque o exercício do pensamento transforma (p.87). Evocação de Epicteto: «Homem, se és alguém, vai passear sozinho, conversa contigo mesmo, e não te escondas num coro» (p.87). E o diálogo interior não é já diálogo com o outro? Pensar é ainda resistir ao império da actualidade, para o que se requer memória e imaginação. Resistência no inactual significa situar-se à margem, na lateralidade, e aí proteger a diferença: “se domina a representação (…) [há que] manter no inactual o vínculo com aquilo que não pode ser representado” (p.106). Que a homogeneidade da actualidade não nos sufoque, que o seu dogmatismo seja revisto e criticado (p.107). Há vida para lá da actualidade. Aliás, só há vida para lá da actualidade. Vida, liberdade e pensamento existem lateralmente (p.108).

7. Não há apenas uma consequência individual, nem, tão pouco, privada da resistência íntima; ela repercute-se politicamente: “a política superficial deve-se muitas vezes a uma insuficiente ou nula resistência íntima e aproveita-se da debilidade da casa. A proliferação da auto-ajuda é paralela à proliferação da política cada vez mais banal”(p.49). Neste contexto, “urge repensar a comunidade. Mas como fazê-lo? Para lá ou para cá da unidimensionalidade neoliberal, da abstracção comunista e das limitações do comunitarismo?” (p.49).

O filósofo reclama para o seu ofício um escrutínio mais denso da realidade do que o alcançado por outras disciplinas – “a missão da Filosofia é evitar o reducionismo. Ela interroga num registo mais fundamental do que aquele em que se movem diversas especialidades científicas -”, podendo, aliás, esta perspectiva, a de um olhar mais cuidado e decisivo da Filosofia (“quem, diante de um rosto de uma criança, vê uma superfície com dois buracos?”, p.149), estribar-se nessa constatação primordial, a de que “a existência empírica não concebe a diferença” (mas o pensamento pode tacteá-la; como que parafraseando Jean Luc Marion, Esquirol diz-nos que a filosofia existe para pensar o impensável, para pensar o que não pode ser pensado). E, desta sorte, pode conceber o «si mesmo» enquanto «outro», ou, dito de modo diverso, a nossa alteridade como «si mesmo»; um diferente presente no eu, zona limítrofe do humano: “zona do costurado, da junção, o lugar onde os pontos se unem, sem os confundir: corpo e alma, céu e terra, tempo e eternidade, finito e infinito”. União de elementos, junção sem confusão nem distinção (p.147). O “limite indica uma transcendência, ainda que seja no seio da imanência”. Estar em situação – existir – é sempre uma situação limite (não apenas o são a morte, o sofrimento, a luta, o acaso, a culpa, como entendia Kierkegaard) e nela – na situação, no existir – revela-se “um fundo impenetrável”. Em esta construção, regista Josep Maria Esquirol, é possível reler, com ulterior fecundidade, por exemplo, o “mais íntimo que o meu próprio íntimo”, de Agostinho. Ainda um olhar “crente”, portanto, para a união sem confusão nem distinção da alteridade, do diferente, no «si mesmo» (a que se vem de aludir). De novo, o filósofo, sociólogo, teólogo Tomás Halík, para quem a distinção (assente no esquema) objectivo/subjectivo, se aplicada a Deus, O deixaria sem abrigo: “Os místicos, nomeadamente o meu amado Mestre Eckhart, afirmam uma coisa imensamente profunda e ao mesmo tempo imensamente perigosa: Deus e eu somos um só. Sim, esta perspectiva pode ser perigosa. Quando Deus se funde com o nosso eu, de modo a trocarmos Deus pelo nosso eu, perdemos a nossa alma. Ao separarmo-lo estritamente de nós próprios e começarmos a ver Deus como algo completamente exterior e separado da nossa alma, perdemos o Deus vivo, substituindo-o por um fetiche, puro objecto, uma «coisa entre as coisas». É tarefa constante da teologia mostrar esta inoculação dinâmica da imanência e da transcendência. Talvez possamos dizer sobre a fusão do nosso eu com Deus aquilo que disse o Concílio de Calcedónia sobre a relação da humanidade e divindade em Cristo: são inseparáveis e, mesmo assim, não estão misturadas” (“Diante de Ti. Os meus caminhos”, Paulinas, 2018, pp.19-23).
Junção, ajuntamento com os outros –  que vai do eros ao agapé, passando pela philia, recorda o ensaísta.

Resistência íntima: não ceder ante as forças desagregadoras. Não ceder não significa nem admitir o absurdo nem se crer já a salvo (em posse do sentido); significa assumir a intempérie e a problematicidade (“a finitude e a morte não se superam: enfrentam-se”, p.82). A fortaleza é, por último, resistência frente à tristeza. E toda a resistência vive da esperança (p.94). O oposto da esperança “é a falta de esperança no sentido: peso, acedia, cansaço provocado pela ideia de que tudo é vão (p.94), de que “nada vale” (p.95). Receitas fáceis de felicidade não merecem mais do que escárnio, porque “não se pode aceder ao mais alto sem passar pelo nada”(p.83), ou, como diria Nietzsche, sempre recordado por Halík quando se refere à superação dos ídolos, “não há ressurreição sem morte”. Assim, do andar amparado e do amparar – “ninguém se aguenta sozinho” (p.74) – façamos caminho (casa, pomar, conversa sobre o tempo e o futebol, amizade, comida, esforço do trabalho…); porventura, bom seria, integrando aquela experiência monástica em que o monge se dirige ao seu superior, a cada fim de tarde, para que este, sem absolvição nem perdão, apenas o acolher e compreender – ou seja, para que aconteça compaixão, com suspensão do julgamento do outro, pura hospitalidade (“só a palavra amiga apazigua, aquela que não exibe a verdade dos factos mas que transmite o abraço da alma”, p.139) -, não permitindo que se perca algo, nem deixando que nos tirem o que foi cuidadosamente guardado, indo, inclusive, até ao ponto em que parece não haver esperança (não apenas parece ecoar a exortação da “esperança contra toda a esperança” que o resistente tem presente, como são palavras que nos recordam Etty Hillesum, em Auschwitz:  "muita gente me acusa de indiferença e passividade e diz que me rendo de mão beijada. E dizem: «Cada pessoa que consiga escapar às garras deles deve tentar fazê-lo e é uma obrigação. E eu tenho de fazer alguma coisa por mim mesmo». Esta é uma frase que não bate certo. Neste momento toda a gente anda, com efeito, ocupada a tratar da vidinha, a fim de se safar, e no entanto é preciso que um certo número, um número grande até, vá. E o esquisito é o seguinte: eu não tenho a sensação de estar presa nas garras deles (…) não sinto que esteja nas garras de ninguém, só sinto estar nos braços de Deus (…) É o sentimento de inevitabilidade e a aceitação dela, e ao mesmo tempo saber que, em última instância, nada nos poderá ser tirado", “Diários 1941-1943”, Assírio e Alvim, 2008, pp.249-250).

A permanência humana é permanência protegida; permanência não graças à substância e à identidade, mas ao abrigo e ao cuidado (p.46). Encarnado numa carícia: “a carícia é a unidade de aproximação e da proximidade” (Levinas).  E, em leitura crente compatível com a abertura – também para ela, para essa leitura/interpretação da realidade – delineada em “Resistência íntima”, a palavra de Deus é o amparo, e o amparo é Deus (p.138).
Penetrante e magnífico ensaio, filosofia capaz de ir ao umbral e de o olhar intensamente, iluminando-o tão densamente quanto possível: sem ocultar a nossa miséria, permitindo ler-nos com igual esperança.