Teodoro, amanuense do Reino, o herói de O Mandarim de Eça de Queiroz, vivia “numa existência bem equilibrada e suave” na casa de hóspedes da D. Augusta, existência apenas perturbada pelos sonhos de bons jantares no Hotel Central, assinatura na ópera, uma tipoia e aventuras com coristas, tudo o que os seus 20 mil reis de ordenado não lhe consentiam.
Certa noite, lia ele um livro e ia caindo numa sonolência grata quando uma frase cintilante lhe apareceu e revelou que no fundo da China existia um Mandarim mais rico do que se poderia imaginar e bastava-lhe tocar na campainha a seu lado para ele morrer e Teodoro ficar com toda a sua riqueza.
E logo um fantasma assomou de leve a incitá-lo a tocar na campainha, acenando-lhe com o supremo gozo de dar um pontapé nos seus chefes medíocres e com a glória da presença constante nas crónicas sociais.
Findo o assombro, e no dilema entre o assassinato de um mandarim ao toque de uma sineta e a felicidade de usufruir da enorme fortuna que assim cairia a seus pés, Teodoro soçobrou à tentação e tocou na campainha.
Pouco tempo passado foi recebendo a reverente visita dos grandes banqueiros europeus, que lhe anunciavam grossas transferências de bancos de Xangai e Cantão. E Teodoro viu-se com uma riqueza fabulosa, comprou palacete e tipoia, passou a frequentar o Hotel Central e a ópera, as coristas e os cabarés, e era gloriosamente citado nos jornais.
Também Mário ia tendo uma “existência bem equilibrada e suave” como ministro das Finanças do Reino, mas sonhando com o estatuto de grande figura europeia, convidado para as mais prestigiadas conferências económicas, líder de grandes institutos internacionais, estrela de Davos e Bilderberg, figura habitual dos restaurantes gourmet de Frankfurt ou Paris. E nas noites mais vazias de entrevistas ou de ministeriais visitas, também numa sonolência grata ia folheando o programa económico do PS, com a vaga esperança de, nas dobras desse vazio em que nada encontrava que salvasse o país, poder ao menos vislumbrar a luz que o conduzisse à realização das suas bem sentidas ambições.
E, tal como Teodoro, viu subitamente sobressair da névoa desse programa uma palavra mágica, o défice. E uma voz cava lhe segredou que, se pusesse fim à sua existência, granjearia um prestígio inaudito, dentro e fora de fronteiras.
Como Teodoro, Mário viu-se então perante o dilema da escolha entre o esplendor de fulminar o défice e o pesadelo do desamparo de cidadãos na doença, nas consultas, cirurgias ou internamentos, desprotegidos também nos transportes ou no ensino. Mas foi superior o sonho de celebridade e grandeza por um feito nunca visto e, não resistindo, decidiu pela sua execução, esquartejando-o num sem-número de golpes, cativações, cortes, e uma panóplia de torturas que levaram ao seu enfraquecimento e morte.
E foi o êxito, o reconhecimento internacional, a presidência do Eurogrupo, exemplo europeu, estrela máxima do Governo.
Teodoro era constantemente atormentado pelo fantasma do mandarim assassinado e tudo fez para compensar os familiares com parte da herança recebida. Mas nunca tendo sabido do seu paradeiro, resolveu voltar à pensão da D. Augusta e retomar a função de amanuense do Reino.
Também um fantasma começou a povoar o espírito de Mário, o ressurgimento de um défice que só aparentemente tinha morrido às suas mãos.
Atormentado até ao fim da vida, Teodoro doou a sua fortuna ao diabo.
Mário, bem mais sábio, esconjurou o fantasma e o pesadelo. De um só golpe, abandonou as Finanças da nação, passou ao governo do Banco do Reino e placidamente doou ao seu sucessor o défice renascido.
Guardou para si a glória e, sorrindo e feliz, deixou o sucessor com o diabo nas mãos!
Claro que a sofisticação de um doutorado em Harvard é bem superior à de um amanuense do Reino!…
Economista e gestor
Subscritor do “Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade”
pcardao@gmail.com