Os sentidos de Lídia

Os sentidos de Lídia


Ao 38.º livro, Lídia Jorge guinou pela primeira vez para um livro de crónicas, Em Todos os Sentidos, que nos chega com a chancela da Dom Quixote.


Acabo de ler Em Todos os Sentidos, de Lídia Jorge, o seu primeiro livro de crónicas, na Dom Quixote. Foi preciso chegar ao seu 38.o livro para termos o prazer de ver a autora estrear-se nesse género literário. O anterior, O Livro das Trevas (2019), também tinha sido um livro de estreia, dessa vez na poesia. Escritora versátil, Lídia Jorge é autora de livros de contos, infantis, de teatro e de ensaio (Contrato Sentimental, uma viagem por Portugal). Mas, de longe, o seu género mais cultivado é o romance, com 13 títulos, a começar por O Dia dos Prodígios, o seu primeiro livro, que saiu na Europa-América em 1979, curiosamente também o ano da estreia triunfal de António Lobo Antunes (Memória de Elefante) e um ano antes do terceiro livro de José Saramago, a partir do qual ele levantou voo (Levantado do Chão). Nesse ano de 1979 fui estudar para Frankfurt, na Alemanha, e foi lá que recebi, enviados da pátria, esses livros, que me consolaram nas pausas da pesquisa em física teórica. Espero que ninguém me leve a mal se eu, fiel à verdade, revelar que foi Lobo Antunes quem mais me encheu as medidas, passando a acompanhar os seus livros à medida que saíam até, digamos, Fado Alexandrino (depois ainda fui comprando, mas guardando-os para ler depois).

Dada a minha assintonia juvenil com o realismo mágico de O Dia dos Prodígios, muito ligado a um Algarve que eu então conhecia mal, não acompanhei, como devia, o percurso literário de Lídia Jorge. Mas fui-me apercebendo de que ela também ganhou asas e subiu alto. A sua ascensão passou pelo premiado O Cais das Merendas (1982), pelo premiadíssimo O Vale da Paixão (1998), pelo também premiado O Vento Assobiando nas Gruas (2002) e pelo polémico, porque analisa friamente o Portugal pós-25 de Abril, e ainda premiado Os Memoráveis (2014). Recentemente fui sacudido por uma entrevista que a escritora deu ao Público por ocasião dos 30 anos desse jornal (23/2/2020). Revi-me em muito do que ela disse. Sobre a política, concordo que “as pessoas já não suportam mais o taticismo evidente” e que a “corrupção instalada na esquerda foi absolutamente deprimente e catastrófica” (poucos escritores falam tão frontalmente de José Sócrates); sobre a escola, concordo que “os professores estão em estado de anomia e anemia” e que ela “no ensino básico e secundário foi tomada de assalto pelo modelo empresarial” (fala uma ex-professora assaz preocupada!); sobre os livros, concordo que “quem escolhe livros para a sociedade tem um papel fundamental e não pode estar esmagado pela ameaça das vendas que não acontecem, porque o que hoje se vende é lixo”; e, finalmente, sobre a urgência de mudança, concordo que “é preciso criar um estado de alarme”, o título da entrevista. Lídia diz, e bem, que “é necessária uma revolução, no sentido sideral, porque doutra forma é o desastre, que significa perder os astros”. Não concordo com tudo, por exemplo, quando ela diz que “as Humanidades têm de funcionar como um travão para essa utopia tecnológica de que apenas a ciência e a tecnologia interessam neste mundo”. Não sei se é precisa essa “guerra de culturas,” de resultado, aliás, incerto. Estou até convicto de que a ciência e, embora não pareça, a tecnologia são também humanidades, no sentido em que, tal como as artes, fazem parte da vasta e diversa cultura humana.

Foi por causa dessa entrevista que, mal o apanhei, li de uma ponta à outra o novo livro de Lídia Jorge, uma compilação de 41 crónicas lidas em 2019 aos microfones da Antena 2, respondendo a um desafio de João Almeida, esse grande mediador cultural da rádio pública. 

Gosto de crónicas. Lia as de António Lobo Antunes na Visão, onde agora leio as de Dulce Maria Cardoso. Leio as de Onésimo Teotónio Almeida e de Eugénio Lisboa. Já tinha lido algumas de Lídia Jorge no JL e no Público. O seu espírito é fluido, como convém nas crónicas (a palavra significava originalmente relato cronológico, mas hoje designa um texto pessoal a propósito de qualquer tema, por mais banal que este seja ou pareça ser). Mas a sua escrita é sólida, comunicando em grande estilo as suas reflexões sobre o mundo em seu redor. O livro, que tem na capa uma fotografia magnífica da autoria de Alfredo Cunha, dá conta das inquietações da autora, algumas delas expressas na entrevista. Lídia Jorge expõe, logo no início, na crónica “Os Seus Aparelhos”, as razões pelas quais considera que a literatura foi “engolida”, nomeando quem a engoliu: o Paulo Coelho, o Dan Brown, os “romances históricos amalgamados”, os “livros de denúncia e intriga política” e os “livros de cozinha”. Além disso, a tecnologia pôs toda a gente a olhar para os ecrãs. Lídia interroga-se: será que “a pergunta, a literária [Quem sou eu?], é incompatível com a tecnologia em expansão contínua? Será que esta devorará aquela?” De facto, é a própria autora que admite que a tecnologia pode ser redentora ao contar a história, que lhe entrou pelo computador adentro, de uma menina de nove anos a quem a professora pediu para redigir um pedido de desculpas a quem quisesse. A miúda, assinando “Lobo Mau,” escreveu ao Capuchinho Vermelho: “Peço muita desculpa por ter tentado comer-te”. Enquanto houver crianças que conseguem pôr-se na pele do Lobo Mau, a ficção perdurará e o mundo não estará perdido. 

Notei nestas crónicas que Lídia Jorge está mais próxima da ciência e da tecnologia do que eu julgava. No texto “O Céu Estrelado”, Lídia olha para o céu com os olhos da ciência e das artes, num texto luminoso que pertence às “duas culturas”. Já escreveu sem olhar para o céu, confessa: “Eu mesma, durante anos, escrevi de costas voltadas para um telescópio de alguma sofisticação, e ainda que não tenha tido grande uso, ali estava, sempre pronto para mostrar Vénus e Júpiter, depois do jantar”. Recorda um seu antepassado, o louletano José António Madeira, astrónomo profissional. Agora olha para o céu e declara: “A ciência do cosmos deixa-me pasmada”. A crónica acaba assim: “O Universo parece desconhecer-nos encobrindo a sua fórmula, mas nós dominá-lo-emos enquanto usarmos para defini-lo a nossa linguagem humana”. 

Páginas à frente, sob o título “Diante da Chuva”, Lídia dá conta do sentido planetário da água: “Uma parte substancial da água do planeta existe há cerca de 3700 milhões de anos. E desde então, a água é a mesma. O mesmo volume, a mesma quantidade, a mesma bolha de vapor, líquido e gelo, entre a atmosfera e a Terra. Consta que a água em que patinharam os dinossauros e, milhões de anos depois, Cleópatra tomou banho rodeada de aias, continua a ser a mesma que chove agora sobre os nossos terraços”. Mais além, sob o título “Emily e o Cérebro,” a escritora fala dos sentidos que descobriu numa exposição sobre o cérebro na Fundação Gulbenkian, cujo título (“Mais vasto que o céu”) era um verso da poetisa Emily Dickinson.

O novo livro de Lídia é mais vasto que o céu. Inclui histórias fantásticas – por isso mesmo, verdadeiras – como a história da aparição, num comboio a caminho de Hamburgo, a Agustina Bessa-Luís de um admirador que se eclipsa misteriosamente e a história da própria autora quando ela deu duas notas de 20 euros a um pedinte num aeroporto de Paris, mostrando como um contista do vigário pode iludir uma verdadeira contista.

Fiel à terra que a viu nascer (Boliqueime), Lídia fala no livro das suas raízes familiares, que incluem a avó materna, que lhe deu uma mão cheia de nada antes de morrer, e o avô paterno que, desmemoriado, lhe perguntava se estava vivo ou morto. Fala, para ilustrar o extraordinário poder da ficção, de uma tia Aurora, mulher de um pastor de cabras algarvio, que era uma mentirosa tão prodigiosa que, de tanto mentir, não raras vezes acertava. Fala das mulheres, ontem e hoje, feiticeiras e sábias.

Sobre a definição de humano, Lídia manifesta a sua admiração por Carl Safina, o ecologista que estuda o que pensam e sentem os animais. Escreve Lídia em “O Novo Bestiário”: “Alguns defendem que temos de ser encarados como outro animal qualquer: Sintetizando, há três hipóteses distintas – Primeira, somos um bicho, ponto final. Segunda, somos um bicho especial, ponto final. Terceira, não somos um bicho. Eu defendo que não somos um bicho”. O que nos distingue, afinal, dos animais? O que distingue o Capuchinho Vermelho do Lobo Mau? Lídia responde, na sua crónica final: “Aquilo que nos define como gente, e nos separa tanto dos animais como das máquinas, é a capacidade de, entre esses dois reinos, criarmos Beleza e alimentarmos, dia após dia, a invenção da fantasia que nos aproxima do milagre. Ser gente é acreditar na possibilidade de milagre”. A ciência bem tenta afastar o milagre, mas o seu trabalho não tem fim à vista, uma vez que milagre significa maravilha, prodígio, e o mundo nos enche todos os dias de prodígios. Como disse o escritor Ray Bradbury: “Acredito que o Universo nos criou – nós somos uma audiência para os seus milagres”.