Foi entregue por estes dias o tão desejado documento de base para a necessária retoma económica que se vislumbra, afinal, como a antecipação de um triste falhanço épico de uma nova fase para Portugal. De nome [“Visão” Estratégica para o Plano de “Recuperação” Económica e Social de Portugal 2020-2030], também conhecido como “o Plano de António Costa Silva”, refiro desde já que usarei aspas na “visão” e na “recuperação”, porque o documento não é uma coisa nem outra.
A primeira impressão que retiro é que é uma amálgama. Tem um conjunto de ideias contraditórias com a realidade atual e com os compromissos parlamentares, mas também contraditórias entre si, e deixa ainda de lado temas importantes. Refere também investimentos públicos como uma verdadeira panaceia, quando são de retorno e critérios altamente discutíveis.
Alguns exemplos das contradições. Com a realidade atual: diz que o Governo deve pagar as dívidas com maior celeridade – o que não é mais que elementar bom senso, não só para aliviar a tesouraria das empresas como para garantir que o Estado é uma “pessoa de bem”. E até para cumprir uma promessa feita e reiterada, mas não cumprida, quando se sabe que chegaram a aumentar os prazos de pagamento de dívidas.
Outro exemplo interessante é abordar que a dimensão das empresas não deve ser um problema. Aliás, o plano defende mesmo a aposta na “criação de economias de escala, definindo instrumentos e mecanismos que facilitem a consolidação das empresas e a criação de massa crítica”. Isto estaria muito bem não fosse, no próprio Orçamento do Estado Suplementar, o “incentivo às reestruturações empresariais” uma referência apenas para micro, pequenas ou médias empresas. É apenas um exemplo e tenho bem presente que a Iniciativa Liberal colocou uma proposta de alteração justamente para incluir todas. Aliás, o debate nestas semanas tem sido uma constante, dentro e fora do Orçamento: todas as empresas cumprem o seu papel, mas esta assunção tem esbarrado com preconceitos. Mais exemplos existem, da proposta de aumento de derrama estadual, um imposto de legalidade duvidosa e progressiva, à agressão sistemática às grandes empresas por partidos que têm sustentado o Governo.
Outro exemplo das contradições, com a realidade e no próprio documento, é dizer, e bem, que se deve “[c]olocar as empresas no centro da recuperação da economia, transformando-as no motor real do crescimento e da criação de riqueza”, mas, no enquadramento político, fazer considerações sobre a crise de um modelo de desenvolvimento económico, e mesmo contra o mercado, quando foi justamente a globalização que permitiu uma melhor resposta à crise, esse mesmo mercado que permitiu desenvolvimento e investigação, bem como as melhores reconversões empresariais, que garantiram uma resposta pronta. Temos, por isso, um plano, na sua essência, incoerente e preconceituoso, para além de pouco ambicioso – incoerente com o contexto atual e parecendo querer casar realidades diferentes, o que é igual a não ter uma direção. E quando não se tem uma direção, tal não é coerente com existir “uma visão”.
Mais: este é um plano em que a educação nem merece um capítulo próprio, a saúde é uma mão-cheia de nada, em que perante o envelhecimento da população e o estado da nossa pirâmide etária não há uma preocupação efetiva em falar de temas como sustentabilidade da segurança social, imigração ou a antevisão do possível decréscimo de natalidade por via da crise económica. Mas quais são, afinal, o horizonte e a abrangência deste plano?
Tem coisas positivas? Tem. Por exemplo, na justiça ou na adoção da medida de concursos públicos internacionais para entidades reguladoras – algo que, infelizmente, não veio a tempo para implementar no Banco de Portugal.
Porque quero realçar a falta de visão deste plano? Porque iremos, nas próximas semanas, ouvir e ler muitas análises de muitas medidas em concreto. E não, provavelmente, uma análise da visão, do caminho, ou uma análise estratégica.
Folgo em ver que as previsões macro são mais realistas do que as do Governo. Mas não se estranhe a ausência de números neste artigo, sendo a realidade do plano que se comenta. Não sei se não consideram importante a quantificação, se não acham que é de partilhar números para fundamentar. Não se entende, sobretudo tendo em consideração o detalhe desproporcionado de alguns itens, roçando, mais uma vez, não só a incoerência como a própria dúvida metodológica. Alguns conhecimentos de estratégia política e de um caminho de recuperação farão reconhecer que há algo que é necessário: é ter uma visão estratégica e uma visão para Portugal. Não reconheço isto neste documento-rascunho.
Receio que estejamos perante um momento que podia ser uma viragem e vai ser, antes, uma monumental oportunidade perdida. O próximo Orçamento do Estado vai ser determinante. Vai lançar o pilar do caminho dos próximos anos e como se visualiza a reconstrução do momento difícil. Se todos os momentos têm a sua importância, este é um dos determinantes, e daí também a desilusão. Antes de um grande momento devíamos viver uma corrente positiva, energética, confiante e criadora, com ambição e tendo em consideração que não estamos sozinhos no mundo. Nada disso. Uma amálgama, um arrastar, um estar à espera, receitas avulsas e nenhuma semelhante a países com estratégias recentes de sucesso e que têm ultrapassado Portugal nas mais diversas vertentes de desempenho económico-social.
Termino referindo que uma das referências no documento é sobre a “jangada atlântica, projeção softpower”, que se descobre no texto “que deve funcionar como uma espécie de dupla hélice”. Pode ser que venha o Júlio Verne explicar melhor, já que, e para quem não leu o documento, há referências, por exemplo, de Mark Twain e 2001: Odisseia no Espaço.
E no meio de tanta inspiração em ficção, eu fico com a minha convicção: a de falta de visão e de estarmos a navegar à vista.
Membro da comissão executiva da Iniciativa Liberal