Ucrânia. Minutos depois do cessar-fogo, disparos de mísseis e metralhadoras

Ucrânia. Minutos depois do cessar-fogo, disparos de mísseis e metralhadoras


A esquecida guerra no leste da Ucrânia arrasta-se, entre cessar-fogos falhados e tensões políticas, deixando milhões de civis com a sua vida suspensa, numa estranha normalidade.


“Estamos a falar da possibilidade de um cessar-fogo real de ambos os lados”, disse este domingo Volodymyr Kravchenko, que lidera as operações militares ucranianas contra os separatistas de Donbass. “A situação está estável e controlada”, assegurou, citado pela Reuters. “Estamos a adotar um completo e indefinido cessar-fogo”, concordou Denis Sinenkov, da autoproclamada República Popular de Donetsk, num apelo secundado pelos seus aliados da chamada República Popular de Lugansk, segundo a agência russa TASS.

À primeira vista, todos pareciam prontos para o começo do fim da longa guerra civil no leste do país – ou da invasão russa da Ucrânia, como lhe chama Kiev -, que se arrasta há seis anos. O cessar-fogo entrava em vigor às 00h01 desta segunda-feira: menos de meia hora depois eram disparados mísseis antitanque e metralhadoras pesadas pelos separatistas, acusam os militares ucranianos. Os tiroteios terão prosseguido noite dentro, perto de Mariupol e na aldeia de Novomykhailivka, sem que fossem registadas baixas, segundo o Kyiv Post.

Dificilmente se poderia considerar um começo auspicioso: não seria o primeiro cessar-fogo a ser esquecido na Ucrânia – já foram mais de 20 desde 2014 – e pode muito bem não ser o último. A guerra em Donbass, que em tempos fez manchetes e hoje mal suscita interesse, já causou mais de 14 mil mortes e milhões de deslocados, serviu de campo de treino a militantes de extrema-direita de todo o mundo e ninguém faz ideia de como irá terminar.

 De um lado e do outro da linha da frente, tanto o Presidente russo, Vladimir Putin, como o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelenski, têm bons motivos para querer o fim da guerra o mais depressa possível – e para temer a reação dos seus cidadãos.

No caso de Putin, que não quer perder poder na sua esfera de influência e se alicerçou numa retórica de guardião dos falantes de russo dentro e fora da Rússia, como em Donbass, está cheio de vontade de reatar laços com países como a Alemanha e a França, quebrados pela anexação da Crimeia, em 2014. Ambos os países europeus, que têm cada vez menos confiança nos seus aliados norte-americanos, estão dispostos a tal, “mas não estão ansiosos por o fazer sem algum tipo de paz na Ucrânia”, explicou Bruno Lété, investigador do German Marshall Fund of the United States, em Bruxelas.

Já a Ucrânia “quer paz, mas também quer manter controlo dos seus territórios no leste. E não está ansiosa por negociar a paz a qualquer custo”, notou Lété à Euronews. Zelenski, um antigo comediante eleito com a promessa vaga de pôr fim à guerra, tem demonstrado alguma vontade em cumpri-la – sempre enfrentando feroz oposição dos ucranianos mais nacionalistas.

“Um conflito congelado tornou-se uma opção que muitas pessoas na Ucrânia de facto apoiam”, notou a analista ucraniana Olesya Yakhno ao Washington Post. “Seria impossível aprovar um estatuto especial para Donbass. A sociedade simplesmente marcharia sobre o Parlamento”, exemplificou. “Isso seria visto como uma capitulação”.

O problema é que essa é a solução de compromisso mais óbvia para o fim da guerra: dar autonomia a Donbass dentro da Ucrânia, como estabelecem os protocolos de Minsk, assinados em 2015 por todas as partes. Mas nunca se conseguiu manter um cessar-fogo pelo tempo suficiente para os aplicar: propositadamente ou não, um dos lados, seja os separatistas ou Kiev, acaba sempre a abrir fogo.

 

Estranha normalidade Entretanto, a vida dos cerca de três milhões de habitantes de Donbass continua suspensa num estranho limbo. Após os combates mais ferozes, no início da guerra, “já não acontece nada de espetacular”, escreveu Alisa Sopova, na Times, há dois anos. “A linha da frente é estática e a vida à volta dela é bastante normal – ou assim parece”, continuou a jornalista de Donetsk.

“As pessoas em zonas de conflito habituam-se ao perigo. Como noutro lado qualquer, trabalham, cozinham, divertem-se, apaixonam-se, casam-se e têm filhos”, explicou. “Na mercearia, certo dia, o homem à minha frente na fila segura uma Kalashnikov e um lança-granadas – e um pacote de salsichas. A caminho de um aniversário, passo por uma caravana de tanques. Às vezes aumento o som da televisão para que o barulho dos bombardeamentos lá fora não me distraia de um filme”.

“Nesses momentos tenho de me lembrar que isto não é normal”, contou Sopova. “Mas qualquer guerra que se arrasta cria as suas próprias rotinas”.