O Presidente da República recebeu para promulgação as alterações ao Orçamento do Estado para 2020, recentemente aprovadas pelo Parlamento, a que, por conveniência política de alguém que já conseguiu ir para um local mais aprazível, se convencionou chamar Orçamento Suplementar. É óbvio que o Orçamento para 2020, promulgado pelo Presidente quando há muito se sabia que o mesmo não iria reflectir minimamente as condições económicas deste ano, teria de ser alterado, sob pena de o país continuar a viver numa ficção absurda, sem dinheiro para combater a crise. No entanto, os deputados, incluindo do próprio partido do Governo, alteraram a proposta que este apresentou, o que suscitou a questão de estas alterações serem inconstitucionais por violação do art.o 167.o, n.o 2 da Constituição, que proíbe os deputados de proporem alterações que envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento.
O Presidente da República, que durante o seu mandato apenas uma única vez suscitou a fiscalização preventiva da constitucionalidade de uma lei, promulgando sistematicamente e sem qualquer problema leis que, depois, o Tribunal Constitucional declarou inconstitucionais, ficou muito preocupado com esta específica inconstitucionalidade. Resolveu no entanto, apesar disso, promulgar o diploma “tendo em consideração a situação muito específica vivida”. Todavia, decidiu perguntar ao presidente da Assembleia da República e ao primeiro-ministro se eles próprios tencionavam pedir a fiscalização abstracta da constitucionalidade das alterações ao Orçamento. Uma vez que cabe ao Presidente da República exercer em primeira linha os poderes de fiscalização da constitucionalidade das leis, não se compreende a que propósito a pergunta surge nem em que é que qualquer resposta que recebesse deveria influir na sua decisão sobre a fiscalização da constitucionalidade das leis. Afinal de contas, não se espera que o Presidente da República verifique a constitucionalidade dos diplomas aprovados pelo Governo e pelo Parlamento, independentemente da posição que os líderes desses órgãos de soberania têm sobre o assunto?
De qualquer forma, ambos responderam à questão colocada. A resposta do presidente da Assembleia da República foi a de que não tencionava exercer essa competência “considerando as soluções encontradas no quadro muito específico que ainda atravessamos”. Já o primeiro-ministro alertou o Presidente da República para as “consequências que tais normas têm, quer no plano jurídico quer no plano das finanças públicas, bem como [os] riscos acrescidos para a execução orçamental, inviabilizando desde já o cumprimento da meta que havia sido definida para o défice em 2020”. Apesar disso, no entanto, considerou “não ser oportuna a abertura de um conflito institucional com a Assembleia da República”, razão pela qual informou não ir exercer a prerrogativa de requerer a fiscalização da constitucionalidade dessas alterações.
Perante estas respostas, o Presidente da República anunciou que “tendo em consideração a situação excepcional vivida, aliás circunstanciadamente explicitada nas cartas recebidas dos Senhores Presidente da Assembleia da República e Primeiro-ministro, que exige dispor com urgência de alterações ao Orçamento do Estado em vigor”, decidiu promulgar as alterações ao Orçamento, juntando cópia da correspondência trocada com o presidente da Assembleia da República e o primeiro-ministro.
Conclui-se assim que o país, embora não esteja em estado de excepção, vive numa situação excepcional. E que essa situação excepcional justifica que a fiscalização da constitucionalidade das leis seja substituída por um diálogo epistolar entre as entidades que podem suscitar essa fiscalização, sendo as cartas imediatamente publicadas para memória futura se a execução orçamental der para o torto, como desde já se antevê. Nessa altura, o Presidente dirá que não pediu a fiscalização porque recebeu cartas que o aconselhavam a não o fazer. O primeiro-ministro dirá que a culpa do descontrolo do défice é da irresponsabilidade dos deputados, com quem, apesar disso, não quis ter qualquer conflito, e o presidente do Parlamento assegurará que as soluções alcançadas não justificavam qualquer controlo da constitucionalidade. E, assim, todas as consciências ficam sossegadas. Só a pandemia e a crise económica que a mesma provoca é que são capazes de não nos dar sossego.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
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