Fora do tempo e do espaço existe um lugar inteligível chamado mundo das ideias. Trata-se, segundo Platão, de um lugar onde permanece, de forma imutável, toda a substância – a essência do mundo físico. Assim, ao ver uma cadeira, apreendemos características particulares como a textura, a cor, a forma ou o tipo de material com que alguém a construiu.
Segundo a filosofia, por acidentes da matéria entendam-se todas as características que lhe conferem existência física e sensorial. Se, por um lado, as cadeiras que conhecemos podem ser diferentes entre si, no mundo das ideias há apenas a ideia de cadeira, que existe antes de o artesão concretizar o objeto. O mesmo se verifica para tudo o que se concretiza e nos rodeia.
Temos, por isso, pessoas mais ou menos sensíveis que visitam constantemente este mundo defendido por Platão. Homens e mulheres como qualquer um de nós que desejam contribuir para um mundo melhor, mais belo, justo e perfeito, mas nem sempre conscientes da fragilidade dos sentidos e do ser.
As imagens do incêndio que afetou um canil na última semana chocaram o país. Se ao tribunal compete julgar segundo a lei, à população compete a interrogação sobre a consciência e sobre todos os aspetos sociais que lhe dizem respeito. Porém, não lhe compete julgar nem fazer justiça pelas próprias mãos.
A letra da lei diz que ninguém pode entrar em espaço privado sem autorização, mas o espírito da mesma lei, no qual reside a sua força, ajudou a romper com a regra em nome de um valor maior: a vida. Uns orientaram-se pela lei, enquanto outros seguiram valores pessoais e aparentemente eficazes. Cada qual fez o que estava correto segundo a sua hierarquia de valores.
Agora, depois do rescaldo e depois da fúria popular contra alguns canis, paira um sentimento de vergonha. Vergonha porque momentos de determinação como aquele não se veem sempre que somos alertados para a existência de lares de terceira idade que maltratam os nossos velhinhos. Pode parecer ser mais fácil acolher temporariamente um cão do que acolher temporariamente um velhinho e, talvez por isso, não exista quem resgate um velhinho com a mesma vitalidade e radicalismo. Foi quiçá essa a razão pela qual se apontou o dedo àqueles que se preocuparam mais com os cães do que com a senhora que vivia em condições desumanas. Não será cada um de nós livre de escolher as suas prioridades?
Se é verdade que cada um é livre de hierarquizar as suas prioridades, também é verdade que todos estão corretos desde que sejam coerentes na relação entre o que dizem e o que fazem. O que não devemos admitir é que a população assuma um comportamento típico dos vândalos e criminosos, além da cobardia e hipocrisia dos que veem o grão de areia que está no olho do outro sem reparar na trave que está diante do seu.
Remontando aos primórdios do direito encontramos o código de Hamurábi, no qual, por princípio, a pena seria proporcional à ofensa. Por exemplo: se uma habitação mal construída ruísse e matasse o dono da casa, o construtor seria declarado culpado e morto.
Continuaremos a julgar como há quatro mil anos ou será que somos capazes de melhor? Recorde-se que por muito boas que sejam as ideias, na vida, tudo é acidente.
Professor e investigador