Insones, os chefes de Estado e de Governo gesticularam, à vez, perante as câmaras de televisão, encenando mais um triunfo para as cores pátrias e para o bolso dos respectivos contribuintes.
Para quem recebe, a esmola é boa. Para quem dá, a prodigalidade é má. Para fazer a alegoria da igualdade permite-se, como numa comédia de Feydeau, que cada Estado troque de papel. Aos esmolados é-lhes pedida prova de prodigalidade, gastando a esmola até ao fim e, se possível, endividando-se para lá da esmola. Noutros tempos, os ministros das Finanças dos esmolados temiam as esmolas europeias porque obrigavam a esvaziar os cofres nacionais no acompanhamento nacional da esmola vinda “da Europa”. A obrigação de prodigalidade impõe o gastar de toda a esmola. Décadas de elevadas taxas de execução dos fundos estruturais deram a Portugal um número de rotundas que ultrapassará em breve o número de habitantes – culpa dos portugueses, que não se multiplicam com a mesma velocidade que as rotundas; mérito dos autarcas, capazes de fazer às esmolas aquilo que as piranhas fazem às chagas mergulhadas nas águas do Amazonas.
Atento à grandeza das renovadas esmolas, procurei alento na mais recente obra de quem se recusou a ir para ministro. Li com denodo a “Visão estratégica para o plano de recuperação económica e social de Portugal 2020-2030”. Aprendi a recitar o título em voz alta, de um só fôlego, num exercício aeróbico que quase exige um terceiro pulmão. Fiquei a saber que Kant “disse” e que Hegel também “disse”. E fiquei seguro da prodigalidade com que na Lusitânia se continuará a assaltar a caixa de esmolas. A caixa cresceu no volume das esmolas, está maior do que a anterior, a da etiqueta “Quadro Financeiro Plurianual 2014-2020”, fruto da capacidade lusitana de empobrecimento, uma das maiores da União Europeia.
Os esmoleres também recebem esmolas. Na melhor tradição cristã, a mão que dá não quer ver a mão que recebe. Os autodenominados frugais (Holanda, Áustria, Dinamarca, Suécia) recebem um reembolso dos contributos entregues aos cofres da União Europeia. Também a Alemanha recebe uma esmola por reembolso – de 3671 milhões de euros – sem sequer ter de usar a braçadeira dos partidários da frugalidade. Mais uma pequena vingança da História, depois do Brexit. A partida do Reino Unido deixa uma herança pesada, a começar pelo modelo de rebate extorquido pela Sra. Thatcher no Conselho Europeu de Fontainebleau, no já longínquo ano de 1984. Sem ter assento nos tratados, o rebate é um bom exemplo de contorcionismo negocial para acomodar os britânicos, algo que deveria desaparecer com a materialização do Brexit. Mas não, o rebate floresce e multiplica-se.
A esmola é uma obrigação moral e não deve ser vítima da discriminação. Fazer o bem sem olhar a quem é um 11.o mandamento que obriga esmoleres e esmolados. Foi o que se fez nas 90 horas que durou o Conselho Europeu, não impondo a condicionalidade às esmolas destinadas à Polónia ou à Hungria. Por cá mostrámo-nos solidários, lembrando, justamente, que outros esmoleres não tementes a Deus já nos tinham dito para não gastarmos as esmolas em mulheres e vinho. Também não é justo exigir aos outros que gastem as esmolas em luxos como o Estado de direito, a separação de poderes, a independência dos tribunais ou a liberdade da comunicação social.
No dealbar do século passado, Anatole France explicou a dificuldade inerente ao cruzamento da moral com o esmolar: “A esmola tanto avilta quem dá como quem a recebe”.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990