Carrinhas sem matrícula, tripuladas por agentes de cara tapada, fortemente armados, vestidos de camuflado, encostam numa esquina. Os agentes agarram em manifestantes, sem qualquer explicação ou se identificar e arrancam noite a dentro.
Não, não falamos de operativos norte-americanos a raptar alegados terroristas numa rua de Bagdade ou Beirute, como no início dos anos 2000, nos tempos de George W. Bush, mas de perseguição a manifestantes em Portland, nos Estados Unidos, pela unidade de operações especiais da Proteção Fronteiriça e Aduaneira (CBP, em inglês), esta semana. Quando preparava a operação, Donald Trump até pediu conselhos legais ao professor John Yoo, autor do memorando que justificou a tortura por afogamento na era Bush, avançou o Guardian.
Este cenário pode tornar-se no novo normal, ameaçou esta quarta-feira o Presidente norte-americano. “Nova Iorque, Chicago, Filadélfia, Detroit, Baltimore e todos esses – Oakland é uma confusão – não vamos deixar que isso aconteça no país, são todas geridas por democratas liberais”, declarou Trump, que justificou a intervenção em Portland devido a graffitis e vandalismo num tribunal. “Vamos ter mais aplicação da lei federal, isso posso dizer-vos”, acrescentou.
Agentes do Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos (DHS, em inglês), que tem sob a sua alçada a proteção de fronteiras, já se encaminham para Chicago, avançou o Washington Post. Isto apesar dos protestos da presidente da Câmara, Lori Lightfoot, que recusa aceitar a presença de uma polícia “secreta” na cidade.
“Não precisamos de agentes federais, sem insígnias, a agarrar pessoas nas ruas e a detê-las, creio eu, ilegalmente”, disse Lightfoot, mostrando-se particularmente preocupada “dado o histórico na cidade de Portland”.
Muralha das mães No 52.º dia sucessivo de protestos contra o racismo em Portland, horas antes das declarações de Trump, que qualificou os manifestantes como “anarquistas e agitadores”, gabando-se do “trabalho fantástico” dos agentes federais na cidade, um grupo de mães, fartas da brutalidade policial, ergueu o que chamou de “muralha das mães”. De braço dado, algumas usando capacetes, centenas de mulheres vestidas de branco fizeram uma cadeia humana face aos agentes federais, escudando outros manifestantes com os seus próprios corpos.
“As mães estão aqui! Agentes federais afastem-se”, gritavam. Estes responderam com disparos de granadas atordoantes e gás lacrimogéneo diretamente contra elas, mostram os vídeos. Isto apesar de um juiz federal ter recentemente proibido a polícia de Portland de usar gás lacrimogéneo contra multidões, exceto quando “a vida ou segurança do público ou da polícia estiverem em risco”.
“Nós, como uma democracia, precisamos de levantar-nos”, disse uma das mulheres que participou na barreira humana, qualificando como “aterrorizante” a ação dos agentes. “Tenho 60 anos, provavelmente não devia estar aqui em público, mas isto é para lá do aceitável”, explicou à Reuters.
Manobra de déspota?
“A ideia de que há uma ameaça a um tribunal federal e as autoridades federais vão arremeter e fazer o que querem, sem qualquer cooperação ou coordenação com as autoridades locais e estaduais é extraordinária fora do contexto de uma guerra civil”, disse Michael Dorf, professor de direito constitucional na Universidade de Cornell, à AP. “É uma manobra comum de déspotas, usar o pretexto de reprimir a violência para usar a força, como tal gerando uma resposta violenta e depois justificando com isso o uso inicial da força”.
Aliás, Trump recusou sistematicamente os apelos do presidente da Câmara de Portland, Ted Wheeler, que exige a retirada dos agentes federais da sua cidade. “Senhor Presidente, agências federais nunca deveriam ser usadas como o seu próprio exército pessoal”, disse Wheeler.
“Este é um esforço – um esforço no último fôlego – de um Presidente falhado, em queda nas sondagens, que está a tentar parecer forte à sua base”, acrescentou, à NPR. Na prática, a violência policial face aos protestos pelo homicídio de George Floyd “é simplesmente como atirar gasolina a um fogo”, concordou Kate Brown, a governadora do Oregon, o estado de Portland, em declarações à rádio norte-americana.
Terrorismo ou vandalismo?
Hoje, parece óbvio que Portland era a cidade ideal para Trump testar uma ofensiva federal em estados democratas. Em tempos apelidada de “pequena Beirute” por George Bush sénior, a cidade já tinha um forte movimento antirracista muito antes do homicídio de George Floyd. Desde a eleição de Trump, em 2016, tornaram-se frequentes os confrontos violentos entre os seus apoiantes mais extremistas e antifascistas na cidade, com a polícia à mistura.
Contudo, se a cidade explodiu em protesto em maio, nas últimas semanas as coisas pareciam estar a acalmar. Após acusações de abusos da polícia estatal contra manifestantes resultarem na proibição do uso de gás lacrimogéneo, os protestos à frente do tribunal de Portland tornaram-se sobretudo em churrascos, música e protestos pacíficos, com um outro incidente isolado – até que os agentes federais avançaram sobre a cidade.
“Estão a equacionar terrorismo com vandalismo”, lamentou Norm Stamper, antigo chefe da polícia de Seattle, onde se teme que Trump coloque tropas na rua também. “Podes lavar tinta de spray de uma parede. Podes pintar por cima. Não é um crime assim tão sério. E por que é que isso alguma vez justificaria o uso de violência do Governo é difícil de compreender”, disse ao Washington Post.