Espanha. Espionagem de independentistas põe o Governo em cheque

Espanha. Espionagem de independentistas põe o Governo em cheque


Os telemóveis de dois dirigentes catalães foram alvo do infame Pegasus, um software que só é vendido a agências governamentais.


Espanha está em polvorosa com a notícia de que o telemóvel do presidente do Parlamento catalão, o independentista Roger Torrent, junto com o do ex-ministro catalão Ernest Maragall, foi espiado pelo infame Pegasus, um software israelita associado a inúmeros abusos de direitos humanos por todo o globo e vendido apenas a agências governamentais, revelou uma investigação do El País e do Guardian. “É a primeira vez que se acredita no que já sabíamos”, reagiu Torrent, que acusou Madrid de usar o Pegasus para espiar adversários políticos.

“Havia denúncias da Amnistia Internacional e de outras entidades de que alguns Estados o usavam para perseguir dissidentes políticos, como se passou em Marrocos, Arábia Saudita ou México. Agora, sabemos que o faz Espanha”, continuou o presidente do Parlamento catalão.

Pressionado, alvo de uma comissão parlamentar para investigar os “esgotos do Estado” a que se somou ontem o Unidas Podemos, parceiro de coligação do Governo, o Ministério do Interior espanhol apressou-se a negar ter sequer comprado o Pegasus para a polícia ou para a Guarda Civil. Já as secretas, o Centro Nacional de Inteligência (CNI), garantiram apenas que atuam sempre dentro “do ordenamento jurídico e com absoluto respeito pela legalidade”, sendo todas as ações supervisionadas por um juiz do Supremo Tribunal.

Contudo, fica no ar a questão: quem tinha interesse em espiar Torrent em maio de 2019, justamente quando testemunhava no julgamento dos 12 líderes catalães acusados de sedição pelo referendo à independência da Catalunha, em 2017?

O Governo do primeiro-ministro Pedro Sánchez negou ter sido informado de qualquer espionagem aos líderes catalães. Não é completamente implausível: o Governo tem mostrado pouca mão sobre as forças de segurança, como se viu no final de maio, quando o Ministério do Interior chocou com as chefias da Guarda Civil. Na altura, o El País descreveu como as forças conservadoras sempre dominaram as esferas da justiça, ouvindo até um ministro desabafar: “Nenhum de nós pensava que teríamos de enfrentar um ambiente golpista como este”.

 

“Particularmente Espanha” O Citizen Lab, o grupo de cibersegurança da Universidade de Toronto, que se dedicou a revelar centenas de abusos utilizando o Pegasus, incluindo os ataques a Torrent e Maragall, não consegue precisar exatamente que dados foram roubados, dado que o software dispõe de mecanismos para apagar o seu rasto. No entanto, “há múltiplas evidências” de que tanto Torrent como Maragall foram monitorizados, garantiu a organização.

Importa lembrar que o Pegasus infeta telemóveis através de uma chamada, que nem tem de ser atendida, explorando uma falha no WhatsApp, uma aplicação supostamente encriptada. Aproveita uma falha detetada em maio de 2019: pelo menos 1400 dispositivos já tinham sido atacados, segundo o Citizen Lab. Não era barato: a NSO, a empresa que produziu o Pegasus, cobrava entre um a 5,5 milhões de dólares (870 mil euros a 4,81 milhões de euros) por invasão, segundo a Forbes.

As hipóteses para o que terá sucedido com Torrent são inúmeras: o Pegasus consegue ler mensagens, ouvir chamadas, abrir ficheiros, fazer capturas de ecrã, ver o histórico de internet ou até controlar a câmara e o som do telemóvel – isto quando Torrent se desdobrava em reuniões políticas, com advogados e até com a comissária para os Direitos Humanos do Conselho Europeu, Dunja Mijatovic. Na altura, a organização deixara a diplomacia espanhola furiosa quando se soube que preparava um relatório sobre o “crescente número de políticos julgados por declarações”, “particularmente na Espanha e na Turquia”.

 

Longo historial Quem é a empresa por trás do Pegasus? Muitas vezes descrita como uma empresa de mercenários cibernéticos, boa parte deles veteranos da Unidade 8200, o equivalente israelita da NSA norte-americana, a NSO partilha laços profundos com o Estado de Israel.

Aliás, ainda esta segunda-feira, um tribunal de Telavive recusou um processo da Amnistia Internacional para que o ministério da Defesa israelita revogasse a licença de exportação de armamento cibernético à NSO. Argumentava que ia parar às mãos de regimes autoritários e era usado contra ativistas de direitos humanos – incluindo da própria Amnistia.

A NSO respondeu que as suas ferramentas “são apenas usadas para combater o terror e crimes sérios, e proteger a segurança pública”, acrescentando: “Os nossos detratores, que fizeram acusações sem fundamento para encaixar nas suas próprias agendas, não têm qualquer resposta para os desafios de segurança do séc. xxi”.

Contudo, é difícil equacionar a defesa da NSO de que os seus clientes são “agências governamentais autorizadas e verificadas” com o facto de o seu equipamento ter ido parar à Arábia Saudita. Terá sido usado por Riade para coisas como vigiar o jornalista Jamal Kashoggi antes de ser brutalmente assassinado ou espiar o homem mais rico do mundo, Jeff Bezos.