Com Leonor Teles e Sofia Bost, Mariana Gaivão é uma das três realizadoras portuguesas que, numa sessão de curtas programada pela produtora Uma Pedra no Sapato, estão em cartaz no Cinema Ideal, em Lisboa, no Cinema Trindade, no Porto, e em outras seis salas por todo o país. Estreada na realização com Solo (2012), curta à qual se seguiram First Light (2013) e um longo período de trabalho ao lado de realizadores como Carlos Conceição, João Pedro Rodrigues, Sérgio Tréfaut ou Marco Martins. Ao fim destes anos, Ruby, estreada em Vila do Conde e depois no Festival de Cinema de Roterdão, é a sua terceira curta-metragem. Sobre Ruby, sobre o seu processo e sobre como se relaciona com o cinema – filma obsessivamente os mesmos lugares, como “o tipo que estuda a mesma espécie de borboletas até ao fim da vida”, e é nesse processo que lhe surgem os filmes – conversámos numa manhã no Jardim Botânico de Lisboa. Afinal, é no meio da natureza que se encontra.
Quando no Curtas Vila do Conde recebeste o prémio de Melhor Realizadora pelo Ruby agradeceste ao pai da tua filha por, num aniversário, te ter oferecido dez latas de película, para que pudesses “falhar”.
Era um aniversário, era uma data especial, e ele disse-me: “Vou oferecer-te película para poderes falhar”. O que estava em causa era que a escolha de filmar em película condicionava automaticamente o tempo que tinha de filmagem. Embora estivesse a pensar o filme para isso, o meu medo em relação à película era não ter margem para explorar o interior de cada plano. Muito do meu método tem a ver com este fascínio com a vida interior do plano. Ou seja: apesar de ter uma narrativa que lidera o filme, há sempre qualquer coisa que me distrai para além da história à qual quero estar aberta quando estou a trabalhar o quadro. Para mim o cinema não é o medium da palavra, é o meio do corpo e da sua relação com o mundo. Nesse sentido, dentro do quadro, há sempre coisas que me seduzem e que me puxam para as quais preciso de ter tempo e margem de falha para descobrir. Como uma sedução. É preciso tempo para encontrar aquilo que dirige o meu olhar e a resposta disso ao meu desejo. E o Alexander, sabendo isso, deu-me esse presente na altura. Foi um gesto muito bonito. Esse presente definiu [que seria rodado em película]: se posso falhar, então posso fazer em película. Porque com o orçamento que nós tínhamos, reduzidíssimo mesmo em relação a uma curta-metragem, tínhamos cerca de metade de um apoio normal, a margem para filmar em película contradizia o meu método.
O Ruby é o filme que querias fazer exatamente? Foi esse presente que o permitiu?
Com grandes questões e com grandes decisões… misteriosamente reencontra-se no final com o meu primeiro desejo. Normalmente é isto que acontece, de uma forma que transcende às vezes a minha compreensão absoluta deste processo. O filme nasce de uma junção de vários desejos, de várias impressões, entre o local onde passei os verões de infância, na Serra da Lousã, entre uma pessoa particular que inspirou a personagem fora desse local, entre aquela impressão inicial daquela comunidade à qual queria aceder através do filme – a comunidade de estrangeiros que tinham ido para lá no fim dos anos 1980 e 90. Mas também, de uma forma quase anterior à palavra, de algo que tinha ouvido há anos, não me lembro de quando nem em que contexto, de que naquela caverna se faziam aquelas festas. Era uma espécie de jóia, de imagem central do filme: o regresso destes corpos a uma cerimónia quase ancestral dentro do mundo contemporâneo. Isso foi a primeira imagem forte do filme para mim antes de haver personagens, antes de haver…
É absolutamente inesperada a forma como ali a caverna e o techno se fundem.
Isso.
Dizias há pouco que o cinema não é para ti o medium da palavra, que é o medium do corpo e da sua relação com o mundo. O Ruby é o primeiro dos teus filmes em que introduzes a palavra.
É como se tivesse chegado ao cinema da forma mais primária possível. Sinto a cada filme que me vou apropriando mais do instrumento que tenho: a câmara. A câmara como instrumento ótico. Cresci a querer ser astrónoma. O telescópio que eu tinha, aquela ideia de que olhavas para as coisas com um certo método ou um certo rigor, mas que tinhas de aprender a mexer para perceber o que estavas a ver, foi depois na adolescência migrando para uma pequena câmara que tinha, mas com a mesma ideia. Portanto, a minha ideia de cinema antecedeu o contexto cultural ou uma ideia…
…a própria ideia de querer contar uma história.
É mais herdeira dessa tradição do instrumento ótico como dizia o Godard em relação a explicar o cinema de uma forma abstrata: tens um instrumento ótico na tradição dos instrumentos do conhecimento que te permite olhar para as coisas de uma certa forma. Sinto-me mais próxima dessa visão do que no sentido do cinema herdeiro do teatro ou do cinema como junção de artes.
Como se estivesses mais a olhar, olhar no sentido de observar, para entender, do que a contar?
Sinto que podia ter escolhido outro instrumento mas que a câmara foi o que me aconteceu. E que nesse sentido cada filme é — parece-me ser — um passo de progressão em relação ao anterior no sentido de perceber melhor o que estou a ver. No primeiro filme [Solo] estava a tentar apropriar-me de uma situação que tinha tido de claustrofobia muito ligada à natureza daquele local, no segundo filme estava a falar de algo que se aproximava de uma interioridade maior, mas em nenhum deles me sentia ainda confortável com palavras, ou com ter pessoas a falar. Não sabia fazê-lo, pronto, ainda não sabia como filmar pessoas a falar. Acho que esta ideia de que cada filme se vai enriquecendo de alguma forma nas possibilidades que tenho com a câmara é justa. Não quer dizer que seja sempre uma evolução linear, mas
vai-se tornando mais complexa a forma como consigo falar das coisas.
O Ruby não deixa contudo de existir no mesmo espaço contemplativo que caraterizava os filmes anteriores.
Sim, quando digo que o cinema não é o medium da palavra, digo-o no sentido de a palavra estar na mesma hierarquia que o resto. Ou seja: para mim não é mais interessante duas pessoas estarem a falar. É como quando encontras uma pessoa. O primeiro encontro, rosto a rosto. Há uma conversa. E se calhar lembras-te de uma parte da conversa e há uma parte da conversa que te toca e que te move. Mas há todo o outro lado do olhar, há toda uma complexidade nesse encontro que transcende a palavra.
O estar presente apenas.
O corpo, a relação, o desejo, o antagonismo, o gesto, tudo isso é tão ou mais forte do que a palavra dentro de um quadro. Talvez isto mude, mas num filme meu é provável que a palavra seja sempre o menor dos veículos de ação — ou do estar.
Na sinopse de um pequeno filme de três minutos que montaste a convite da Cinemateca, a partir das imagens da repérage para o Ruby, falavas sobre o teu regresso ao mundo nesse momento: “Parte do processo onde renasço, onde o que desejava existir ganha vida pelos meus olhos”.
Sim. É sempre o primeiro passo e é sempre aquilo que me deslumbra quando parto para um filme. É maravilhoso. Sou uma pessoa que, de forma muito natural e sem qualquer peso nisso, tende a ser muito solitária. Consigo estar muito fechada no meu processo a escrever e a montar temporadas grandes. Sou capaz de estar muito tempo fechada. E o momento em que parto… Há uma espécie de rotina que se vai instaurando nestes processos todos e que vou reconhecendo e que adoro que é o momento em que digo a alguém: “Ok, agora vou”. Tenho uma ideia ou tenho uma impressão e quero voltar ali. É um regresso físico ao mundo. Entro no carro de alguém, que eu não conduzo — não sei até quando é que vou poder escapar-me, mas a ideia e não conduzir neste momento é poder pedir a pessoas que me levem a sítios para poder estar a vê-los. E regressar ao mundo munida de umas ideias iniciais é sempre o primeiro momento em que sinto que estive ausente. E é uma espécie de… é sempre uma fuga da cidade até agora, em todos os filmes, portanto há uma rotina de fazer uma mala, entrar no carro, partir e regressar ao mundo. Regressar às coisas. E quando chego lá há sempre um segundo milagre que é: afinal as coisas que imaginei já existem de alguma forma. Isto aconteceu no Ruby constantemente. Já existem lá, respondem e alteram obviamente o desejo com que parti, mas há uma espécie de encontro que me precede entre aquilo que desejava, aquilo que lá está e aquilo que emerge. E o filme nasce desta relação, deste desequilíbrio constante e bonito entre o que quero e o que está lá. Entre o que me surpreende porque afinal já existe, entre o que me contradiz e…
… é o lugar para onde o filme vai porque tem de ir.
Quando digo o lugar é o lugar físico, são os corpos que o habitam já, os rostos, as vozes, tudo isso no mesmo. Portanto, a repérage é o momento onde encontro o mundo e onde ele me devolve o que o filme irá ser.
Os registos que utilizas nesse pequeno filme são de 2014 e 2018. É muito tempo, e muito tempo sempre em torno daquele lugar que na verdade já conhecias.
Aquele lugar enraizou-se no meu processo de uma forma quase irracional: [quando] tenho que ir escrever ou tenho que ir filmar volto para lá.
O Solo, a tua primeira curta-metragem, já tinha sido rodado lá.
O Solo é na mesma caverna onde eles dançam no Ruby. Obviamente há milhares de sítios por descobrir, rostos por explorar, mas de alguma forma, por qualquer razão, numa espécie de rotina ou de mecanismo de proteção, regresso àquele sítio e parece que lá… tenho sempre esperança de encontrar uma coisa nova e essa esperança nunca é falhada. Na verdade estou a filmar naquela serra deste 2007 ou 2008. A filmar formalmente. Às vezes nem sei porque é que estou a filmar. Tenho uma parede forrada de discos externos com planos de pessoas, montanhas, estações, tenho os mesmos sítios filmados…
Tudo daquele mesmo lugar.
Daquela geografia da Serra da Lousã.
Consegues perceber porquê? Por que voltas sempre ao mesmo lugar? Dizes que tens essa parede forrada de discos externos com imagens da serra. Não filmas na cidade de todo?
Não. É muito raro ter esse desejo de filmar, de estar a passear na cidade e de me surgir… Voltando à questão do método ou de uma espécie de rigor, a ideia de que estás num sítio até o perceberes… Porque é que deveria ir para outro? Ainda não esgotei aquilo. Não é por uma espécie de conforto, não me sinto confortável porque nunca sei o que vou filmar — e hei de filmar noutros sítios, presumo que sim. Mas há uma espécie de “ainda não acabei”. É, sei lá, como um tipo que está a estudar borboletas até ao fim da vida. Ninguém lhe pergunta porque é que está a estudar só aquela espécie. É porque ainda não acabou, porque sente que tem ainda um trabalho a fazer. E eu sinto ali que tenho um trabalho a fazer. E há uma coisa muito bonita também que me é devolvida que é um sítio onde o meu trabalho também já faz parte de uma estrutura diária. Se eu chegar lá com o meu tripé, pronto, sou só mais uma pessoa que vai trabalhar. Ninguém acha estranho. A minha câmara é igual a, sei lá, à máquina de café do tipo que trabalha no café.
A câmara é para ti um bloco de notas? Uma espécie de registo de qualquer coisa que não sabes o que é ou no que poderá ser eventualmente usada um dia, mas que sabes que queres guardar?
Digo mesmo que o meu método às vezes é difícil de cingir à palavra é não é um autoelogio. É mesmo uma dificuldade minha. Consigo depois escrever um argumento, ir lá, estar a ensaiar uma data de ideias, mas sinto sempre que estou a trabalhar sobre o vazio. Portanto se tenho por exemplo uma semana livre entre dois trabalhos prefiro ir filmar coisas que depois me trazem… chamo-lhe pesquisa mas é uma espécie de pesquisa constante. E é isso que depois alimenta [a criação]. O Ruby não existiria se não tivesse encontrado aquelas pessoas. É tudo anterior ao filme.
Como é que ele nasceu?
Tenho impressões de infância assim já muito deslavadas, lembro-me de ver literalmente do outro lado, na outra margem do rio, grupos. Lembro-me de vê-los brincar do outro lado e havia uma espécie de liberdade, uma liberdade do próprio corpo diferente da minha. Da educação com que cresci. Cresci numa família católica, cresci numa ideia, uma teologia quase, completamente diferente do corpo. E lembro-me de vê-los do outro lado — isto criança ou numa infância tardia — e de essa ser a primeira sensação: uma espécie de liberdade, uma fisicalidade diferente da minha.
Eles que eram os filhos dos…
… dos ingleses e dos holandeses. Aprendi inglês sozinha nessa coisa da infância solitária em frente dos livros e da televisão. Falava imenso inglês sozinha, era também uma forma de pertencer a um mundo diferente do meu. E lembro-me de os ver e de querer estar daquele lado. Queria chegar ali, estar ali, queria brincar com eles.
Não havia crianças do teu lado?
Era a mais velha, sempre. Estava sempre à parte, até à minha adolescência estive sempre à margem de grupos ou da socialização, era uma criança extremamente fechada, solitária, interior. Passava as tardes em casa a ver cassetes do Carl Sagan.
Mas com eles querias estar.
Com eles havia uma ideia de… sabia que não podia ser assim, mas quem me dera ser assim. Era uma espécie de desejo de uma impressão de liberdade diferente da minha. E isso deve ter-me ficado. Anos mais tarde, com as idas e vindas lá, já como adulta, e nestes vários filmes que fui fazendo lá, ou os trabalhos que não sabia se eram filmes, se não, fui encontrando alguns e fui-me tornando amiga e criando pontes. Essa coisa bonita de regressares a um desejo de infância e de sentires que te tornaste uma pessoa que faz as pontes com as coisas que na infância desejavas. Mas sempre com o cinema como intermédio. Quase como um cartão de apresentação para me permitir aproximar das pessoas. Se calhar o cinema para mim foi isso também: uma forma de poder regressar ao mundo, de poder reintegrar-me com as pessoas. E a câmara, por muito estranho que seja esse objeto, permite-me ter uma razão para estar lá, primeiro, e depois descobri-los de uma forma que sozinha não consigo. Não sei se queres que explique o episódio exato em que o Ruby nasceu…
Sim.
Já havia uma ideia para um filme que na altura se chamava Tensão de Superfície. Havia uma ideia à volta de algo que flutua na água, uma personagem que pairava entre mundos, tinha essa ideia vaga. Estava a escrever uma longa-metragem e tinha vindo de uma viagem longuíssima. Tinha tido um apoio à escrita do ICA e tinha usado esse apoio para fazer a viagem do personagem da longa, da longa que na altura estava a escrever, e então fizemos (eu, o Alexander e a nossa filha) uma viagem de 10 mil quilómetros mais ou menos.
Dez mil?
Uma viagem de 10 mil quilómetros numa Ford Transit a cair de podre com um colchão lá atrás, tudo poupadinho, tipo latas de feijão contadas, Campingaz… Fizemos mesmo a viagem do que eu imaginava que seria o personagem para eu poder escrever o argumento, no mesmo método de repérage: ir, ir para o mundo. E quando regressei dessa viagem de campismo e de selvajaria, todos cheios de lama e de raízes no cabelo, tínhamos umas baratas… foi lindo, foi maravilhoso — e duro também.
Foram até aonde, para fazerem 10 mil quilómetros?
Fomos até à Alemanha, demos a volta a Alemanha. Mas quando regressei, mesmo quando estava a entrar em Portugal, tinha um argumento assim muito incipiente, muito abstrata, sobre esse Tensão de Superfície, que viria a ser o Ruby e disse: “Não. Antes de chegarmos a Lisboa vamos parar a carrinha mais duas semanas em Góis, deixa-me pensar um bocadinho sobre o filme. Vamos esticar isto só mais um bocadinho”. Ainda tínhamos assim umas latas para comer, uns feijões… E no primeiro dia fomos para o Cabril, onde fica essa gruta, íamos só tomar banho, mas eu tinha um gravadorzinho e disse: “Vou esperar. Vou ver o que é que acontece”. Não sei porquê. E naquele momento, estou eu assim ao pé do rio e no arbusto começo a ouvir assim umas vozes em inglês… “Yeah, yeah, last time we partied at the cave…”, comecei a ouvir uma voz de trás do arbusto, uma voz incorpórea à la Antigo Testamento a falar de umas festas na caverna. As festas de que já tinha ouvido falar mas nunca tinha conhecido ninguém…
Como uma espécie de mito.
Era um mito, lindo. Então fiquei a ouvir meia hora até que de repente decidi cravar um cigarro. Estava cheia de vontade [de ir lá], parecia uma adolescente a pedir a alguém para dançar numa festa. E chego, peço um cigarro, e digo: “Já estive aqui a filmar, estou a escrever um filme…” Claro que a primeira reação foi “o que é que isso interessa”, mas depois a conversa começou a desenrolar, eram umas quatro pessoas, e de repente foi como um daqueles time-lapses das flores que em cinco segundos vão da semente ao florescer perante os teus olhos. Vi o filme nascer ali. Vi os rostos, vi a festa, vi as pessoas — não sei quem especificamente — e fui para casa, escrevi o Ruby, e disse: “Pronto, este é o filme de onde eu parto, o que preciso é de voltar para aqui e trabalhar até encontrar esta promessa”.
E a Ruby conheceste quando?
A Ruby conheci mais tarde. Passou-se o verão de 2013, o verão de 2014, e depois o verão de 2015 e o verão de 2016 foram passados nos décors, o que eu imaginava que fossem, a descobrir as histórias, as pessoas, até encontrar a Ruby e aquilo se modelar. Para mim isto é o mais tradicional possível: criar uma rotina de trabalho em que à noite pões uma câmara a carregar, de manhã pegas na câmara e no gravador, que se quiseres não usas, mas levas sempre contigo. Os planos surgem daí para mim, sempre. Não tem a ver com uma coisa documental, tem a ver com aquilo ser tão mais interessante do que qualquer coisa que eu possa sentar-me a escrever…
Mas há um lado quase documental nesse processo.
É exatamente como um caderno de notas, são pequenas notas. Eventualmente um ou outro plano poderá até chegar ao fim, mas normalmente são simplesmente primeiras notas. Percebo melhor uma coisa se a enquadrar do que se a descrever por palavras. E muitas vezes se descrever alguma coisa por palavras, mesmo para eles, estou a fechar coisas que de outra forma me poderiam surpreender. Dito isto, trabalho sobre o rigor, sobre a repetição e sobre um texto. No início do processo é que preciso de manter aberta a possibilidade do mundo entrar por ali adentro. Nunca imaginaria de uma forma tão concreta aquela festa se não tivesse vivido com aquela narração durante dois anos na minha cabeça. Este processo não tem a ver com atingir um nível de naturalismo, nunca é sobre naturalismo. É sobre haver ideias tão mais profundas e tão mais surpreendentes se estiveres aberto a que elas cheguem do que aquelas que posso ter inicialmente.
É verdade que existe esse lado de rigor nos teus filmes, uma certa obsessão até. É tudo muito preciso sem que ao mesmo tempo pareça fabricado.
É um método. É um método de trabalho que nem saberia como contrariar na verdade. Não tenho razão para o querer, mas se quisesse não saberia como. É mesmo uma questão de fascínio. Fascina-me a vida interior dos planos e sinto que para chegar a esse momento tem de haver um certo rigor no quadro. Uma certa espera. Há um momento em que algo surge que transcende a minha intenção e, para isso surgir, e sinto-o quando estou a filmar — depois se isso chega às pessoas é outra questão — tenho que esperar, tem que haver espaço nesse plano para que isso surja. Se isto determina que tenha uma certa ideia de quadro ou se insira numa certa tradição de quadro, sim. Se isso restringe outras ideias, sim. Mas não saberia como o contrariar neste momento. O meu desejo vai sempre para ali. Passei muitos anos a montar, ainda monto. Não é que seja um complemento porque não há uma hierarquia…
Sentes que o trabalho de montagem influencia a forma como fazes filmes?
Na verdade pode ver-se isso como uma consequência e não uma causa. Ou seja, segui montagem porque esse é o espaço onde posso ter esse rigor. Quando fui para a escola de cinema — não venho de uma família necessariamente ligada às artes, houve uma data de influências e de aberturas, mas não vim de uma tradição cinéfila nem me insiro eu própria num hábito cinéfilo, embora obviamente ame cinema e me relacione com ele. O meu pai mostrou-me o Jacques Tati e o Chaplin, que parecendo referências de infância, as referências de quadro do Tati ficaram-me até hoje, portanto se calhar não precisava de ver mais nada.
E o Tarkovsky?
Muito mais tarde. Não cresci com nada disso. Quando peguei numa câmara era uma miúda de ciências, de livros, de uma curiosidade imensa sobre o mundo, mas muito solitária. E a câmara tornou-se um instrumento para isso. Quando fui para a escola de cinema continuava a ser a miúda solitária…
…do Jacques Tati?
Talvez [risos]. Nunca pensei muito nisso. Mas a montagem tornou-se numa espécie de laboratório perfeito para todos os meus traços: podes estar ali, podes estar sozinha, podes ser rigorosa e podes pensar a fundo nas coisas sem teres de pensar depressa nem precipitadamente e com uma certa seriedade. Ao meu ritmo. A montagem veio na sequência disso. E obviamente depois de estares na relação com o material com um método, com esta ideia diária de vou trabalhar sobre planos, o que fez crescer em mim muitas vezes foi uma vontade… Sempre quis filmar. A montagem nunca foi em vez de, foi sempre um caminho para mim que se articula com a realização. Mas lembro-me de sentir muitas vezes: bem, quando filmar, o que quero trazer no saco são os planos que eu quero montar. A ideia de que queres vir com estas pérolas que depois vais passar dois meses, três meses ou cinco meses a montar e a descobrir a forma.
Também neste momento vivemos todos à procura da forma, uma forma…
Queres que fale sobre o futuro do cinema?
Se quiseres.
Para mim, os filmes não existem fora do mundo. Um filme que pensei há dois anos não existe neste momento da mesma forma, não pode existir. Não estamos no mesmo mundo e não é porque usamos máscaras. O que nos está a acontecer, que ainda não conseguimos articular em palavras, é uma espécie de depuração do que de mais perverso existia, que é a especialização dos nossos corpos apenas para produção. Ou seja: numa pandemia para tudo, mas os corpos que têm que produzir têm que produzir, independentemente do risco. Não podes ir ver uma peça de teatro mas tens que estar na carruagem com 40 pessoas porque tens que ir trabalhar às seis da manhã. Este é o lado perverso que nos desorienta e que nos retira uma possibilidade… Não somos corpos meramente biológicos, não vivemos só de comer e de pagar a renda, portanto a ideia de que neste momento há uma razão — e não serei eu que falarei sobre isso ou que pensarei sobre isso de certeza, haverá tantas pessoas mais articuladas do que eu — mas há uma razão para estarmos neste momento a viver na pele as explosões do que tinha estado latente durante tanto tempo. E que tem a ver com esta redução, esta restrição à nossa biologia sobre a pressão capitalista, sobre a pressão da produção dos corpos, ao mesmo tempo que nos é retirado o encontro com o outro ao mesmo tempo que nos são retirados os espaços de encontro público, os espaços de comunhão, os espaços de abertura e os espaços de plenitude de sociedade. O cinema não está desligado disto, portanto não tem só a ver com todas as precauções físicas que temos que ter como vírus que anda aí, tem a ver com o mundo estar num momento de ebulição que ainda não sabemos enquadrar, que não sabemos tratar. O vírus não é uma metáfora — todas essas narrativas são absolutamente hediondas para mim. Tudo o que está a acontecer agora é uma perversão do que é a nossa necessidade de comunhão. Isso vai ter consequências — está a ter consequências. E o cinema vai de alguma forma viver isto, no meio disto e com isto.