Acontece-me por vezes comprar livros que já tenho. Julgo não ser um sintoma de degenerescência senil, mas consequência de possuir uma grande biblioteca, muitas décadas de leituras e ser humanamente impossível lembrar-me dos livros todos que tenho ou sequer que li. Comprei há pouco, com grande entusiasmo, Com Borges, de Alberto Manguel, uma breve memória do grande escritor argentino Jorge Luis Borges, escrita pelo bibliófilo também argentino, mas naturalizado canadiano, Alberto Manguel, e publicada pela Tinta da China. Chegado a casa, procurei na secção – bem nutrida – dedicada a Borges, que inclui quer os escritos autorais quer os escritos sobre ele, e encontrei lá um livro com o mesmo título, publicado há 14 anos pela Âmbar. As edições são diferentes: a anterior tem tradução de Miguel Serras Pereira e fotos da grande fotógrafa argentina Sara Facio, ao passo que a mais recente, em formato de bolso, tem tradução de Rita Almeida Simões e oferece como mais-valia um posfácio de Manguel que explora a ligação de Borges a Portugal. Como tenho feito em ocasiões semelhantes, ofereci um dos volumes ao Rómulo – Centro Ciência Viva da Universidade de Coimbra, ao qual tenho legado parte da minha biblioteca (não sou só eu: é uma biblioteca de cultura científica que tem conhecido um crescimento notável graças a muitas doações de livros modernos ou antigos).
Como sumariou uma amiga minha que trabalha no setor da edição, este livrinho sobre Borges é uma “pequena preciosidade”. Eu não saberia resumir melhor: curto, mas inebriante. Alimenta a alma de quem já tem a paixão pelos livros e pode até despertar essa paixão em quem não a tenha. Jorge Luis Borges era, como se sabe, um grande leitor. Ele próprio, em Biblioteca Pessoal (Quetzal, 2014), uma antologia dos seus textos de eleição, escreveu: “Que outros se gabem dos livros que lhes foi dado escrever; eu gabo-me daqueles que me foi dado ler”. E acrescentou: “Não sei se sou um bom escritor; penso ser um excelente leitor ou, em todo o caso, um sensível e agradecido leitor”. Quando uma cegueira progressiva o impediu de continuar a ler, passou a pedir a alguém que lesse para ele. Manguel, que trabalhava então numa livraria de Buenos Aires frequentada por Borges, foi, entre os 14 e os 18 anos, um desses leitores. E é o fio da memória desse tempo, já lá vai mais de meio século, que é desfiado no livrinho que eu agora comprei repetido.
Tive um professor de Física-Matemática que era cego – chamava-se, paz à sua alma, Pedro Martins -, para quem eu e outras pessoas também líamos. E sei, por isso, que muitos cegos compensam a sua deficiência com uma espantosa memória. Ele dava-nos as aulas escrevendo num quadro negro obliquamente (não podia orientar-se pelas margens), sem olhar para um papel, como todos os professores fazem. Tinha todas as equações na cabeça. Pois Jorge Luis Borges tinha na cabeça um número inconcebível de livros, com passagens inteiras, em verso ou em prosa, inteiramente decoradas. A sua biblioteca na casa onde vivia com a mãe, dona Leonor, e uma empregada não era grande – a avaliar pela descrição de Manguel, era bem mais pequena do que a minha -, mas tinha o que ele considerava essencial. Em particular, gostava – eu também gosto – de enciclopédias e da serendipidade que consiste em abrir ao acaso um volume de uma delas e aprender coisas tão ignotas como fantásticas. Conta Manguel que o pai de Borges o levava, em pequeno, à Biblioteca Nacional da Argentina (o infante não podia nessa altura imaginar que haveria, anos volvidos, de ser diretor dessa enorme e vetusta casa) e, como a sua timidez o inibia de requisitar um livro, pegava num tomo qualquer da Enciclopédia Britânica, que estava em livre acesso. Foi por casualmente ter pegado no volume “De-Dr” que ficou a saber tudo sobre os druidas, os drusos e Dryden (eu, que não tive a sorte de pegar nesse volume, tive agora de ir à Wikipédia para ficar a saber que John Dryden foi um poeta e dramaturgo inglês do séc. xvii).
Na sua biblioteca estavam vários romances de Eça de Queiroz, autor de que mãe já gostava. No livro de Borges Biblioteca Pessoal encontramos um comentário a O Mandarim, talvez a mais borgiana das histórias de Eça. Mas estavam também, uso a ordem alfabética do apelido, autores como Carroll, Chesterton, Kipling, Poe, Stevenson, Twain, Wells e Wilde. Borges tinha um gosto virado para a literatura anglo-saxónica, alimentado pela biblioteca do pai, que era anglófilo. Tinha, claro, o Dom Quixote, que ele haveria de reescrever com a ajuda de Pierre Menard. A poesia estava no quarto: São João da Cruz, Dante, Heine e Shakespeare (Borges aprendeu alemão sozinho, aos 17 anos, na Suíça, a ler Heine: “Uma vez sabido o significado de Nachtigall, Liebe, Herz, pode-se ler Heine sem a ajuda de dicionários”.) Também tinha livros de matemática e de filosofia. Mas não possuía os livros escritos por ele próprio. Manguel conta a este respeito uma história deliciosa: o carteiro trouxe-lhe uma vez uma edição luxuosa de um livro dele publicado em Itália por esse grande editor que é Franco Maria Ricci. O escritor cego pediu ao seu leitor para lhe descrever o volume. Borges, no fim, comentou: “Mas isso não é um livro, é uma caixa de chocolates”. E ofereceu-o ao atónito carteiro. Sobre os carteiros, que nos trazem os livros: tive uma conversa recente com um que me trouxe um pacote da Wook. Bom leitor, contou-me os livros que andou a ler durante o confinamento, alguns deles policiais. Borges adorava policiais, em que a “unidade é dada pelo mistério.”
Manguel deixa-nos, sobre escolhas literárias, uma frase do Senhor Borges: “Sou um leitor hedonista: nunca permiti que o meu sentido de dever se imiscuísse num assunto tão pessoal como é a compra de livros”. Não se ralava por interromper a leitura de um livro e não mais a retomar. É todo um curso de literatura a lista de autores que ele, por uma razão ou outra, deixou de ler por assumidamente não gostar do estilo deles. Rejeitou nomes como, por ordem alfabética, Amado, Balzac, García Márquez, Goethe, Mann, Proust, Stendhal, Tolstoi, Zweig e um longo etc. O “senhor Borges” não gostava de surpreender o leitor e detestava quem procurasse surpreendê-lo como leitor: “A arte deve ser como Ítaca: de verde eternidade, não de prodígio”.
No posfácio à edição portuguesa, Manguel lembra a passagem de Borges por Lisboa em 1924. Tendo ficado hospedado com a família no Hotel Francfort, no Rossio, foi nessa altura que conheceu António Ferro, de quem ficou amigo. Borges tinha 25 anos e Ferro 29 (aos 19 anos já era editor da Orpheu, indicado pelo dedo de Mário de Sá-Carneiro). Fiquei a saber pelo posfácio que Borges fez turismo por Coimbra, Luso, Buçaco e Figueira da Foz, entre outros sítios do retângulo nacional. E também que Borges nunca referiu Pessoa a Manguel. De facto, ele só escreveu sobre Pessoa nos anos 60, apesar de ter podido cruzar-se com ele na Baixa lisboeta, nos anos 20. Manguel transcreve um famoso soneto de Borges em que este fala das suas origens portuguesas (um bisavô emigrou de Torre de Moncorvo para Rio da Prata). Intitula-se precisamente “Os Borges” e termina com uma referência a D. Sebastião, num passo onde afirma que os portugueses “são o rei que no mágico deserto se perdeu/ e todos os que juram que ele não morreu”. Quando soube por um jornalista português que D. Sebastião tinha morrido não adolescente, mas já com 24 anos, Borges mudou a palavra “mágico” para ”místico”. Quando se é maior, já não se demanda a magia mas sim, quando muito, o misticismo.
Fui à minha estante e encontrei alguns livros curiosos sobre Borges de que já não me lembrava. Um, intitulado Destino e Obra de Camões (Edições do Tâmega, 1993), contém uma conferência que Borges deu sobre o poeta português, com prólogo do advogado e literato Joaquim de Montezuma de Carvalho (que durante algum tempo me mandava cartas muito peculiares, com recortes). Esta edição transmontana reproduz de início uma fotografia de Borges em Lisboa, em 1924, e inclui no final os quatro poemas borgianos em que Portugal é referido. Outro é um volume que saiu na Âmbar em 2006, tal como a primeira edição, entre nós, do livro em apreço: intitula-se Borges e a Matemática, e é seu autor o matemático e escritor argentino Guillermo Martínez, que disseca o lado matemático de títulos como O Aleph ou A Biblioteca de Babel. Uma biblioteca será a melhor aproximação literária ao Universo infinito e em expansão. E, se há mais mundos para além deste, eles serão, metaforicamente, também bibliotecas. Foi Borges que escreveu: “Sempre imaginei que o paraíso fosse uma espécie de biblioteca”.