Um dos temas mais críticos para a evolução do país no pós-covid 19 prende-se com a reflexão que há a fazer sobre as estruturas do Estado: estão, ou não, “fit for purpose”, como dizem os ingleses, que é outra maneira de perguntar se as instituições estão a cumprir a missão para a qual foram criadas.
Quando a pandemia atacou, ninguém estava preparado. A impreparação de base funcionou como um equalizador: todas as nações estavam nas mesmas circunstâncias perante um inimigo comum e desconhecido. Mas o facto de alguns países terem sucesso no combate à pandemia, ao passo que outros não, mostra que, para além do civismo ou das opções políticas, a arquitetura institucional das nações tem um papel determinante.
Portugal não está a ter boa avaliação neste teste determinante para o nosso futuro. E nem sequer vale a pena dizer que a covid-19 foi uma surpresa. Há uma constante histórica no nosso país: nunca mudamos por vontade própria, proativamente, por motivações estratégicas. Mudamos por arrasto e, por norma, quando o mal está feito.
A reconfiguração orgânica do país e a reforma institucional de reguladores e entidades administrativas autónomas tem de ser uma prioridade no pós-pandemia. Isso dotará o país de capacidade de resistência na adversidade ao mesmo tempo que promoverá um crescimento mais sustentável em tempos de normalidade.
O que fazer?
Um plano simples, em cinco pontos, não consertaria tudo. Mas ajudaria.
Primeira medida: prestigiar os servidores públicos. Os países com maior sucesso no combate à pandemia também são, não por acaso, os que têm a função pública mais qualificada, flexível e bem remunerada. As exigências técnicas e profissionais do século XXI alargaram muitíssimo a órbita de competências dos funcionários públicos. Os serviços públicos não podem ficar para trás. Têm de ter os melhores para servir os portugueses. E para ter os melhores o serviço público tem de competir com o privado. Isso faz-se com mudança de mentalidades e de políticas de recrutamento e remuneração na função pública.
Segunda medida: reformar os órgãos de regulação e as entidades com competências nacionais específicas. Essa reforma tem de passar pela reavaliação dos perímetros de atuação e, sobretudo, pelas políticas de recrutamento de quadros. Embora a decisão seja sempre do poder político, as nomeações para cargos de grande complexidade e responsabilidade não podem ser políticas. Têm de ser baseadas no mérito e na competência reconhecida por concurso.
Terceira medida: repensar todos os modelos de operações, entrega de serviço e interação com o cidadão. Há duas forças em confronto: a modernização dos serviços, por via da digitalização, é um caminho sem retorno, por um lado; o cliente, o cidadão, é cada vez mais exigente e menos tolerante com ausência de compromisso dos serviços.
Reconheçamos, porém, que o digital não é uma panaceia. Não há e-gov que resista a um Estado que, por exemplo, entrega a quase 20 entidades diferentes a gestão do litoral. Não deixamos de ter burocracia por fazermos tudo em plataformas digitais. Se assim fosse era como se a burocracia apenas mudasse de roupa. Do que precisamos é de uma reforma mais funda e mais transformadora, que repense o Estado de cima a baixo e incuta uma nova mentalidade e uma nova forma de fazer as coisas.
Quarta medida: garantir a continuidade do Governo, o escrutínio permanente e uma mentalidade de avaliação de resultados. Isto quer dizer o quê? Que há largos setores do território onde não há Estado. E tem de haver Estado em todo o país e para todos os portugueses. Por outro lado, também quer dizer que há larguíssimas atividades do Governo que não são escrutinadas. E têm de ser: para uma melhor democracia e para um melhor Governo. Por fim, o Portugal da pandemia chumba no tratamento daquilo que é considerado o “petróleo” do século XXI: os dados. Quando medimos mal, gerimos ainda pior. Perdemos a noção do que é ter um bom ou um mau resultado. O corolário: ninguém é responsável por resultados que não se avaliam porque não se medem.
Quinta medida: insistir na reforma da descentralização ou nos Serviços Locais de Saúde e Segurança Social
Como militante da causa da descentralização, não tenho dúvidas de que teríamos dado melhor resposta à crise se a tantas vezes prometida reforma já tivesse saído do papel. As autarquias continuam a ser os parentes pobres da administração do Estado ao mesmo tempo que são as estruturas sobre as quais recaem as maiores pressões sociais e financeiras.
Vejamos: são precisas máscaras? O Governo, que as obrigou, não as tem a preços decentes para quem mais precisa. .
São precisas unidades de retaguarda para os infetados? O Estado não tem recursos e só complica a vida a quem os tem.
São precisos dados fiáveis para abordar a doença? As autoridades não têm.
Estamos numa fase em que é crucial dar continuidade à luta contra a pandemia de saúde pública, ao mesmo tempo que as nossas forças se mobilizam para debelar a pandemia social e económica. E o que é que vemos? A mesma coisa.
São precisas habitações para os pobres? Chamem as autarquias.
Comida para as famílias em dificuldades? Chamem as autarquias.
Tudo se exige das autarquias sem que, do ponto de vista da reorganização do Estado, se reconheça a centralidade da unidade política mais próxima do cidadão e dos seus problemas.
Os Governos Centrais nem sequer cumprem a Lei das Finanças Locais há décadas.
A equação é simples: o Estado central fica com os recursos e com os instrumentos legais do seu lado, enquanto as autarquias, de pés e mãos atadas, ficam com os problemas dos cidadãos para resolver.
Há uma solução para este problema? Há. Haja vontade.
A pandemia pode ser o catalisador de um tempo novo entre Estado Local e Estado Central.
As câmaras municipais são, hoje, pequenos Estados Sociais Locais. Formalize-se essa ideia instituindo o modelo de Serviços Locais de Saúde e Segurança Social (SL3S). As autarquias passariam a ter competências em matéria de saúde e segurança social, deixando para o Estado Central apenas e só as matérias de maior complexidade. Alguém duvida que Cascais conhece melhor as necessidades de emprego do concelho do que o poder central? E alguém duvida que qualquer câmara pode, através de uma gestão de proximidade, conseguir ganhos de eficiência e eficácia na gestão das unidades de saúde?
O SL3S é um modelo simples nos princípios mas ambicioso na ação: reformar o Estado, dar unidade e continuidade de governo, promover o melhor serviço possível aos cidadãos e fazer bons usos dos dinheiros públicos.
Estas cinco medidas são meros contributos para uma discussão que é inevitável. Para que, da próxima vez, ninguém possa dizer que não estava preparado.
Presidente da Câmara Municipal de Cascais
Escreve à quarta-feira