O desrespeito do outro na pandemia atual


Não deveríamos ensinar, antes do mais, quem exerce qualquer forma de poder que ele só élegítimo para ajudar a resolver os problemas dos outros, para respeitar e fazer respeitar precisamente o outro e a vida dele?


Receio não me recordar, rigorosamente, de uma conversa que ouvi no outro dia, no mercado.
Falavam, animados, alguns clientes de uma florista sobre o reavivar da pandemia.
E, de repente, com uma acutilância própria de um comentador encartado, a florista atalhou
direta:

– O que até agora tem faltado é respeito de uns pelos outos. É esse o mal e não vem de agora,
nem só a propósito do COVID. Cada vez mais, na vida de todos os dias, se constata essa falta
geral de respeito. Desrespeitam-nos os nossos políticos, quando nos enganam sobre o que
está exatamente a acontecer. Desrespeitam-nos os serviços públicos e os seu dirigentes e
funcionários, quando empatam as decisões que deviam tomar. Desrespeitam-nos os nossos
fornecedores quando enviam mercadoria avariada. Desrespeitam-nos os clientes quando
entram aqui sem educação, sem cumprirem as normas e distâncias de segurança e quando
querem passar à frente uns dos outros, atropelando-se de qualquer maneira. No princípio
todos agiam bem por terem medo, mas agora, sabe-se lá porquê, já sem medo, agem todos,
de novo, com total falta de respeito.

Na pequena loja, ainda cheia, fez-se um silêncio culpado. Ninguém disse nada. Todos olharam
para os pés. Alguns puxaram depressa do dinheiro para pagar e saíram de imediato. Outros,
maneando a cabeça em sinal de assentimento, iam, contudo, olhando para o lado, sem
verbalmente, se exprimiram.

– Se houvesse algum respeito pelos outros – prosseguia a florista – a contaminação teria sido
reduzida há muito. Mas, com os transportes públicos reduzidos ao mínimo e sobrelotados,
como querem que estes pobres diabos que aqui trabalham mantenham a distância? E eles não
podem deixar de vir. Têm de ganhar a vida. Vai-te embora, rapariga – disse, voltando-se para
uma jovem empregada – que daqui a pouco é hora de enchente na carreira!
A rapariga, aliviada, lá se foi.

E a florista prosseguiu:
– Se todos procurassem fazer como eu, que cuido de quem trabalha comigo, muita
contaminação se evitava. Mas, não. O que se vê é uma total falta de respeito, até pelos que
nos estão mais próximos. Então eu, sabendo que o autocarro vem repleto, não devia, como fiz,mandá-la embora mais cedo, antes da enchente? Tenho um pouco mais de trabalho, mas ao menos fico de consciência tranquila. Não podiam outros fazer assim?

Na loja, já quase não estava ninguém. Restávamos eu e ela.
– Não lhe parece, freguês? Não acha que se todos tivéssemos mais respeito pelos outros
muitas desgraças se evitavam? Mais respeito e mais atenção à vida dos outros. Tantas coisas
que poderiam ser resolvidas, não é? Mas, hoje-em-dia, quem dá o exemplo?
Eu, confesso, quedei-me embaraçado. Percebia claramente o que ela queria dizer, a sua
indignação, o seu apelo, mas, na verdade, não sabia que lhe responder. Disse-lhe que sim e
sorri.

O respeito pelos outros: alguma vez teria havido?
Lembro-me de medo, sim. De ver, frequentemente, alguma humilhação ante os mais
poderosos. De alguma arrogância vincada dos novos-ricos no tratamento com os outros. Mas
de respeito, de respeito genuíno pela pessoa do outro, pelos seus problemas, pela sua vida?

Lembro-me de, na escola, me falarem na necessidade de respeitar o próximo e de em casa me
dizerem o mesmo. Mas, ao longo da vida, raramente consegui vislumbrar esse respeito.

Quando isso acontecia, sempre invocava, surpreendido, o exemplo de quem assim tinha
procedido. Invocava, ao fim e ao cabo, a exceção do respeito verificado, quando o que eu
devia invocar, escandalizado, era antes, como exceção, a falta de respeito.

Até nos tribunais, a instituição por excelência a que devemos recorrer para fazer respeitar os
direitos de todos e também os próprios, assisti a muito desrespeito pelos direitos alheios.
Desrespeito, desde logo, entre colegas de profissões forenses, desrespeito acintoso e quase
sádico, por vezes, para com os cidadãos.

Ora, uma sociedade em que as instituições manifestam pouco respeito para com os cidadãos
que devem servir obtém, em troca, pouco respeito deles, gerando, além disso, pouco ou
nenhum respeito entre eles mesmos.

O respeito é baseado na atenção à pessoa dos outros e na contenção das nossas reações para
com ela, mesmo, ou sobretudo, quando dela discordamos.
Por isso, o desrespeito é como a pandemia, contagia, reverte e alarga o âmbito da
contaminação em vagas sucessivas.

E, desse modo, não se torna possível qualquer medida sanitária eficaz que assente no respeito;
para se ser eficaz apenas o medo deve voltar a imperar.

Não deveríamos, portanto, ensinar, antes do mais, a quem exerce qualquer forma de poder –
político, judicial, administrativo, patronal, paternal, filial – a usá-lo para, precisamente, fazer
respeitar o outro e a vida de outros como ele?

O desrespeito do outro na pandemia atual


Não deveríamos ensinar, antes do mais, quem exerce qualquer forma de poder que ele só élegítimo para ajudar a resolver os problemas dos outros, para respeitar e fazer respeitar precisamente o outro e a vida dele?


Receio não me recordar, rigorosamente, de uma conversa que ouvi no outro dia, no mercado.
Falavam, animados, alguns clientes de uma florista sobre o reavivar da pandemia.
E, de repente, com uma acutilância própria de um comentador encartado, a florista atalhou
direta:

– O que até agora tem faltado é respeito de uns pelos outos. É esse o mal e não vem de agora,
nem só a propósito do COVID. Cada vez mais, na vida de todos os dias, se constata essa falta
geral de respeito. Desrespeitam-nos os nossos políticos, quando nos enganam sobre o que
está exatamente a acontecer. Desrespeitam-nos os serviços públicos e os seu dirigentes e
funcionários, quando empatam as decisões que deviam tomar. Desrespeitam-nos os nossos
fornecedores quando enviam mercadoria avariada. Desrespeitam-nos os clientes quando
entram aqui sem educação, sem cumprirem as normas e distâncias de segurança e quando
querem passar à frente uns dos outros, atropelando-se de qualquer maneira. No princípio
todos agiam bem por terem medo, mas agora, sabe-se lá porquê, já sem medo, agem todos,
de novo, com total falta de respeito.

Na pequena loja, ainda cheia, fez-se um silêncio culpado. Ninguém disse nada. Todos olharam
para os pés. Alguns puxaram depressa do dinheiro para pagar e saíram de imediato. Outros,
maneando a cabeça em sinal de assentimento, iam, contudo, olhando para o lado, sem
verbalmente, se exprimiram.

– Se houvesse algum respeito pelos outros – prosseguia a florista – a contaminação teria sido
reduzida há muito. Mas, com os transportes públicos reduzidos ao mínimo e sobrelotados,
como querem que estes pobres diabos que aqui trabalham mantenham a distância? E eles não
podem deixar de vir. Têm de ganhar a vida. Vai-te embora, rapariga – disse, voltando-se para
uma jovem empregada – que daqui a pouco é hora de enchente na carreira!
A rapariga, aliviada, lá se foi.

E a florista prosseguiu:
– Se todos procurassem fazer como eu, que cuido de quem trabalha comigo, muita
contaminação se evitava. Mas, não. O que se vê é uma total falta de respeito, até pelos que
nos estão mais próximos. Então eu, sabendo que o autocarro vem repleto, não devia, como fiz,mandá-la embora mais cedo, antes da enchente? Tenho um pouco mais de trabalho, mas ao menos fico de consciência tranquila. Não podiam outros fazer assim?

Na loja, já quase não estava ninguém. Restávamos eu e ela.
– Não lhe parece, freguês? Não acha que se todos tivéssemos mais respeito pelos outros
muitas desgraças se evitavam? Mais respeito e mais atenção à vida dos outros. Tantas coisas
que poderiam ser resolvidas, não é? Mas, hoje-em-dia, quem dá o exemplo?
Eu, confesso, quedei-me embaraçado. Percebia claramente o que ela queria dizer, a sua
indignação, o seu apelo, mas, na verdade, não sabia que lhe responder. Disse-lhe que sim e
sorri.

O respeito pelos outros: alguma vez teria havido?
Lembro-me de medo, sim. De ver, frequentemente, alguma humilhação ante os mais
poderosos. De alguma arrogância vincada dos novos-ricos no tratamento com os outros. Mas
de respeito, de respeito genuíno pela pessoa do outro, pelos seus problemas, pela sua vida?

Lembro-me de, na escola, me falarem na necessidade de respeitar o próximo e de em casa me
dizerem o mesmo. Mas, ao longo da vida, raramente consegui vislumbrar esse respeito.

Quando isso acontecia, sempre invocava, surpreendido, o exemplo de quem assim tinha
procedido. Invocava, ao fim e ao cabo, a exceção do respeito verificado, quando o que eu
devia invocar, escandalizado, era antes, como exceção, a falta de respeito.

Até nos tribunais, a instituição por excelência a que devemos recorrer para fazer respeitar os
direitos de todos e também os próprios, assisti a muito desrespeito pelos direitos alheios.
Desrespeito, desde logo, entre colegas de profissões forenses, desrespeito acintoso e quase
sádico, por vezes, para com os cidadãos.

Ora, uma sociedade em que as instituições manifestam pouco respeito para com os cidadãos
que devem servir obtém, em troca, pouco respeito deles, gerando, além disso, pouco ou
nenhum respeito entre eles mesmos.

O respeito é baseado na atenção à pessoa dos outros e na contenção das nossas reações para
com ela, mesmo, ou sobretudo, quando dela discordamos.
Por isso, o desrespeito é como a pandemia, contagia, reverte e alarga o âmbito da
contaminação em vagas sucessivas.

E, desse modo, não se torna possível qualquer medida sanitária eficaz que assente no respeito;
para se ser eficaz apenas o medo deve voltar a imperar.

Não deveríamos, portanto, ensinar, antes do mais, a quem exerce qualquer forma de poder –
político, judicial, administrativo, patronal, paternal, filial – a usá-lo para, precisamente, fazer
respeitar o outro e a vida de outros como ele?