O debate parlamentar mostra mais do que aquilo que muitos participantes gostariam de deixar ver. Por essa razão, há os que gostam do debate e há os que dele fogem. Cavaco, que não ficou para a história como o Demóstenes lusitano, fugia da Assembleia da República como o diabo da cruz, delegando a tarefa em gente mais proclive à oratória e à argumentação. Ainda assim, percebeu a importância da encenação e a vantagem que assiste a todos os Governos, capazes de escolherem, por via de iniciativas várias, o campo e o tempo do debate parlamentar. Pouco dado a improvisos, importou dos EUA o debate do estado da União, um modelo que permite ao Governo em funções mostrar que faz perante uma oposição que parla. A importação foi feita em 1992, crismada como debate do estado da Nação, algo que não deixaria de agradar ao constituinte de 1933, vertida para o regimento da Assembleia da República e repetida todos os anos. Em 2020, o debate do estado da Nação é levado à cena a 22 de Julho.
Em Estados mais dados ao debate público de ideias, as discussões argumentadas são cultivadas desde a escola primária. As debating societies fizeram mais pela preservação do modo de ser britânico do que os pubs, sem exagero retórico. As Prime Minister’s Questions são 30 minutos de puro gozo, todas as quartas-feiras ao início da tarde. Ai dos que não se preparem para as perguntas e respostas, sejam Governo ou oposição. Um PM que fraqueje nas PMQ ou um líder da oposição que não consiga farpear o adversário não têm futuro. Em tempos recentes, Jeremy Corbin mostrou quase todas as quartas-feiras porque não chegaria a PM.
No Portugal do pós-25 de Abril houve PMs com talento retórico ao gosto da época (Soares, Sá Carneiro) e um com uma enorme capacidade argumentativa (Guterres). A cópia lusa das PMQ deve-se a um pedido da oposição (Portas) aceite por Sócrates. Em 2007 estreou-se este modelo como “debate quinzenal”. Ao Governo de turno basta escolher um tema que possa vender como sendo uma excelente iniciativa e passa a controlar a agenda e o sucesso do debate. Quando, na segunda metade do debate quinzenal, o anúncio dos temas pertence à oposição, o debate já está, quase sempre, antecipadamente ganho pelo Governo. Ao Governo interessa antecipar o prazo regimental de 24 horas para anunciar o tema que pretende debater, mobilizando a comunicação social durante dois dias. A oposição também está, para sua desgraça, regimentalmente obrigada a anunciar previamente os temas que pretende levar a debate. Nos últimos anos, a prática das perguntas combinadas, um bocejo a que o grupo parlamentar do partido no Governo empresta a voz, estendeu-se a quase todos os partidos da oposição. A retórica do “Dizem-me que este é o melhor Governo do mundo. Será verdade?” como contundente questão a colocar ao PM durante o debate quinzenal tem agora a variante “Este é um bom Governo apenas porque o Partido X – que não está no Governo – obrigou o PM a apoiar uma excelente medida do nosso programa”.
A solução para a halitose não deve passar pelo arrancar dos dentes. Haveria muito para melhorar no modelo do debate quinzenal. Reduzi-lo a trimestral, como propõe o líder do maior partido da oposição (oito debates por ano, em que se inclui a preparação de dois Conselhos Europeus, o estado da Nação e o Orçamento do Estado, sobrando quatro debates de tema livre), mostra uma ideia muito estranha sobre qual deva ser o papel do Parlamento no debate político.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990