1. Quem seguiu os debates nas últimas Presidenciais norte-americanas (2016), recordar-se-á, certamente, da recusa, por parte de Donald Trump, de mostrar a sua declaração de IRS, ainda que muito solicitado para o efeito. A leitura daquele gesto parecia clara: em causa poderiam estar indícios de evasão fiscal. No livro de Michael Wolf, Fogo e Fúria (Actual, 2018), ficámos, contudo, a conhecer uma outra tese para o sucedido: o reconhecimento de que os rendimentos de Trump, afinal, não eram assim tão elevados faria com que a aura multimilionária pudesse afrouxar – e sabemos como para Trump ser o vencedor era tudo, e como essa imagem se afigurava fundamental para os milhões de seus concidadãos (e votantes) que queriam (sonhavam/sonharam), um dia, ser como ele. E se há coisa que o livro mostra é um Trump a querer ser amado pelo mundo, por todos, mas muito em particular pela gente com muito mais dinheiro do que ele próprio – tido, este, não raro, como um arrivista – como Murdoch.
2. Do ponto de vista do conteúdo das políticas e do modo como Donald Trump se relaciona com estas, um elemento há, convocado à investigação divulgada por Wolf que, pela sua importância, é especialmente ilustrativo do momento político norte-americano: completamente alheado do que seja um seguro de saúde, indiferente e aborrecido com os detalhes das políticas, ignorando, sem interesse em saber mais, o que estava em causa neste tema – para si, uma chatice de morte -, Trump delega em Paul Ryan, republicano Presidente da Câmara dos Representantes entre 2015 e 2019, a questão – na verdade a contestação – do (chamado) Obamacare. Quem esperava, contudo, agora, que o diploma legislativo estivesse em boas mãos, capazes de dominar o assunto, tal o (conhecido e reiterado) antagonismo deste protagonista para com aquela reforma de Obama, cedo se desenganou. Conta Wolf no seu Fogo e Fúria: Ryan delegou a redacção da nova lei dos cuidados de saúde "nas companhias de seguro e nos grupos de pressão de K Street" (p.198).
3. No livro de Michael Wolf, sustenta-se que não existe qualquer ideologia Trump – que não seja a do arrivismo, o beautiful people, o dinheiro, o reconhecimento social. De aí que a imprevisibilidade e o caos sejam a consequência, em permanência, na sua Administração. E, face a um problema, um despedimento, enquanto reacção instintiva. Agir rápido, sem saber como (note-se que, a quando da publicação de Fogo e Fúria, havia cinco vezes mais despedimentos na Administração Trump, do que os verificados, no mesmo período, na Administração Obama – e, de então para cá, os despedimentos não cessaram). Falta de competências. Por exemplo, num pequeno e simples âmbito, observa-se a ausência de uma equipa para redigir os discursos. A vida numa bolha. Nos lugares-tenentes, a luta entre um Kushner, democrata de Nova Iorque (por exemplo, a favor do Obamacare), um Bannon alt-rigth e um Preibus, republicano do establishment. Cada um, contactando figuras tutelares de Trump – ou, pelo menos, que o fascinam – para o procurar influenciar num dado sentido (face à falta de uma visão do mundo minimamente estruturada por parte deste). Mas talvez o mais importante do que se escreve neste livro, seja isto: “Por razões bastante óbvias, nenhum presidente antes de Trump e poucos políticos alguma vez vieram do negócio imobiliário: um mercado pouco regulado, baseado em dívida substancial, com exposição a frequentes oscilações de mercado, depende frequentemente dos favores do governo, e constitui uma moeda de troca muito apreciada para dinheiros problemáticos – isto é, lavagem de dinheiro. O genro de Trump, Jared Kushner, o pai deste, Charlie, os filhos de Trump Don Jr. e Eric, a filha Ivanka, e mesmo o próprio Trump, todos basearam os seus negócios, em maior ou menor grau, no limbo duvidoso do cash flow internacional não limitado e no dinheiro «cinzento». Charlie Kushner, a cujo negócio imobiliário o genro de Trump, e seu importante assistente, estava completamente ligado, já cumprira pena numa prisão federal por evasão fiscal, manipulação de testemunhas e donativos de campanha ilegais.” Já Paul Manafort, “o lobista internacional e operacional político que Trump conservara para lhe dirigir a campanha após o despedimento de Lewandovsky – e concordara em não ser remunerado, com isso ampliando a questão das contrapartidas – passara trinta anos a representar ditadores e déspotas corruptos, amealhando milhões de dólares e deixando um rasto de dinheiro que há muito chamara a atenção dos investigadores dos EUA. A acrescentar a isto, quando se juntara à campanha, era perseguido, e todos os seus passos financeiros documentados, pelo multimilionário oligarca russo Oleg Deripaska, que afirmava que ele lhe roubara 17 milhões num esquema de vigarice imobiliária, e jurava uma vingança sangrenta"(p.32).
4.Embora a sua emergência se tenha dado por altura da segunda guerra no Iraque, a Fox News existe desde 1996. Foi vista como uma das grandes vencedoras/impulsionadoras da vitória das últimas Presidenciais americanas, por parte do candidato apoiado pelo Partido Republicano. Vários membros do Executivo americano pretendem-se, na perspectiva do Presidente Trump, esbeltos, ricos e com assento naquele canal de tv. Na interpretação de Steve Bannon, todavia, o principal significado da vitória de Trump foi a final ascensão do Tea Party à Presidência (p.193). Trump, impreparado, não esperava ganhar, e no momento em que percebeu que venceria, entrou em pânico.
Michael Wolf escreve no ano dois da era Trump, um Presidente que qualifica como "pós-alfabetizado – televisão total" (p.141): "Trump não lia. Não lia sequer pela rama. Se era texto impresso, era como se não existisse" (p.141). O homem tweeta das 5h às 6h da manhã, acordando, com queixinhas menores, os seus amigos mais ricos, após ver, no seu quarto, a solo, os seus três televisores, enquanto se banqueteia a fast-food.